Palavra esferográfica

Material De Escrita

Nem os combates nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial se comparavam às cenas que ocorrem em minha sala de aula. Hoje a causa da batalha foi que alguém pegou o lápis de outro alguém e isso bastou para que todos acabassem neste frenesi guerreiro.

Socos, pontapés, rasteiras, puxar de cabelos, mordidas, xingamentos. Só não há mortes porque eu proibi terminantemente facas, fuzis e granadas.

E eu aqui no meio disso tudo, sem me alterar. Hoje fui esperta. Tomei uma dose extra preventiva de Nervocalm, à base de maracujá e extrato de cérebro de tartaruga, e estou me sentindo impassível.

Mas vou cortar o pugilato para evitar queixas dos pais destas gracinhas que o Destino me enviou para ensinar. Devo ter feito algo muito ruim em alguma vida passada, mas deixo para ruminar sobre isso depois.

– Aqui, criancinhas queridinhas, vamos nos sentar em roda e falar sobre a causa de tudo isto. Hum, estão cansadas de bater e apanhar e preferem seguir minha sugestão. Ótimo.

Certo, o lápis de cor da Patty sumiu e ela foi ver na mochila da Aninha, que ficou ofendida e puxou o cabelo de outra menorzinha que ela, para se garantir, que deu um pontapé no Zorzinho… Está bem, não precisam me contar mais, essa história eu já ouvi há tempos.

Olhem aqui, vou contar sobre a origem da palavra lápis. Eu já falei sobre isso, mas vocês já devem ter-se esquecido, pois foi em outro ano letivo. Claro que, se se tratasse de cantora ou jogador de futebol, vocês saberiam até o endereço e o CPF.

Vejam, esse objeto tem seu nome derivado do Latim lapis, “pedra”. Inicialmente, em Roma, se escrevia com pedaços de pedra de hematita, o lapis haimatites.

Antes que perguntem, essa segunda palavra vem do Grego haima, “sangue”, pois ela produzia um traço vermelho. Sim, a mesma palavra que originou hemácia, hemograma e outras.

Certo, Aninha, lápide também vem do Latim lapis, pois se tratava de uma pedra colocada sobre um túmulo. Muito bem. Fino, o seu faro.

Como, Val? Ah, uma viúva que mora no seu edifício escreveu uma porção de desaforos na lápide do falecido quando descobriu que ele tinha deixado mais duas viúvas? Não, não queremos mais pormenores sobre o assunto, deixe para lá, que agora eu vou contar que, bem antigamente, o que havia para escrever eram pontas afiadas para riscar a pedra ou a argila. Daí que a palavra usada em Grego para “escrever”, graphein, originalmente queria dizer “arranhar”.

Sim, Joãozinho? Pornografia? Tem que ver com o assunto, sim, mas não falarei sobre isso hoje. Nem outro dia, aliás. Fique quieto.

Vou é contar que havia um instrumento pouco sutil para escrever na pedra, o cinzel, que vem do Latim cisellum, “instrumento de corte”, de caedere, “cortar”.

Não, apesar dos desenhos animados e historinhas, o pessoal das cavernas não escrevia cartas com ele em placas de pedra. Essa ferramenta era usada para inscrever textos em prédios públicos, por exemplo.

Assim que se deixou de riscar na pedra e no barro, deu para usar instrumentos com pontas mais maciazinhas, como o pincel, por exemplo, que vem do Latim penicillus, “pincel”, cuja origem mais remota não vou dizer para não assanhar o Joãozinho ali, que hoje parece particularmente incontrolável. A primavera sempre agita crianças e adultos.

Além deste instrumento para escrita e desenho, temos a caneta, que vem do Grego káuna e do Latim canna, “talo, cana de planta”. Sim, antes se cortava um pedaço de planta adequado, molhava-se a ponta dele em tinta e se escrevia por alguns segundos, até a tinta terminar e a pessoa ter que mergulhar de novo a ponta no tinteiro.

O que é mais do que se consegue que um aluno escreva hoje em dia, mesmo com a melhor esferográfica.

Aliás, o nome desta vem daquele graphein de que falei acima, mais sphairos, “bola, esfera, objeto redondo”, já que a base do seu funcionamento é uma esferinha de metal e uma tinta mais espessa. Tinta essa que, quando suja a roupa da gente, nunca mais sai.

Antes desta, a gente usava a caneta-tinteiro, que tinha um depósito de tinta no corpo e que dava uma escrita maravilhosa. E antes ainda, era a pena de aço.

Não, Ledinha, não quer dizer que houvesse aves de metal com penas de aço. Elas eram chamadas assim por tradição, porque funcionavam de modo análogo às penas de ganso e outras aves, que eram arrancadas e tinham uma extremidade cortada obliquamente. Depois eram usadas tal como os talos das plantas de que falei, sendo mergulhadas na tinta e servindo para escrever um pouquinho só antes de secar.

E pena vem do Latim pinna, “asa, pena, extremidade”.

Não, Mariazinha, eu não fui alfabetizada usando penas de ave nem talos de planta. Nasci um pouco depois disso.

Sei, era muito trabalhoso escrever daquele jeito. Mas vejam, foi com instrumentos deste tipo que tantas obras-primas de literatura e música foram escritas. Infelizmente, o uso do instrumento sensacional que é o computador para escrever não parece ter aumentado em nada a qualidade da nossa produção intelectual. Só a das besteiras.

Falando em obra-prima, acabo de escutar um som que é melhor do que uma sinfonia para os ouvidos de uma cansada professora: o sinal do término das aulas.

Todos para casa, sem brigas na saída.

Resposta:

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Quietos, todos! Estão pensando que a Tia Odete não percebe nada só porque usa óculos? Pois eu enxergo e ouço muito bem, bandidinhos.

Por exemplo, vejo que o Joãozinho ali não pára de olhar para uma misteriosa revistinha que tem escondida na mochila; que o Zorzinho está escrevendo sem parar coisas que nada têm que ver com nossa aulinha; que o Soneca está dormindo o sono dos anjos; que o Artur está com muita cara de sonso e deve estar aprontando alguma; que o Sidneizinho faz sinais para a Mariazinha e que esta ameaça bater nele.

Tia Odete é espertinha! Muito mais do que vocês pensam. É uma pena que vocês não… Ei, está aí uma palavra interessante. Vocês se lembram de uma aulinha em que eu falei sobre material escolar? Ali eu dei as origens de palavras como caneta, papel, lápis e outras.

Pois agora, para acalmar um pouco a turma, vamos falar sobre outras palavrinhas relacionadas com essas.

Vamos ver a pena, por exemplo. Agora praticamente só se usa a palavra caneta – vem de cana, lembram-se? – para dizer “instrumento de escrita à tinta”. Mas pena ainda tem pelo menos o sentido metafórico: “A pena vale mais que a espada”, etc. Há quem goste de pensar assim, mesmo nestas épocas em que a espada anda tão à solta, cortando cabeças pelo mundo.

Sim, Ledinha, os soldados usam muito pouco a espada para lutar agora. Eu sei que o que eles usam mesmo são armas de fogo. Eu citei “espada” em sentido metafórico.

Pois se usava mesmo uma pena – de pato, de ganso, etc. – para escrever antigamente. Fazia-se uma ponta nela e então ela era mergulhada num vidro de tinta. Esta subia para dentro do interior oco da haste, ou cálamo, e dava para escrever umas poucas palavras antes que ela terminasse. Imaginem o trabalhão que dava, escrever molhando constantemente a pena no tinteiro!

Não, Ledinha, não creio que tenham usado pena de avestruz para melhorar a situação. As que usavam eram menorzinhas mesmo. Mas o pessoal se acostumava. Se eu me acostumo com certas atividades, por que eles não se ajeitariam com isso?

Mas, como eu ia dizendo, pena veio do Latim pinna, “asa, pena, extremidade, flecha”.

Muito bem, Humbertinho, há uma outra palavra igual com outro sentido. Existe na nossa língua a palavra pena no sentido de “castigo”. E também no de “lástima, dó”.

Esta vem também do Latim, mas da palavra poena, que expressava “castigo, compensação por uma má ação, resgate”.

Como ela se referia a uma ação que sempre era de lamentar, mesmo que merecida, o sentimento gerado por ela acabou designando também a “lástima” que citei.

É uma pena que eu não possa pegar a pena e condenar certas pessoas à pena de cadeia por algum tempo. Ouviram??

Chii, uma meia dúzia pulou aí, por que será?

Os estudantes e escritores antigamente usavam penas em caixas e gastavam uma grande quantidade delas. Se vocês olharem gravuras antigas representando estudantes e professores da Idade Média, verão que eles andavam com essa caixa e um tinteiro pendurados do cinto.

Hein? Não, Mariazinha, não sei se os patos e gansos viviam pelados e tremendo naquelas épocas. Talvez, se sentissem frio, as donas lhes tricotassem umas roupinhas de lã. Sei lá. Acho que faltei a essa aula quando eu estava estudando.

Uma coisa indispensável para usar as penas era um apontador, na época uma pequena faca bem afiada. Esta palavra vem do Latim puncta, “ponta, voto, ponto no jogo, espetada”. Um objeto ad punctam servia “para apontar”.

Quando eu era pequena a gente surripiava uma gilete usada do pai para apontar os lápis. O apontador como o que vocês têm agora servia muito bem, mas quando a gente queria um lápis apontado de um jeito especial, só com a gilete. Hoje em dia, a maioria dos aparelhos para fazer a barba não apresentam aquele tipo de lâmina e não permitem fazer aquelas pontas divinas.

O nome desse objeto vem de um americano que nasceu em 1855 e morreu em 1932, o senhor King Camp Gillette.

Não, senhores, não foi nenhuma coincidência ele ter nascido com este nome, não. O sobrenome dele é que passou a designar o objeto, que a rigor devia ser designado por “lâmina de barbear descartável”.

Isso se chama eponímia. Esta palavra se formou do Grego epi-, “sobre”, mais onyma, “nome”. Um epônimo é uma palavra que se usa para designar algo a partir do nome do criador ou de uma marca. “Sanduíche”, “volt”, “watt” são exemplos.

Bem; acontece que o senhor Gillette conhecia o inventor das tampinhas de garrafa. Um dia, em conversa, este comentou que o futuro estava em fazer objetos descartáveis e baratos.

Uma manhã de 1895, pensando no assunto enquanto fazia a barba com aquelas navalhas antigas, Gillette percebeu que o que importa numa navalha é apenas a sua borda afiada. Todo o resto é apenas para manejar o instrumento. A partir daí o seu pensamento evoluiu, e oito anos depois ele estava produzindo suas lâminas de barbear descartáveis, encaixadas em aparelhos adequados para portá-las.

Ele levou um susto no primeiro ano, quando verificou que tinha vendido apenas 51 aparelhos de barbear e 168 lâminas.

Felizmente a situação mudou logo e, no fim do ano seguinte, ele já tinha vendido mais do que doze milhões de lâminas, constituindo um sucesso enorme.

Voltando ao assunto de escrever: se a caneta-tinteiro, tão usada antes, agora está sendo pouco usada, é porque a esferográfica tomou conta do mercado. Ela é muito barata, mais ágil, não derrama – embora não permita uma letra bonita e de classe como a outra.

A caneta-tinteiro às vezes derramava a sua tinta. Quando a gente viajava de avião – olha só, falei em avião e o Soneca acordou – recebia, antes da decolagem, um recipientezinho de papel mataborrão para colocar a caneta, porque a diminuição da pressão ambiente fazia a tinta sair e emporcalhar toda a roupa.

Não, Soneca, a Tia Odete não andava de dirigível nem de biplano. Eram os DC-3, os Curtiss C-46 e outras coisas românticas, lentas e barulhentas.

O papel mataborrão recebeu esse nome porque ele absorvia a tinta. Ele era bem grosso e poroso, para esse efeito. A gente escrevia um pouco e passava o papel em cima da folha. Em algum tempo o papel estava saturado e era necessário trocá-lo.

Ah, se existisse papel mataburrão eu ia comprar resmas…

Mas eu tinha citado as esferográficas. Sabiam que este tipo de caneta foi inventado aqui na América do Sul?

Foi assim: o desenvolvimento delas começou na Hungria, logo antes do começo da Segunda Guerra Mundial, com um jornalista chamado Laszlo Biro. Com seu país invadido, ele se refugiou na Argentina, onde patenteou a idéia em 1943.

Nesse ano, um inglês comprou os direitos da invenção e a caneta começou a ser produzida na Inglaterra, para poder ser usada pelos navegadores de bombardeiros. Eles não podiam usar canetas-tinteiro nas alturas em que voavam, pois a tinta fazia uma grande sujeirada. As primeiras esferográficas da Europa foram feitas por um grupo de dezessete moças num hangar abandonado.

O lançamento das canetas para o público civil foi feito em Buenos Aires no começo de 1945. A marca “Birome” foi conhecida na Argentina por muito tempo, chegando a constituir um substantivo comum, como “celofane” e “frigidaire”. Ou seja, um epônimo.

Nessa época, as esferográficas foram vistas em Buenos Aires por um comerciante americano esperto, que descobriu que o Sr. Biro não havia patenteado o objeto nos Estados Unidos. Ele voltou correndo para a sua terra e lançou lá o produto.

No primeiro dia de vendas, 29 de outubro de 1945, foram vendidas dez mil canetas, apesar de serem ainda caras.

Viram só? Quando patentearem algum invento, tratem de pensar bem o que estão fazendo.

Artur, largue já essa borrachinha e o clipe! Era isso então que você estava aprontando. Não vê que pode machucar alguém se atirar? Passe para cá.

Já que estamos falando em invenções, vocês já perceberam que invenção simples e útil é o clipe para papéis? Um aramezinho torcido do modo certo e pronto, já podemos unir nossos papéis espalhados.

Papéis, Robertinho, papéis. Não, na Antigüidade não se prendia papiros ou pergaminhos com clipes, pois este só foi inventado em 1900, quando aqueles materiais já não eram usados no dia a dia. Foi um norueguês chamado Johann Vaaler que teve essa idéia genial.

E idéia é tão simples que a única alteração feita nela até hoje, lá por 1950, foi fazer uma pequena dobra para fora da ponta interna do clipe, de modo a permitir que o papel entre mais facilmente.

Falando em material para escrever, no outro dia vi no jornal uma frase assim: “Eu reconheci a caligrafia dele”.

Vejam só. Esta palavra está sendo usada para dizer “a letra, a escrita, a grafia dele”. Mas está errado usá-la assim. Caligrafia vem do Grego kalós, “bonito” mais graphéin, “escrever”.

Na verdade, o sentido original desta última palavra era “arranhar, sulcar, marcar” como em pedra, passando depois a significar “escrever” por modos de qualquer tipo.

Logo, dizer caligrafia é dizer “letra bonita”. Que é uma coisa que vocês aqui jamais vão ter se não começarem a escrever logo e muito. Hein? Está bem, o Zorzinho escreve muito e nem por isso tem letra bonita, mas aposto que quando ele for grande as pessoas vão fazer fila para ler os escritos dele, de tão linda que vai ser a letra.

Agora, com o uso do computador, as letras à mão cada vez ficam cada vez mais horríveis. Vai-se poder falar mais apropriadamente em cacografia, de kakós, “feio” em Grego.

Agora está tocando o sinal para a saída. Sejam kalós e saiam em ordem. Nada de fazer coisas kakós por aí. Até amanhã.

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