Palavra cedência

Problemas Existenciais

 

O famoso detetive etimológico anda qual fera enjaulada em seu escritório desarrumado. As sombras que se espalham por todo o aposento o engolem e ele ressurge pouco adiante, à luz amarelada do cartaz que fica logo do lado de fora da janela.

Ele está visivelmente nervoso. Algo lhe falta, algo que ele queria não precisar usar mais, mas … ele vê que simplesmente não vai dar para resistir desta vez.

Ele tinha prometido parar, mas o seu doutor vai precisar entender que uma vezinha só não quer dizer recaída. De qualquer maneira, vai ouvir poucas e boas, já se sabe.

É só um lapso, para ter mais força logo adiante. Se até o Sherlock Holmes tinha desses problemas…

Tomou uma decisão; uma estranha calma mista de ansiedade se apodera dele. Ele enterra mais o chapéu na cebaça, sai do escritório e chaveia a porta.

Esconde a chave com todo o cuidado sob o capacho, num canto onde calcula que ninguém a achará, e anda pelos corredores e escadas maltratados e escuros.

As lâmpadas são tão fracas que parece estar mais claro onde elas não existem.

Coisas se mexem pelo chão quando ele passa perto. Ele torce para que sejam apenas ratos e baratas, nada pior do que isso.

O sujeito encapotado e de chapéu sai para a rua. A luz dos postes em que ainda há luminárias é forte e branca. Demarca círculos claros sobre o negrume do chão; fora deles não se pode saber o que há. E talvez seja melhor assim.

Ele cruza a via malcheirosa em diagonal e entra no boteco do meio da quadra. É o único estabelecimento que funciona naquela quadra. Está cercado por edifícios abandonados, um que outro terreno baldio cheio de lixo, lojas com as portas e janelas emparedadas. De dentro dele sai um bafio de bebida barata, fritura nojenta e fumaça de cigarro.

O ambiente, os cheiros, o visual todo do bar correspondem aos lugares onde circulavam os detetives das histórias policiais das décadas de 40 e 50 – as melhores, no entender de X-8.

O detetive devia se sentir em casa ali, mas detesta aquilo. Ele só assume aquele visual da época como técnica de marketing, pois sabe que hoje em dia a gente tem que se esforçar para dar o que os clientes querem. Pelo menos foi isso que aprendeu num dos cursos que fez. Mas bebida, fumaça e comida ruim não são com ele.

Numa das mesas do bar, quatro palavras deprimidas rodeiam uma jarra de chope choco e não muito gelado. Estão bebendo dele através de mangueiras de soro que conseguiram em algum hospital, recostadas para trás nas suas cadeiras. Às vezes, uma delas dá um longo suspiro de desespero. X-8 olha bem para elas, por hábito profissional.

Sentado a uma outra mesa, um sujeito bebe um copinho de alguma porcaria amarga e cantarola um tango. Mais adiante, outros dois, com garrafas de cerveja, ouvem atentamente alguma coisa em rádios com fones. Deve ser futebol, pois às vezes eles se inteiriçam, em expectativa, apenas para se sentarem, desanimados. E deve se tratar de jogos diferentes, pois eles não se movimentam juntos.

O dono do bar está atrás do balcão. É gordo. Usa sempre uma barba de dois dias, o que intriga o detetive: como é que ele consegue mantê-la daquele tamanho?

Ele usa um avental de tecido sintético que já teve dias de brancura, mas que agora se limita tristemente a ser da cor de um pano de chão. Um dos botões está pendente por um fio. O sujeito tem um bigode meio caído, olhos pequenos, de limpidez suína, cabelos curtos e sebosos.

Chama-se Garcia. Ninguém sabe se esse é o nome verdadeiro ou se é pela semelhança com o Sargento Garcia, do seriado antigo do Zorro. Seja como for, é assim que ele se apresenta.

Ou se apresentava, que agora ninguém mais tem qualquer ineteresse em o conhecer.

Definitivamente não parece ser pessoa em quem confiar.

Mas X-8 tem que confiar nele. Afinal, quem não consegue se livrar de certos vícios precisa depender de um fornecedor.

X-8 pára diante de Garcia. Encosta-se no balcão e chega perto do rosto redondo, barbudo e suado. Seus instintos apurados de detetive lhe dizem que Garcia acaba de fazer o seu lanche noturno de cebolas e alhos crus. E que ele estava com fome antes de comer.

Garcia o olha com um sorriso triunfante e matreiro nos olhos pequenos:

– Não conseguiu parar ainda, hein?

– Já consegui. Estou limpo faz um tempo, mas tenho um amigo que quer a última dose antes de começar a se tratar de verdade. Ele está se despedindo da coisa e pediu para eu…

– Tá certo, detetive, tá certo! E quantos “o seu amigo” vai querer desta vez?

– Dois – o detetive finge não notar a ironia do gordo.

O homem por trás do balcão vai até à cozinha. Mexe nuns armários, onde coisas rastejam para longe, mais por causa do hálito dele do que por medo, e traz um pacote pequeno.

Passa-o discretamente por sobre o balcão para X-8, que faz algumas notas deslizarem de volta.

Nesse momento, as quatro palavras que chupavam a sua bebida com mangueirinhas começam a chorar. O gordo fala, amigável:

– Olha, seu X-8, aquele pessoal está assim por falta de alguém como o senhor. Quer que encaminhe antes ou depois de o senhor usar isso aí?

O detetive, irritado, entrega o seu cartão ao barman e diz:

– Mande-as subirem já.

E sai, tentando manter o máximo de dignidade possível naquela situação.

Garcia encolhe os ombros e se aproxima da mesa onde o choro corre solto:

– Pessoal, com licença. Parece que vocês estão numa ruim. Se continuarem assim vão acabar se suicidando e eu não posso me dar ao luxo de perder clientela. Por que vocês não contratam uma pessoa de toda a confiança para ajeitar essa situação? Logo aqui em frente há um especialista nesse problema de vocês. Eu não pude deixar de ouvir enquanto vocês discutiam…

Leva um certo tempo falando nas qualidades de X-8, sem mencionar nada sobre as suas fraquezas. Passa mais umas informações e entrega o cartão, um intrigante cartão onde apenas está escrito “X-8”, sem endereço nem telefone.

O detetive sempre diz que quem precisa dele de verdade consegue achá-lo. Influências da psicoterapia.

As palavras, inicialmente arredias e desconfiadas, passaram a fazer perguntas ao dono do bar. Por fim, verdadeiramente interessadas, pediram um café bem amargo, com a esperança brilhando nos seus olhos.

Foram ao banheiro passar uma água no rosto, pentearam-se – enfim, puseram-se apresentáveis.

Pagaram a conta e cruzaram a rua tenebrosa.

O detetive, após sair do bar, subiu depressa para o seu escritório e correu para os seus livros. Folheou-os com urgência, fez umas anotações breves e as olhou com toda a atenção, tratando de as memorizar. Tomada essa providência, sentou-se à sua escrivaninha.

Sem nada a fazer para o momento, a sua atenção se volta ao pacote que está no bolso da sua gabardine. Parece que ele começa a arder ali dentro.

E se as clientes não vierem? Ou se demorarem? Uma provadinha só antes, quem sabe, uma pequenina cheirada pelo menos?…

Não. Um resto de força de vontade se impõe e ele resolve esperar um pouco.

Vai à janela, olha para o bar em frente. As palavras estão saindo e se dirigindo para o edifício dele. Pelo menos agora a situação está mais definida; ele tem um motivo claro e imediato para se conter.

Ele pega o pacotinho do bolso, coloca-o no fundo da gaveta de baixo da escrivaninha e aguarda.

Ao ouvir os passos se detendo do lado de fora da sua porta, ele deduz argutamente que elas logo vão bater ali.

Dito e feito: batidas hesitantes de quatro mãos ao mesmo tempo.

– Entrem – diz ele, em sua costumeira posição séria e imóvel atrás da enorme escrivaninha.

As palavras entram. Eram, como ele tinha anotado mentalmente no bar, Cessão, Sessão, Seção e Secção.

– Seu X-8? – pergunta Sessão – o seu Garcia, lá do bar, nos indicou o seu nome e a gente veio ver se o senhor pode nos ajudar…

O detetive sabia perfeitamente qual era o problema delas, mas sabia que tinha que as deixar desabafar. Fez um gesto em direção ao banco que tinha comprado recentemente, de uma churrascaria que estava melhorando de vida, e que acomodava muito bem as quatro.

Ele fez umas poucas perguntas e o resto ficou por conta das sofredoras: queixaram-se por longo tempo dos problemas que surgiam quando uma delas era chamada a atender uma pessoa que não sabia as diferenças entre elas e não sabia como as escrever num ou noutro dos seus significados.

Elas tinham muita vergonha de aparecer erradas até em publicações e não sabiam direito quais as suas origens, de modo que até mesmo elas às vezes se confundiam. Isto as colocava em crises de angústia das mais elevadas, já que elas eram palavras sérias, que gostariam de ser usadas apenas no contexto certo, seguindo a ética, etc. etc.

X-8 ouvia com toda a sua paciência, tanto por amor às palavras como por amor ao pagamento que esperava extorquir delas. Por fim disse:

– Posso ajudar vocês agora, já, neste momento. Mas isso vai requerer um gasto extra de fósforo e aminoácidos para o funcionamento de meus neurônios, que vou ter que repor imediatamente, sob pena de arriscar minha vida num desequilíbrio físico-químico metamórfico e hidroeletrolítico pneumo-vagal anancástico que me deixe para sempre babando como um vegetal, o que privaria o mundo prematuramente da minha presença e ajuda.

As palavras, impressionadíssimas, disseram que não havia problema, pois elas tinham recebido seus salários naquele dia e estavam bem providas. Por isso é que tinham ido ao bar, aliás, à procura de um pouco de diversão sadia.

Remexeram nos bolsos e produziram, que coincidência, justamente o valor dos emolumentos de X-8. Assim que ele colocou no bolso o maço de dinheiro, olhou para as palavras, com ar de quem sabe mais sobre elas do que elas mesmas:

– Para início de história, três de vocês são homófonas.

As palavras suaram frio. Isso teria cura? O silêncio era pesado. Elas estavam pendentes do que dizia o detetive, ávidas por ouvi-lo. Ele continuou:

Homófona vem do Grego homo-, “igual” mais phonos, “som”. Isso quer dizer que as três têm o mesmo som. Apenas Secção não se enquadra nisso. E olhe lá, que em nossos dias de ignorância talvez haja quem não a saiba pronunciar corretamente.

A confusão se instala devido a essa pronúncia idêntica e sentidos diferentes. Você, por exemplo, Cessão: sua origem está na palavra latina cessio, que vem de cedere, “ceder, ser deslocado, retirar-se”. Ceder, hoje, significa em Português, “desistir, abrir mão, emprestar, dar, passar adiante”.

Este verbo, inclusive, faz parte de um adágio latino: Cedant arma togae, “Cedam as armas às togas”, ou seja, as atividades militares devem atender às disposições dos magistrados, da Justiça.

Há diversas parentes desta palavra em uso atualmente, como concessão, cedência, aceder, etc.

Sessão tem origem numa homófona da origem de Cessão. Vem do Latim sedere, “sentar”. Uma “sessão”, seja parlamentar, espírita, de reunião de condomínio ou outra coisa, normalmente é feita com as pessoas sentadas.

Vejam vocês, suas avós eram homófonas e vocês resultaram assim. O que é a Genética, não?

– E quanto a nós? – perguntaram juntas Secção e Seção.

– Vocês têm outra origem. Descendem de sectio (não se esqueçam que esse “-ti-” soava como “-si-“: “secsio”), referente ao verbo secare, “cortar”. São seus parentes: seccional, “parte de uma organização”, seccionador, “aquele que corta, que tira pedaços”, secante, “linha que corta outras duas”.

– E qual o papel exato de cada uma de nós? – perguntou Secção.

– Vocês são exatamente a mesma coisa. Você segue mais de perto os passos da sua antepassada; e você, Seção, está mais dentro da tendência moderna de simplificação. Mas vocês podem ser usadas indistintamente, com o sentido de “parte de uma organização ou instituição, departamento.”

Claro que X-8, com a sua longa experiência em psicologia das palavras, sabia o que se passava dentro da cabeça das duas. Imaginou Secção pensando:

– Hum, eu é que sou clássica, que acompanho a tradição da velha Roma. Esta recém-chegada inexperiente acha que é grande coisa mas é nas minhas costas que é levada a História, não no lombinho tatuado dessa figurinha insolente.

Por outro lado, na cabeça de Seção deveria estar correndo:

– Coitada da tia aqui; deve estar morrendo de inveja porque eu é que sou moderna e atualizada, eu é que estou em dia com a moda e não preciso carregar aquela letra dispensável, para não falar de todo aquele botox que ela precisa usar.

O detetive percebeu, pela atitude corporal das duas, que ali devia estar acabando uma bela amizade. Mas, que fazer? A Etimologia exige rigor; não se pode dobrar às conveniências, nem de pessoas nem de palavras.

X-8 deu por encerrada a consulta. As palavras se despediram e se retiraram, comentando entre si a espantosa capacidade profissional do detetive, que havia respondido às dúvidas delas sem hesitar e sem consultar um livro sequer.

Elas levavam cartões dele e estavam louquinhas para contar às amigas a história daquele encontro fortuito e para fazer encaminhamentos para aquele espécime ressurgido dos antigos filmes preto-e-branco.

O detetive as olhou afastando-se pela janela por um momento e depois não pôde mais resistir. O pacotinho mal feito o chamava desde a gaveta. Lentamente, suando, ele se aproximou dela e o retirou.

As mãos tremendo um pouco, ele rasgou o papel, atrapalhando-se com a fita adesiva.

Espalhou o conteúdo sobre o tampo da mesa. Olhou, prelibando as delícias que ali estavam, tentadoras, à espera dele.

Não era mais hora de trabalhar. Ele já tinha ganho honestamente o seu dia, já tinha ajudado palavras em necessidade.

Que mal haveria em ele se dedicar só mais uma vez a… ao… Uma voz dentro dele completou, brutal e secamente: ao vício!

Ele parou. Sentiu com toda a nitidez a ficha caindo, com um tilintar doloroso, no meio do seu cérebro: ele era um adicto, um viciado, uma pessoa que por ora ainda estava cumprindo um papel na sociedade, mas que em breve talvez estivesse rolando pelas ruas sórdidas daquele bairro horrível.

Imaginou-se com a gabardine toda rasgada, com o chapéu furado, as pessoas que se dessem ao trabalho de o olhar vendo finalmente como era o seu rosto.

Pensou em pais mostrando-o como exemplo das dos horrores do vício para os filhos; imaginou as mães assustando-os com a presença dele para que se comportassem e comessem toda a comidinha.

Pensou na sua antiga clientela olhando-o a se rebolcar na sarjeta, agarrado ao prazer vazio…

E dentro dele se agigantou um lado sadio, com uma sonoridade beethoveniana, que esmagou com ferocidade aquela banda frágil que o levara à adição, num gesto interno breve porém definitivo.

Ele pegou nos dois objetos que comprara – um pirolito de cereja e um de limão – e os jogou longe pela janela. Chega. Nunca mais.

No dia seguinte ele tinha consulta marcada com seu dentista e poderia contar a boa nova: ele estava finalmente livre!

Dormiu como um santo nessa noite, enquanto ratos e baratas faziam uma festa no meio da rua, deixando apenas os palitos secos dos pirolitos.

Resposta:

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