Palavra códice

COURO

 

Eu ainda não tinha feito dez anos mas já gostava de visitar meu avô em seu gabinete.

Eu me sentia bem com ele e percebia que o velho de barba branca não era na verdade o carrancudo que tentava aparentar. Pelo menos comigo. O resto não importava.

Ah, o seu estúdio! Aquela peça no fundo do pátio era o paraíso para mim. Aconchegante, forrada por livros e objetos interessantes, com estofados de couro amaciado pelo tempo e pelo estudo…

Só muito mais tarde percebi que iria passar a vida toda tentando providenciar um lugar assim para meu uso.

Mas naquele dia, talvez devido à luz do fim da tarde que entrava pela janela, meus olhos estavam atraídos pelo couro das poltronas.

– Quem foi que inventou o couro, Vô? – perguntei, sabendo que ele entenderia o que eu queria dizer.

– Ah, meu rapaz, esse é um dos materiais usados há mais tempo pelo Homem, e sua utilidade está tão presente agora quanto há milhares de anos. Pensando bem, está mais presente ainda.

A palavra que usamos para ele vem do Latim corium, “pele retirada de animal”, do Grego khorion, “couro, membrana, pele”, de uma fonte Indo-Europeia sker-, “cortar”.

– Parece certo, né? Não dá para tirar um couro sem cortar.

– Isso mesmo, para supremo incômodo do portador do couro. Aliás, essa mesma fonte resultou na palavra latina caro, “carne”, pelos mesmos motivos.

O Grego khorion nos deu a palavra de uso erudito cório, usada em Biologia e Zoologia para designar vários tipos de membrana.

E   corium nos deu, por exemplo, couraça, que designa a parte da armadura que protege o tronco, envolvendo peito e costas.

– Ué, Vô, as armaduras não eram de metal?

Couraça é um nome usado até hoje, com base nas proteções mais antigas, que podiam ser de couro fervido, muito resistente e que davam proteção muito boa  –  até que as armas foram se aperfeiçoando e acabaram com a festa.

Veja que existem navios chamados encouraçados justamente por terem uma blindagem especialmente resistente – e ela não é de couro.

– Ia ser difícil costurarem tudo aquilo ao redor do navio.

– Isso, você está ficando mais inteligente a cada dia. O que me lembra que há uma classe de soldados que não temos mais, os couraceiros.

– Andavam com um couro de vaca pendurado nas costas, Vô?

– Não exatamente, seu graciosinho. Começaram no século XVI, com equipamento muito semelhante ao dos cavaleiros medievais. Até o século XIX participaram de batalhas usando a couraça e o capacete.  Eram homens grandes, em cavalos muito fortes, e tinham em conjunto uma especial capacidade de choque.

Até hoje há exércitos europeus – Espanha, Inglaterra, Itália, França, por exemplo – usando regimentos de couraceiros, que fazem bonita figura quando desfilam com seus uniformes de gala.

– Quando o senhor era moço lutou contra eles, Vô? – eu disse com meu ar mais ingênuo  – o que fez o velho me virar olhos esbugalhados e dizer:

– Não, seu tolo. Quando eu servi nas Forças Armadas, a gente usava só pedras e pedaços de pau. Essas modernidades vieram muito depois de minha época. Agora aquiete-se e me deixe contar sobre uma coisa muito interessante.

Se você não sabe, é hora de saber o que é um pergaminho. Trata-se de um material para escrita que teve importância enorme na história humana.

Tudo começou, ao que parece, lá pelo segundo século  AC. Foi quando um tal de Eumenes, governante de Pérgamo, uma cidade da Ásia Menor, ficou aflito porque se defrontou com uma grande escassez de papiro, o material retirado de uma planta aquática e que servia para escrever.

– Ué, naquele época o pessoal gostava tanto assim de escrever?

– Talvez não gostassem tanto, mas precisavam fazer isso para poderem manter funcionando a administração e as leis.  Seja como for, ele acabou determinando o surgimento da indústria do pergaminho, um material feito a partir do couro de novilhos, cabras e ovelhas.

– Mas, afinal, isso é um couro; por que ter um nome diferente?

– Inicialmente, é um couro mais fino, de animais com, digamos, um revestimento menos espesso que o de gado bovino adulto. Depois, o tratamento é diferente: ele é tratado com soda cáustica e não é curtido. Desse jeito, ele não fica impermeável e se presta a receber e absorver tinta. Se não fosse assim, ela iria escorrer e fazer uma lambuzeira daquelas.

– Ah, entendi.

– Pois o material chegou para ficar, ainda mais que, como era mais resistente que o papiro, formado apenas por fibras vegetais, ele se prestava muito bem para o uso em rolos.

– Aqueles que aparecem nos filmes sobre Roma e tempos bíblicos? Aquelas coisas pareciam meio incômodas de se usar.

– Você tem razão. Era mesmo atrapalhado de encontrar uma parte qualquer porque era necessário desenrolar tudo até chegar ao ponto desejado. Foi por isso que se começou a usar uma outra apresentação para a palavra escrita, o códice, que vem do Latim codex, literalmente “tronco de árvore”, porque era feito inicialmente com tabuinhas de madeira recobertas com cera para escrever. O códice tem a estrutura de nossos livros atuais e é muito mais fácil de usar.

– Bem, Vô, mas esse tal de pergaminho já está fora de uso há séculos. Por que o senhor diz que ele é tão importante?

– Engano seu. Ainda hoje há documentos nacionais muito especiais que são feitos em pergaminho.

E mais, há muitos artistas que estão procurando esse material como base para suas obras, pois eles dizem que ele interage com o material de desenho, se retorce levemente e faz saliências e afundados que conferem à obra uma caráter quase de ser vivo. Assim, o século XX viu um renascimento do pergaminho.

Mas a grande importância a que eu me referi é a seguinte: o papiro era muito frágil e permitia a escrita apenas num lado. Já o pergaminho não só permitia fazer isso dos dois lados como deixava que um texto anterior fosse apagado por meio de raspagem e se escrevesse um novo em seu lugar.

Por isso esse material era chamado palimpsesto, do Grego palin, “para trás”, e psen, “esfregar suavemente”.

– E daí?

-Daí que várias obras perdidas, ou seus trechos, foram recuperadas de textos de menor importância. Como o pergaminho era caro, ele era amplamente reaproveitado e muitas vezes eram anotados fatos de menor importância por cima de escritos de grande valor.

Hoje há muito trabalho de pesquisa com equipamentos modernos feito em palimpsestos guardados como tesouros em bibliotecas antigas.

 Veja só o quanto a gente pode aprender simplesmente prestando atenção num material que está espalhado ao nosso redor e que aparenta ser tão banal que a gente nem nota.

E já que você está aí, pegue um pano e me ajude a limpar o couro de meus estofados.

Resposta:

Livros

Eu estava com meus dez anos e já me dava muito bem com meu avô. Era o único neto que não tinha medo do carrancudo velho de barba branca bem curta e olhos azuis penetrantes.

Carrancudo para quem não sabia lidar com ele, pois a doçura que ele mostrava ao conversar comigo e me revelar seus conhecimentos ficou para sempre gravada em meu peito.

Nesse dia eu o via tirar o escasso pó das suas prateleiras enormes, cheias de livros.

Sentei-me no banquinho forrado de couro e perguntei:

– Vô, meus primos disseram que você tem livros com a data de mil e quinhentos Antes de Cristo e que você não mostra prá ninguém, é verdade?

Ele me olhou, deu uma batida final com o pano numa lombada, largou tudo e veio sentar na sua cadeira de balanço, à minha frente.

– Seus primos são umas figuras estranhas. Só porque têm medo de livros, não precisavam inventar tamanha besteira. E você, acho que já deveria saber o suficiente para perceber o que pode ser verdade ou não nessa área.

Hoje vou-lhe falar sobre uns termos relacionados com o livro, mas antes vou contar um fato verdadeiro que aconteceu com uma amiga muito querida.

De certa feita, ela estava fazendo uma mudança. Um dos rapazes da empresa ergueu aos ombros uma das muitas caixas de livros dela e resmungou para o companheiro: “- Odeio livros!”. O companheiro respondeu, de imediato: “- Por isso é que você está aí tendo que carregá-los!”.

Nunca se esqueça, menino, esse é um risco que se corre por não ler.

– Ora, Vô, o senhor sabe que eu gosto de ler!

– Sei, e isso me alegra. Seu primeiro livro fui eu que dei e há muitos outros esperando pela sua atenção aqui em minhas estantes.

Mas deixe-me contar a origem, por exemplo, da própria palavra livro. Ela vem do Latim liber, que designava a camada de tecido logo abaixo da casca das árvores, por onde corre a seiva. Era nesse material que se escrevia antes da descoberta de um outro, feito com o caule do papiro, uma planta quática.

E liber vem do Indo-Europeu leub-, “arrancar, descascar”, que era o que se fazia para obter tal tecido.

– Esses antigos sabiam que estavam construindo um idioma, Vô?

– Não tinham a menor noção. Mas elaboraram sistemas de comunicação extraordinariamente eficientes.

– E a capa do livro, eles faziam então com a casca das árvores? Devia ficar bonito!

– Não, nada disso. Por muito tempo esses materiais, incluindo o feito com papiro, que era muito melhor, eram usados em rolos que nem esses que a gente vê em filmes da época de Roma. Portanto, não existiam capas. Essa montagem que agora conhecemos como livro era chamada de códice, que vem do Latim codex, inicialmente “tabuinha com escrita, registro”.

– Devia ser complicado para os alunos da época colocar todos os rolos nas mochilas, né? Aposto que foi por causa deles que se trocou um tipo pelo outro.

– O ensino não era como agora e eles não levavam o material em mochilas. Realmente, era necessária certa prática para desenrolar um cilindro com uma mão e enrolar com a outra, sem deixar uma tripa de papiro arrastando pelo chão. O pior era achar uma determinada parte dentro de um rolo daqueles. O códice ou livro era bem mais prático nesse sentido e se desenvolveu a partir do cristianismo, com os registros eclesiásticos e a Bíblia.

Você falou em capa. Essa palavra vem do Latim capa, “roupa com cobertura para a cabeça”, derivada de caput, “cabeça”. Serve para proteger o conteúdo do livro, que era um objeto muito caro nos seus primórdios, pois era feito à mão. Um livro tem duas capas, unidas pela lombada. Esta vem do Latim lumbus, “dorso, rins, lombo”, pois faz pensar nas costas de um animal.

As capas podem não ser duras; é o caso das brochuras, com capa de papel mesmo e, por conseqüência, mais baratas. Essa palavra vem do Francês brochure, “junção costurada entre folhas de um livro”, do verbo brocher, “fincar, espetar”, de broche, “instrumento perfurante”.

– E as folhas? Eram feitas de folhas verdes mesmo? Não secavam depois?

– Você está me saindo ou muito gracioso ou muito burrinho, não sei ainda bem o quê. Estou de olho em sua figura.

Mas essa palavra vem mesmo das folhas das árvores, porque a Sibila, aquela dos oráculos, escrevia suas predições em folhas de palmeira. Esse nome depois se aplicou aos pedaços de papel que compõem um livro.

– Ainda tenho colegas que fazem uma confusão bárbara entre folha e página.

– Esta última vem do Latim pagina, “retângulo formado pelos galhos da parreira”. Os romanos compararam uma latada de vinhas à folha do livro e a própria planta seriam as palavras.

Eles eram inicialmente um povo agrícola e formaram muitas de suas palavras a partir dessa área, como o provam folha, livro e página.

Aliás, há mais coisa ainda com essa inspiração: uma linha escrita se chama verso, sabia?

– Ué, eu achava que verso eram aquelas coisas que a gente era obrigado a recitar bem no começo do primário!

– Acabou sendo, mas o sentido original é “linha”, por comparação com o o sulco do arado. Este escavava em linha reta e, nos limites do campo, virava para recomeçar, paralelo ao anterior. Essa virada era o versum, do verbo vertere, “virar”, que acabou designando a linha traçada.

Aliás, linha também vem do Latim, de linea, “fio, corda, linha”, derivado de lineum, “linho”, do qual eram feitos tecidos e fios. A comparação é pelo predomínio do comprimento sobre a largura.

– No outro dia o Pai me pediu para baixar um pouco o volume da música e perguntou se alguém tinha visto o segundo volume de um certo livro. Que confusão é essa?

– A pergunta é boa. Ocorre que os romanos chamavam cada um dos seus rolos de escritos de volumen, do verbo volvere, “virar, fazer girar, enrolar”, pois esse ato tinha que ser feito durante a leitura. Por analogia, cada livro de uma obra ou coleção recebeu esse nome também.

– E o da música?

– A palavra volume acabou sendo aplicada a “massa, quantidade” a partir do espaço ocupado por um livro. Aplicou-se mais tarde a “intensidade”, inclusive sonora, seja para música de verdade, seja para pagode.

– O Pai estava elogiando a fonte em que era escrito aquele livro. Também achei as letras bem bonitas, mas por que esse nome?

– Essa palavra vem do Latim fundere, “derreter, derramar, verter”, porque os tipos de letras eram fundidos, isto é, derretidos, nas tipografias, a partir de uma liga de chumbo.

Mas está na hora de você voltar para casa e fazer os seus temas, rapazinho. Nunca se esqueça: é mais fácil carregar livros dentro da cabeça do que às costas.

Até à próxima.

Resposta:

Origem Da Palavra