Palavra massa

Massa

Um escritório totalmente em preto-e-branco do decadente Edifício Éden, num bairro da cidade cuja existência é negada pela Prefeitura, de tão ruim que ele é.

Tudo o que entra ali perde a cor e se qualifica em tons de cinza. Há uma enorme escrivaninha de frente para a porta de entrada, atrás da qual se senta o Detetive Etimológico.

Seu rosto audaz, de linhas nobres, feições endurecidas pelas lutas que ele mantém pelo conhecimento das origens das palavras que ele jurou defender, ostenta o olhar de águia do guerreiro que está sempre atento às armadilhas que possam estar preparadas contra ele.

Pelo menos é assim que ele se imagina, pois de fora ninguém consegue enxergar a sua face, escondida entre o chapéu de abas largas e a gabardine folgada com gola levantada.

Ele está ali e espera pacientemente pela palavra que está indo consultar com ele. Os passos dela ressoam, tímidos, pelo corredor e vão se aproximando da porta onde há apenas uma placa de latão polido – a única coisa polida no bairro, aí incluídos os modos dos habitantes – que diz apenas “X-8”.

A palavra bate à porta e entra, após um instante. Senta-se à frente da escrivaninha e, após um gesto cheio de simpatia dado pelo chapéu, faz a sua consulta.

– Como o senhor vê, seu detetive, eu sou Massa. Não conheço a minha origem, gostaria de sabê-la e juntei um dinheirinho ao longo destes tempos de trabalho para investigar…

O corajoso detetive olha para ela, concentra-se um pouco (para impressionar; como ela tinha marcado a consulta com antecedência e dado o nome, ele havia preparado tudo) e começa:

– Seu nome vem do Latim massa, “pasta, massa, amontoado de material”, do Grego máza, “bolo de cevada”, relacionado a mássein, “amassar, juntar, unir”.

Assim, tanto pode ser usado para descrever um agrupado coerente de material como um alimento feito da farinha de algum cereal: talharim, raviólis, nhoques, chlépt.

Este aspecto gastronômico ocorre em Português, veja bem, pois em idiomas como Espanhol e Italiano a palavra usada é pasta.

Você tem parentes, palavras que derivaram de você. Uma delas é maciço, com o significado de “sólido, volumoso, grande”. A atual moda de fazer traduções descuidadas de filmes falados em Inglês está gradualmente familiarizando nosso povo com a detestável palavra massivo, de massive, que significa exatamente maciço e como tal deveria ser traduzida.

Falando em Inglês, há que ter cuidado ao ler mass, pois lá essa palavra tanto pode querer dizer massa – no sentido físico – como missa.

Com este último sentido, ela deriva da frase em Latim que se dizia no fim do serviço, Ite missa est, “Ide, estão enviadas” (as vossas palavras, vossos pedidos, orações”, do verbo mittere, “mandar, enviar”.

– E diga-me, senhor detetive, minha homófona maça é também parenta? Sabe, aquele martelo com pontas que o pessoal na Idade Média usava para dar dores de cabeça uns nos outros.

– Não, aquela palavra, apesar do som idêntico ao seu, vem do Latim mattea, “cabo de madeira”.

Mas você tem um descendente bastante novo, mássico, bem pouco conhecido . Ele é usado em Física e quer dizer “relativo à massa como grandeza física”. Esse só circula em esferas muito especializadas.

– Mas massacre deve ser parente, né, com aquela massa toda de gente sendo morta…

– Pois não é. Na verdade, a origem dessa palavra tão assustadora é desconhecida. Mas, para compensar, pode estar certa de que massificar, “tornar todos iguais, padronizar, vulgarizar” é sua descendente.

Por ora é o que eu tenho a lhe contar sobre suas origens.

Agora, se você puder me repassar os honorários…

A palavra saiu, satisfeita. Agora ela se sentia melhor, tinha uma história, uma identidade. E X-8 tinha mais um dinheirinho no bolso.

Resposta:

Comidas

Parem! Parem! Ai, São Pedro, porque você tinha que fazer chover logo hoje? Por que não no fim de semana? Agora estes capetinhas não podem sair para o pátio no recreio e eu fico com o caos no colo. São Pero Botelho, dai-me um relho!

Quietos! Robertinho, sente! Joãozinho, não abaixe as calças! Pare de olhar com esses olhos arregalados, Joana Beatriz! Zorzinho, pare de escrever, Valesca pare de falar, todos, se possível parem de respirar!

Não deu? Então vamos fazer o seguinte: vamos sentar e falar sobre comida, já que está na hora de comer a merenda mesmo. Você sabia, Leonorzinha, que a palavra arroz, que não pode faltar em nenhuma mesa, vem do Grego oryza, arroz mesmo?

E essa palavra vem do Sânscrito vrihi, com o mesmo significado. Por que essa cara de quem vai vomitar? Ah, você não gosta de arroz? Nem de um bom risoto, que vem do Italiano riso?

Hum, eu acho que os seus pais vão ter que lhe providenciar uma terapia comportamental. Vou falar com eles depois.

Mas então vamos falar daquele companheiro constante do arroz, o feijão. Este nome vem do Latim phaseolus e do Grego phaséolos, ambos significando feijão mesmo.

Hein? Não, Ledinha, os guerreiros gregos não eram fortes porque comiam feijão antes de guerrear, não. Não, meu bem, tampouco foram eles que inventaram a feijoada. Quem a inventou não sei, mas deve ter sido aqui no Brasil mesmo.

Falando em grãos, ocorre-me o milho, cujo nome vem do Latim milium, provavelmente relacionado ao numeral “mil”, pela quantidade de grãos. Se vocês contarem isto em casa, seus pais, que com certeza são muito cultos vão protestar, dizendo que em Roma não havia milho, o qual foi levado da América para a Europa.

Se isto acontecer, expliquem que os romanos aplicavam esse nome a uma outra gramínea, originária da Índia, que os espanhóis hoje chamam de trigo candeal. A palavra milho acabou sendo usada depois para a Zea mays, que é o nome científico do milho que veio do Novo Mundo.

Também temos o trigo, do qual são feitos esses sanduichinhos tão bons que o Soneca e o Artur estão comendo – não, queridos, não era essa a idéia mas, bem, se vocês insistem, não vou fazer desfeita, aceito, sim – esperem que eu engula, é feio falar de boca cheia. Como eu dizia, essa palavra vem do Latim triticum.

Humm, muito bons. Vou aceitar mais unzinho…

Ah, antes que me esqueça: a ervilha vem do Latim ervilla, diminutivo de ervum, uma planta parecida com a atual ervilha, que serve como forragem, isto é, alimento para o gado.

Sim, Valesquinha? Não, não creio que a vizinha de vocês coma forragem. Está bem, a sua mãe pode dizer que ela é uma vaca, mas ela com certeza quer dizer outra coisa. Será que não quis dizer que “Ela comprou uma faca”? Ou “Ordenhou uma vaca”? Ou “Precisou de uma maca”? Com certeza não? Bem, vamos mudar de assunto. De qualquer forma, não repita isso para a vizinha, por favor.

Um prato que costuma acompanhar a comida é a salada. Este nomezinho vem do Italiano insalata, “salgada”, do Latim insalare, de in-, “em”, mais salare, “salgar”. Em Espanhol a palavra mudou menos que no nosso idioma e se diz ensalada.

Tá certo, pessoal, a salada de frutas não é salgada. A semelhança não é pelo tempero, é pela mistura de diversos elementos.

Essa palavra pode ser aplicada também para qualquer conjunto desordenado, como na frase “As crianças fizeram tamanha salada na aula que a pobre professora morreu de desgosto na frente delas e depois do enterro veio puxar os pés delas todas as noites”. Explicar melhor? Ora bem, foi apenas uma frase que me ocorreu. Vamos adiante.

Também podemos comer massa. Esta palavra era massa em Latim, e maza em Grego, onde queria dizer “conjunto, o todo, massa”. Sim, Valzinha, amasso vem daí. Como, o que é “um bom amasso”? Aaah… imagino que deva ser o que o fabricante de talharim faz ao preparar o seu produto, não?

Bem, mesmo que você não acredite em mim, fique quieta e não diga nada à Lúcia aí do seu lado, que quem quer estudar Teologia no futuro não deve aprender certas coisas.

Também podemos comer ovo em diversas formas. Esta palavra tão curtinha vem do Latim ovum – não se mexa, Joãozinho, não diga nada, nem sequer abra a boca! – que era oon em Grego, que veio do Indo-Europeu owyo.

Do ovo podemos fazer, por exemplo, uma omelete. Esta palavrinha vem do Francês omelette, que vem de alemette, que vem de alemelle, “lâmina de faca ou de espada”, que vem de la lemelle, “a lâmina”, que vem do Latim lamella, “prato delgado e pequeno”, que vem de lamina, “camada, prato”.

Pode-se comer ovos Benedict também. Eles são uma entrada com pão, molho e presunto, inventados na Nova Iorque de 1920 para o casal LeGrand Benedict, que pediu alguma coisa fora do cardápio de sempre. Pois na hora foi inventado esse prato. Cozinheiro criativo, esse.

Falando em molho, este vem da palavra “molhar”, pois é isso que ele faz quando é acrescentado a algum prato. E esse verbo vem do Latim molliare, “molhar”, mais exatamente “tornar mole por contato com a água”.

Também podemos comer um bom bife. Tal nome vem do Inglês beef, que veio do Francês boeuf, “boi”. E que, por sua vez, veio do Latim bos, com o mesmo significado, relacionado com o Grego bous, idem.

No fim da refeição muitas vezes comemos frutas. Esta palavra é do Latim fructus, “produto, proveito, fruto” e veio de frug-, raíz do verbo frui, “usar, aproveitar, desfrutar”.

Não se esqueçam que, depois de uma experiência trágica de fazer merenda apenas com frutas, eu proibi terminantemente que esse tipo de alimento seja trazido para cá.

Ainda no outro dia encontrei um resultado daquela infeliz aventura, uma múmia de banana dentro da minha bolsa, quando fui tirar uma lembrancinha para o aniversário de uma amiga.

Imaginem que vexame! Tive que dizer que era uma brincadeirinha e todas ficaram pensando que eu andava saindo com aquele alemão que anda por aí enlouquecendo as senhoras, o Seu Alzheimer.

Em vez de frutas, podemos comer sobremesas várias. Esta palavra se relaciona com o que está “sobre a mesa”.

Sei, Ledinha, que o resto da refeição também esteve “sobre a mesa”, mas os caminhos que geram as palavras às vezes são meio misteriosos. Em Inglês ela se chama dessert, porque é apresentada ao se retirar o material que a antecedeu. Esse é o momento de “retirar o serviço”, ou desservire, em Latim.

Quem gosta de mousse deve saber que essa palavra é francesa e vem do verbo mousser, “espumar, agitar”. Ela é uma espécie de espuma de delícias que a gente come e… desculpem, a Tia Odete se babou. Ou, para ser mais científica, teve um surto agudo de sialorréia.

Pode-se comer um pudim, do Francês boudin, que parece vir do Latim botellinus, diminutivo de botellus, “salsicha”. Calma, Mariazinha, já explico. O significado atual veio de alimentos feitos dentro de tripa ou sacos, como é o caso das salsichas, e que incham, um hábito que os pudins ostentam.

Em vez do pudim, pode-se apresentar uma torta. Esta vem do latim
torta, “pão redondo, bolo achatado”. Uma torta pode ser de diversos tipos, como a torta “afrodescendente portadora de sofrimento psíquico”, antigamente conhecida por “Nega Maluca”.

Bem, crianças, terminou o recreio. Vamos guardar os restos das merendinhas. Depois dos sanduíches que provei, acho que vou fazer a campanha “Traga a Merenda para Professora”. Talvez assim eu engorde um pouco e vocês consigam algum desconto no tempo que vão passar no Purgatório.

Até amanhã.

Resposta:

A Máfia Da Massa

 

O famosíssimo Detetive Etimológico X-8 está em seu escritório. Como sempre, a sala está cuidadosamente suja e desmazelada.

O prédio é pior ainda e o bairro ao redor do prédio, então, nem se fala.

Ele foi apagado do mapa há muito tempo. Os serviços públicos deixaram de ser prestados, pois a prefeitura desistiu e tem feito até sugestões de emancipação. Só que ninguém se arriscou a ser vereador nem prefeito ali, nem mesmo os políticos mais corruptos.

X-8 está com a sua roupa de trabalho: gabardine cor de areia uns dois números maior que ele, chapéu marrom enterrado na cabeça, mal deixando entrever a ponta do nariz.

Esta noite ele está muito pensativo. Começou recentemente a achar que tudo está muito parado na sua vida profissional.

Quer dizer, dos ganhos ele não se queixa, mas as coisas andam meio sem emoção, entende? Uma palavra chega, pede para saber a sua origem, ele depois entrega um papel explicando-a… Qual é a graça? Cadê a emoção?

Será que sempre vai ficar nisso? Foi para isso que ele tanto estudou e lançou um trabalho sério, a ponto de agora não precisar mais fazer propaganda? Faz falta mais adrenalina, alguma coisa que sacuda esta mesmice!

– Mudanças, sensações novas, onde estão vocês? – pensa ele, dramaticamente virando os olhos para o teto escuro e com teias de aranha, mas enxergando apenas a aba do chapéu.

Elas chegam de sopetão, abrindo a porta do escritório, entrando e se espalhando pela sala.

O espanto faz X-8 arregalar os olhos, arrependendo-se mortalmente dos desejos recém-expressos.

Sim, pois quem entrou foi um grupo de sete figuras, todas com gabardines e chapéus enterrados na cabeça, tal como ele. Todas elas estão com as mãos firmemente enfiadas nos bolsos.

Olham ao redor em silêncio e se distribuem pela sala cheia de sombras, como obedecendo automaticamente a um plano.

Um fica ao lado da janela, olhando cuidadosamente para fora; outros dois, junto à porta de entrada, que tinha sido fechada e chaveada assim que entraram; os demais se espalham em leque pela sala. Todos ficam voltados para o detetive sentado, nenhum se colocando numa possível linha de fogo alheia.

X-8 está imóvel, duro, hirto, rígido, o que todos vêem. Também está alvo, pálido, céreo, lívido, o que os visitantes não percebem porque não lhe enxergam o rosto.

Por um longo minuto, aquele que está à frente do grupo o encara. Por um minuto mais longo ainda, X-8 o encara de volta.

Ele faz isso não por querer, mas porque está completamente paralisado.

De repente, o chefe deles faz um gesto com a cabeça e todos começam a abrir as capas ao mesmo tempo.

É agora, pelo visto.

Mais ainda do que sente por morrer tão jovem e com tanta contribuição a dar para o mundo das palavras, ele quer saber por que a Máfia – só podia ser ela – ia liquidar com ele.

Não é à toa que ele é um etimologista: gosta de saber a origem das coisas, mesmo que seja a do seu fim.

Momentos especiais da sua vida passam velozmente pelo seu cérebro: a formatura na Faculdade de Etimologia, na Academia de Detetives, o orgulho dos seus pais, ele brincando com as palavrinhas pequenas da vizinhança, o dicionário que ele rasgou e cujas páginas comeu todas quando era bebê…

As capas terminam de ser retiradas.

Ele vê então que são palavras que entraram ali, e que o estão olhando com indisfarçável admiração.

Ouve a voz cálida e com forte sotaque italiano do que estava à sua frente, percebendo que ele é Vermicelli:

– Que tal, rapazes? Eu sabia que ele era durão! Qualquer um, ao nos ver entrar desse jeito, morreria de susto, gritaria, desmaiaria, tentaria fugir, entraria debaixo da mesa… Mas ele, não! Ficou nos encarando ali com a maior tranqüilidade, sem mexer um músculo. Signor Detetive, piacere di fare vostra conoscenza. Como o Sr. vê, eu sou Vermicelli e quero lhe apresentar a minha turma.

Nesse ponto,eles se adiantaram um a um para apertar a mão de X-8 que, embora sem poder articular um som ainda, pelo menos conseguia erguer uma mão flácida para corresponder aos gentis visitantes:

Fettucini, ao seu dispor.

Cappeletti. É um prazer.

– Eu sou Ravioli, prazer.

– Sou Lasagna, às ordens.

Spaghetti. Piacere.

Rondelli, seu criado.

Apertavam-lhe a mão cortesmente e se afastavam para dar lugar ao seguinte.

Terminadas as apresentações sem que o detetive tivesse emitido um som, Vermicelli disse:

– O Signore já deve adivinhar por que estamos aqui. A gente tem trabalhado muito, somos sempre requisitados por todos. Desse jeito, trabalhando sem domingos nem feriados, conseguimos juntar uma grana para tentar descobrir a nossa origem. Tivemos muito boas indicações suas, e queremos saber se o Signore aceita a nossa causa.

O famoso detetive percebeu que, se tentasse falar, não conseguiria mais que emitir desmoralizantes grasnidos. Limitou-se a apontar, com gesto rápido, um folheto impresso que estava sobre a escrivaninha.

Era a sua lista de honorários. Vermicelli a pegou e abriu.

As sete palavras se reuniram a um canto da sala, em roda. Começaram a olhar o folheto e a falar entre si em voz baixa, citando valores e fazendo contas. A discussão foi subindo de tom; o pessoal começou a se dar cotoveladas e a se estapear nas cabeças, xingando-se em diversos dialetos.

Às vezes paravam e olhavam para X-8, que a essa altura estava novamente horrorizado: do que não seriam capazes aquelas palavras mafiosas quando irritadas assim?

Ele resolveu que, assim que recuperasse o controle da voz, ia oferecer seus serviços de graça. Ele podia suportar um pequeno prejuízo, se era para se livrar daquele risco de envolvimento com o submundo.

Ravioli chegou junto à escrivaninha e perguntou:

– E que desconto o Signore nos dá para fazer um serviço para todos nós? Olha que somos uma freguesia grande, tutti buone parole, eh? Sai um descontinho, no?

O Detetive queria dizer que não, absolutamente não cobraria nada de parole così meravigliose, que seria um prazer, mas seu corpo simplesmente não obedeceu. Congelou-se ainda mais em sua posição sentada na cadeira giratória guenza, como se fosse uma estátua.

Ravioli se afastou e voltou para junto dos outros, desapontado.

Foi a vez de Rondelli falar:

– É, pessoal, ele é duro mesmo. Bem que nos avisaram.

Lasagna falou, do meio do seu cheiro de queijo derretido:

– Acho que não dá mesmo.

– Molto bene, seu X-8, disse Vermicelli, aproximando-se da mesa. Então a gente paga o preço todo, uma taxa individual vezes sete, sem desconto. E eu que pensava que nós da Itália é que sabemos negociar! Mas va bene, a gente entende. Deixo aqui o meu cartão e o Signore nos chama, não é assim que funciona? Aguardamos notícias suas. Grazie pela gentil acolhida!

Tudo o que o detetive conseguiu fazer foi um movimento curto e convulsivo da cabeça, que visto de fora pareceu um gesto frio de assentimento.

E foram saindo, colocando as capas e levantando os chapéus educadamente.

Desceram as escadas cheias de lixo falando de modo animado sobre a frieza impressionante daquele sujeito que nada parecia assustar.

Dava para ver que estavam em boas mãos com um cara competente assim. Alguns até achavam que se tinham arriscado demais, vá que ele puxasse uma submetralhadora Uzi de baixo da capa e acabasse com eles antes de eles poderem se explicar. Achavam que teria sido melhor bater antes de entrar.

Ressaltaram também que ele tinha lidado com um grupo de desconhecidos ameaçadores sem se mexer e inclusive sem dizer uma só palavra. Isso é que era um profissional!

Depois da saída deles, X-8 ainda ficou parado na sua cadeira por vários minutos. Dali a algum tempo percebeu que podia mexer os dedos, depois os antebraços e pernas, e finalmente conseguiu se levantar, trêmulo até à ponta dos cabelos. Dirigiu-se ao frigobar na sala ao lado, os joelhos dando uma curiosa sensação de serem feitos de esponja.

Decididamente, ele precisava de uma bebida forte desta vez.

Está certo, ele tinha feito votos de parar, mas sem aquilo ele custaria muito a retomar a tranqüilidade. Ele precisava disto para poder trabalhar.

Pegou uma lata, abriu-a e derramou o líquido gelado na boca, sentado de novo à escrivaninha, com os pés sobre o tampo, a musculatura ainda contraída.

Sentiu a doçura do leite condensado arranhar a sua garganta. Não se importou; sabia que a ocasião pedia bebida de macho.

Depois de terminar a lata, já mais calmo, e de filosofar sobre a existência de uma divindade que estivesse ouvindo seus pensamentos quando ele estava desejando novas emoções e lhe tivesse aprontado aquela, levantou-se e foi fazer as suas pesquisas.

Horas depois, arrancou a última folha de papel da máquina de escrever antiga e o guardou num envelope. Por alguns dias os escritos ficaram na gaveta. O conteúdo deles era:

VERMICELLI

Esta palavra em Italiano quer dizer “vermezinhos”, e se refere à forma da massa.

Do Latim VERMIS se fez também a palavra vermelho, pois a cochonilha, inseto do qual se retirava o material para fazer este pigmento, era chamada de “vermezinho” pelos romanos.

A vermiculita é um mineral composto por restos fósseis de animais marinhos, usada como material de construção ou decoração.

Um vermífugo é um medicamento que se usa para tratamento de infestações humanas ou animais por vermes.

Poucos sabem, mas vermilíngüe é um animal cuja língua lembra, pela forma e pela mobilidade, um verme. Essa língua tem a função de ajudar na captura de alimentos, e um exemplo de usuário é o nosso tamanduá.

E o vermute? Não tem a ver com o verme, não! É do Alemão wermuth, “losna”. Essa palavra era formada por wer, “homem” e muth, “coragem”. Ou seja, era preciso ser macho para agüentar o chá da erva, tão amarga que é.

LASAGNA

Aportuguesada para lasanha, vem do Latim lasanum, “panelão para cozinhar”, se bem que também designava “urinol”. Certamente que eram usados vasos distintos para cada fim.

CAPPELLETTI

Há quem escreva capelete em Português, mas fica muito feio.

O nome vem do Latim Medieval cappellus, “chapéu”, derivado de caput, “cabeça”. As massas, dobradas ao redor de um pouco de recheio, têm a forma aproximada de um chapéu.

De caput se originaram numerosas palavras com significados diferentes, como veremos.

Capitão: era o “cabeça” de um grupo de guerreiros.

Chefe: com uma modificação sonora bem maior, gerada pela sua passagem pelo Francês, também lembra o seu papel de “cabeça” de uma organização ou empreendimento.

Capital: pode-se dizer que administrativamente é a “cabeça” de um país, província ou estado.

Capitólio: era o templo de Júpiter na parte mais alta de uma das sete colinas de Roma, que por isso foi chamada de Capitolina.

Capa: antigamente era uma peça de roupa para proteger contra a chuva que tinha um capuz, palavra que também descende de caput.

Capela: era uma pequena construção junto a uma igreja, feita para guardar uma relíquia sagrada, a capella (pequena capa) de São Martinho.

Escapar: sim, até esta palavra é parente de Cappelletti. Um homem que esteja tentando fugir e quase é apanhado pode deixar a capa nas mãos dos perseguidores e seguir adiante: ele ficou ex cappa, “fora da capa”.

FETTUCCINI

Esta palavra designa uma massa cortada em tiras, fettuccia em Italiano.

Note-se que fettuccini é um diminutivo de outro, pois fettuccia já é um diminutivo de fetta, “tira, fatia”. E esta palavra vem do Latim offa, “bocado, grumo, bolota de comida”.

RONDELLI

Vem do Latim rotundus, “redondo, circular”. Em Italiano, “redondo” é rondo. Rondelli é o diminutivo plural.

Rotundus também queria dizer também “perfeito, completo”. Eis aí porque dizemos que alguém que discorda de nós está – claro! – “redondamente enganado”.

O nome foi dado a estas massas devido à forma circular que elas têm vistas de cima.

RAVIOLI

Este nome vem do Italiano rava, que veio do Latim rapa, que quer dizer “nabo”.

Todos estranharão o que é que o alimento tem a ver com o sabor do nabo. Para nossa tranqüilidade, nada. Consta que o nome veio foi de certa semelhança da massa com as raízes achatadas da planta.

O nome científico do nabo é Brassica rapa. Além de ser consumido pelos humanos, serve de forragem para o gado.

SPAGHETTI

Esta palavra vem do Italiano e é um diminutivo de spago, “corda, fio”. Em Latim era spacus. O nome foi dado pela semelhança física, como em outros casos.

Como se vê, os italianos têm tanto carinho pelas massas que preparam que as tratam quase sempre no diminutivo, como se fossem seus animaizinhos de estimação.

Acrescentamos, como um brinde especial, totalmente sem ônus, aos nossos nobilíssimos e seletos clientes, a origem de algumas palavras a eles relacionadas por parentesco ou por atividade profissional:

MASSA: do Grego máza, “pasta, massa”.

Em Português é o nome genérico para o tipo de alimentos de que estamos tratando, todos sem dúvida de importância ímpar na gastronomia mundial.

No Espanhol usado na região do Rio da Prata, no entanto, usa-se masas para doces de pastelaria. Assim, pedir “Un té com masitas” é pedir chá com docinhos e não um chá com lasanha.

Massa, com a acepção de “volume de gente, conjunto grande de pessoas”, está em uso pelo menos desde a Idade Média.

Uma advertência : o verbo massacrar não significa “derrotar o inimigo servindo-lhe massa mal feita”. Esta palavra não tem parentesco com massa. Vem do Latim mattea, “maça, cacete, martelo grande”. Estes são objetos que muitas vezes, ao longo da História, foram aplicados de forma brusca nas cabeças alheias para combater pessoas pelas quais não se nutre especial afeto.

Em Espanhol e em Italiano, a palavra usada para tão nobre alimento é…

PASTA: do Grego pasté, do Latim pasta, “farinha amassada com outros ingredientes”.

Essa palavra passou a designar qualquer coisa que tivesse o aspecto de coisas de consistência não sólida misturadas.

Uma delas é o material usado para aumentar a consistência do papel, transformando-o em cartão ou papelão; deste eram feitas folhas grandes que, dobradas, serviam para guardar documentos e papéis diversos para evitar que amassassem.

Mais tarde, esses porta-papéis passaram a ser feitos em couro, tecido, nylon e a ter fechos e divisórias, mas mantiveram o nome “pasta”.

Inclusive ele é usado para designar um cargo elevado, como em “A pasta da Agricultura irá para…”, numa referência ao nome do objeto que guarda documentos importantes.

MOLHO: é absolutamente fundamental. Pode-se dizer que é a alma da massa.

Vem do verbo molhar, por sua vez do Latim molliare, “amolecer misturando com água”. E molliare vem de mollis, “macio, mole”.

Dali a dez dias, na hora que havia marcado laconicamente por telefone, X-8 recebe novamente os sete mafiosos. Ou massosos, não sabe bem.

Eles entram já de chapéu na mão, depois de se anunciarem aos brados, ainda do lado de fora da porta. Aliás, encostados à parede, não fosse um tiro atravessar a dita cuja.

X-8 agora sabe como eles são, veramente tutti buone parole. Mantém sua pose gélida, estendendo uma mão para receber a grana indecente que eles estão pagando e entregando um envelope pardo com a outra.

Vermicelli faz o pagamento e pega o envelope.

Instantaneamente, os outros se atiram para ler o conteúdo, o que gera uma confusão de socos, tapas, cotovelaços e palavrões.

O detetive se ergue de sua cadeira e os fita, calado e imóvel. Os sujeitos de gabardine percebem isso e param com o engalfinhamento. Desmancham-se em desculpas.

Começam a sair depois de lhe apertarem a mão um por um, com agradecimentos efusivos. Retiram-se com mesuras, o último fechando a porta cuidadosamente atrás de si.

X-8 cola o ouvido na porta, em meio ao cheiro de molho que os visitantes deixaram pairando em seu rastro, para escutar. Percebera que as palavras não conseguiam se conter e estavam lendo o texto ali mesmo no corredor. Ouve exclamações de agrado e surpresa, todas muito gratificantes para quem trabalhou duro como ele.

Quando chegam à parte em que se fala em Pasta, então, percebe que as vozes deles estão embargadas de emoção. A voz de Spaghetti diz:

– Ah, la Nonna!

– Cara Vecchia! – exclama Rondelli.

– Nonnina mia! – diz Cappelletti.

– Mais mia que tua ! – resmunga Ravioli.

E começam de novo aos socos e joelhaços, discutindo de quem é a avó enquanto descem as escadas mal iluminadas.

Da janela, X-8 os observa na rua abaixo. Pararam de brigar. Um deles vai relendo em voz alta o precioso papel para os outros, que estão encantados.

Mais um caso resolvido, mais palavras satisfeitas, mais uma grana para o corajoso detetive, que agora se dá perfeitamente por satisfeito de passar o resto da vida na velha e morrinha rotina de sempre.

Resposta:

Raptado!

 

O escritório de súbito fica totalmente às escuras. Seu proprietário, o famoso Detetive X-8, utiliza imediatamente seus elevados dons dedutivos para fazer a hipótese de que o cartaz luminoso do lado de fora da janela, cuja luz ele sempre aproveitou, pifou de novo.

Não faz mal, pensa. Como uma pessoa afeita às mais tenebrosas condições de trabalho, ele resolve, dentro de sua filosofia de “Se lhe derem um limão, faça uma mousse“, treinar para se deslocar no escuro, coisa que ele não faz desde as aulas da Academia de Detetives Etimológicos.

Propõe-se a ir até o banheiro às cegas. De saída, bate forte com o joelho na quina da escrivaninha, soltando uma praga. Uns passos depois, tropeça num banquinho e cai redondo. Ao tentar se levantar, escorrega num tapetinho solto e vai ao chão novamente, batendo o nariz.

Agora perdeu totalmente a orientação. Resolve se deslocar rapidamente – para sair logo daquela situação atrapalhada – e de quatro, para evitar mais tombos. Como resultado, dá tremenda cabeçada numa parede que decididamente não estava ali até há pouco.

Apalpando o chão, encontra por acaso o cesto de lixo e resolve colocá-lo na cabeça, como proteção. Enfia-o com firmeza ao redor da copa do chapéu. Em seguida se lembra que ele tinha comido bananas e laranjas e largado as cascas ali.

Deixa esse assunto para resolver depois, já que agora a prioridade é outra.

A desorientação é completa. Ele não tem sequer idéia do lado onde ficam as coisas: a porta de entrada, a do aposento ao lado, a janela…

Imobiliza-se e invoca o seu famoso sangue frio: raciocínio antes de mais nada. Se não podemos nos orientar com a visão, vamos usar a audição. Trata então de ouvir o mundo. Mas este está tão escuro aos ouvidos quanto aos olhos.

Lembra-se que, quando se instalou ali com o escritório de detetive, mandou colocar revestimento antiacústico nas paredes, teto e piso, pois queria dar às palavras suas clientes toda a segurança para poderem contar os seus problemas.

Nada ouve, exceto um leve arrastar de pés ao encostar o ouvido no chão. Estranhamente, ele parece se aproximar mais e mais, acompanhado de um leve tilintar metálico. Intrigado, começa a pensar se não se trata de um sonho, quando ouve uma fortíssima batida na porta de entrada, um ruído de madeira quebrando, e é brutalmente ofuscado pelos raios fortes de diversas lanternas.

Ouve gritos breves e decididos: – “Ali! Ali no chão! Pega, pega, pega!!”

Ele se sente levantado no ar por mãos experientes. Começa a ser carregado ao ombro por quatro homens fortes para fora do seu tranqüilo escritório.

Uma voz ao fundo, em tom mais baixo, diz: – “Central, alvo atingido sem perdas. Objetivo agora sendo levado. Em três minutos abandonaremos o recinto, em sete estaremos em zona segura, se nada acontecer até lá”. Uma voz responde rapidamente alguma coisa, cercada de uma estática de rádio que só permite ouvir um tenso “Boa sorte!” final.

Olha ao redor, agora que as lanternas permitem enxergar. O quadro é inverossímil: seu local de trabalho foi tomado por diversos sujeitos vestindo as roupas típicas de grupos de intervenção armada: botinas, coletes à prova de bala, capacetes de kevlar, tudo preto; uma pistola à cinta e vários carregadores, faca, um fuzil de assalto Colt Commander às costas ou na mão.

O grupo que o carrega desce a escada aos trambolhões, com o risco de escorregar no lixo que se acumula nos degraus.

Em seguida chegam à calçada; do ombro dos raptores, ele entrevê dois furgões pretos e mal-encarados, com homens armados ao redor, mantendo um olho temeroso e alerta à sua volta. Ele é jogado sem cerimônia para dentro de um dos veículos. A equipe entra junto, atirando-se de qualquer jeito. Os dois veículos aceleram e saem, cantando os pneus.

X-8 está amontoado no chão, aturdido. Ainda assim consegue notar que aquele pessoal que o seqüestrou não se ocupa dele. Nos poucos minutos que levam para deixar aquela horrível parte da cidade, os homens armados olham ansiosamente para fora, pelas seteiras dos costados do furgão, mãos crispadas nas armas.

Quando atingem o bairro vizinho, os veículos diminuem a velocidade. Os homens soltam um suspiro de alívio, abraçam-se e se apertam as mãos. Largam as armas, afrouxam as roupas, tiram capacetes. Muitos estão suando.

O detetive está cada vez mais intrigado. O que foi que ele fez para ser levado assim pela Polícia? Porque, pelos uniformes e pela organização, devia ser ela.

Ele estava com o pagamento da TV a cabo atrasado uma semana, mas um descuido assim não era para tanto. O pai daquela moça da Faculdade seria agora uma alta autoridade? Mas aquilo tinha sido há tanto tempo, ela inclusive tinha casado depois! Algum concorrente no ramo da Etimologia resolvera acabar com ele? Uma emboscada seria mais fácil.

Acima de tudo, agora eles estavam sendo muito gentis com ele. Ofereceram-lhe um assento, cigarros, garrafinha de uísque de bolso, chicletes, chocolate.

Ele só aceitou o assento, ainda estupidificado demais para fazer alguma pergunta. Quando começava a ensaiar uma, finalmente, os veículos frearam e as portas se abriram.

Saíram todos e se perfilaram frente a frente, formando um corredor que levava à porta de uma Delegacia. O que parecia mais graduado dentre eles apontou gentilmente para a porta. X-8 começou a ir para lá e se espantou ao ver que eles apresentavam armas à medida que ele passava.

Entrou num escritório muito bem organizado e foi recebido por nada menos que o Chefe de Polícia da cidade. Este o cumprimentou respeitosamente, sem parar de olhar meio espantado para algum ponto logo acima da cabeça do detetive.

Foi então que este se lembrou que devia estar fazendo uma figura muito estranha, com um cesto de lixo cheio de cascas de fruta enfiado na copa do chapéu. Sem dizer nada, friamente, ele o retirou dali e o largou num canto. Sua linguagem corporal toda dizia ” Tive boas razões para isso. Agora vamos esquecer tudo”.

O Chefe falou:

– Peço desculpas por eventuais incômodos. Nós precisávamos muito falar com o senhor, mas só tínhamos o seu endereço, sem o telefone… Ninguém se atreveu a ir até lá, naquele lugar tão perigoso. O senhor sabe que o Correio se recusa a passar pelo bairro. Então resolvemos buscá-lo usando as novas táticas que treinamos, as armas e os veículos, após cortar a luz da área… Desde já a cidade agradece a sua ajuda para o treinamento dos nossos homens.

– E eu quase tenho um infarto por causa do raio do treinamento deles! – pensa X-8. Mas fica quieto, aliviado por não estar devendo nada à Lei e curioso por saber a causa de tamanha mobilização.

O Chefe de Polícia explica por que ele precisava falar com o famoso detetive em particular: estava se desenvolvendo, na cidade, o XV Congresso para Avanço da Atualização do Vernáculo, o CADAVER.

Essa era a reunião anual de palavras, que acontecia a cada ano em uma capital importante, e a cidade estava muito honrada por ser a sede neste ano.

Mas a Polícia, que acompanhava discretamente os acontecimentos, desconfiava que algo estava sendo aprontado pela organização do CADAVER.

– Sabe, senhor detetive, esse pessoal jovem e ardente é capaz de tudo. Não têm a vivência que nós temos, acreditam que podem mudar o mundo… Todos nós já fomos assim, até que tivemos que ganhar a vida sozinhos. Nada como a gente ter que se sustentar para acabar com qualquer idealismo, não é?

Pois o Ministério da Educação nos colocou em alerta devido às suspeitas de que se estivesse tramando alguma coisa contra o vernáculo. E, lá pelas tantas, observamos que havia numerosos Grupos de Dois, palavras parecidas ou iguais que sempre andavam juntas. O que seria isso? Algum código? Alguma ação se desenvolvendo?

Nossos agentes definiram as duplas e ficamos sem saber o que fazer, pois não tínhamos detectado qualquer crime.

Nós nunca agimos ao arrepio da lei, exceto quando não há escolha. Eu tive, então, a idéia mais democrática possível: fizemos um arrastão no acampamento das palavras, na madrugada passada, trouxemos todas as duplas suspeitas e hoje buscamos o senhor para tentar descobrir o que está havendo. Naturalmente que o Município cobrirá os seus honorários e eventuais danos que tenham sido causados à sua propriedade.

Estava dita a palavra mágica. X-8 estava querendo mesmo expandir os negócios, e havia ali uma oportunidade de ficar mais conhecido ainda. Portanto, aceitou a tarefa, com a ressalva de que não contava ali com a sua biblioteca e que o serviço, dado o seu caráter de emergência, teria que ser bastante resumido.

Era isso o que a Polícia queria: apenas saber se alguma palavra era clonada, mal escrita ou malintencionada.

Foi rapidamente organizada uma sala para acareação e exame dos suspeitos. Havia ali uma mesa, cadeiras, um escrivão para anotar tudo o que fosse dito. No pátio, do lado de fora, ficariam as duplas de palavras, que iriam sendo chamadas para avaliação.

Conforme o veredicto de X-8, agora alçado à condição de Perito Criminal Temporário (ele anotou mentalmente a necessidade de solicitar um comprovante daquele título), as palavras seriam liberadas com um pedido de desculpas ou iriam para o xadrez mesmo.

O detetive olhou para o pátio antes de começar e se espantou: havia ali dezenas e dezenas de palavras assustadas em silêncio, olhando ao seu redor com olhos muito abertos.

X-8 pensou no tempo que iria levar naquela tarefa, mas se animou ao se lembrar da palavra mágica.

Sentou-se e pediu para chamarem a primeira dupla. O Chefe fez um gesto pela janela e um dos agentes fez passar as mais próximas da porta.

O Chefe ia explicando a razão das suspeitas sobre as palavras:

– Olhe aqui: Apressar e Apreçar. Acho que a segunda é falsa, seja por algum propósito maligno, seja por ignorância. Penso em mandá-la para a cadeia.

– Não, disse X-8. Apressar vem do Latim ad mais pressa, de premere, “premer, tornar urgente”. E Apreçar vem de ad mais pretium, “preço, aprezo”. Significa “colocar preço em, avaliar, apreciar”. É uma palavra correta, apenas pouco conhecida. Ambas são válidas; têm origens diferentes e resultaram parecidas com o tempo, soando da mesma forma.

– Soltem-nas! – disse o Chefe. Mandem vir outras.

E entrou a dupla Horal – Oral. O chefe disse: – Agora sim, pegamos uma mal escrita. Horal só pode ser erro dos mais grosseiros!

– Pois não é. Oral, como todos sabem, vem do Latim os, “boca, face, expressão”. E Horal vem de hora, “hora, momento” e quer dizer “referente a hora”. É mais uma palavra injustiçada pelo seu pouco uso. Podem libertá-las.

E assim a coisa seguiu, o Perito Criminal Temporário falando e o escrivão anotando:

Queda e Queda: observem bem, uma tem o “E” aberto (“É”) e a outra, fechado (“Ê”). São palavras diferentes, a segunda perdendo o acento diferencial na Reforma Ortográfica de 1971. A primeira vem do Latim cadere, “cair, desabar, ir ao chão”. A segunda, de quietare, “ficar em repouso, em silêncio, deter-se”. Significa “quieta, parada”. Nada errado com ela. Aliás, quem dera que todos fossem assim. Soltem.

Leda e Leda: a primeira também tem acento aberto no “E”, a segunda fechado. É um caso como o anterior. Leda com “E” aberto vem de laeta, “alegre”, e significa exatamente isso em nossos dias. Já a outra Leda, nome próprio, vem de um dialeto da Lícia, país da Ásia Menor, onde era lada, “esposa, mulher”. Podem soltar, que não houve qualquer clonagem aqui.

Lustro e Lustre, hein? Ah, estão achando que significam a mesma coisa e que uma das duas não é necessária? Nada disso, as duas são úteis e bem diferentes no sentido. Lustro vem de lustrare, “limpar, dar brilho”. Havia uma cerimônia de purificação que ocorria a cada cinco anos em Roma, na qual se aspergiam as “águas lustrais” e eram feitos sacrifícios e orações. O termo “lustro” acabou se fixando no significado de “período de cinco anos”. Se o seu filho faz dez anos hoje, ele tem já dois lustros de idade.

Lustre, por sua vez, vem do mesmo lustrare, mas com o sentido original de “polir, limpar”. As duas são úteis. Já sabem: nunca dêem lustro nos seus carros ou móveis. Dêem lustre.

– Hum. Massa e Maça. Tampouco aqui se trata de erro de ortografia. Massa era, em Latim, massa, “amontoado, pasta, massa”. E Maça veio de mattea, “porrete, clava, martelo”. Designa uma arma que era muito usada na Antigüidade. E que dá vontade de usar hoje em dia, às vezes. Liberem.

– Ora, Ovular e Uvular. Fiquem tranqüilos, que elas não são perigosas. A primeira vem de ovulum, diminutivo de ovum, “ovo” em Latim. Como adjetivo, significa “referente ao óvulo”. Como verbo, “expelir um óvulo”. Já Uvular vem de uvula, diminutivo de uva, “uva”. Sim, na Roma antiga essa fruta já era pedida aos vendeiros exatamente como nós fazemos agora. É uma palavra que se aplica a formações que lembrem uma pequena uva, como é o caso da nossa úvula, na entrada da faringe. Sem problemas.

Coxo e Cocho, hein? Coxo vem de coxa, “anca” em Latim. Designa o animal que, tendo defeito em membros ou quadril, caminha mancando. E Cocho deriva de cochlear, “colher”. Designa um objeto de madeira feito para conter alimentação de animais. Não há nada contra vocês, rapazes.

Agora entra uma dupla que mais inocente não pode ser: Meio e Ambiente, de braços dados, com muita segurança e até um certo toque de indignação, demonstrando um já longo costume de andar juntos. O Chefe disse, alarmado:

– Mas que barbaridade! Quem foi o incompetente que prendeu Meio Ambiente? Pois esta expressão vive na mídia, até Secretarias e Ministérios existem com esse nome! Desculpe, pessoal, isso não devia… – Foi interrompido por X-8, com um olhar duro que infelizmente se perdeu nas sombras do seu chapéu.

– Um momento, Chefe. O senhor está lidando aqui com duas palavras que, juntas, atentam descaradamente contra o Vernáculo. Não, não se espante assim; poucas são as pessoas que sabem do erro que essas duas representam. Veja bem: ambas querem dizer exatamente a mesma coisa. O senhor seria um Chefe que Chefia, o escrivão aqui seria um Escrivão Escrevente, se esse exemplo começasse a ser seguido. Este é um caso dos mais graves de redundância que giram por aí, na maior impunidade, até com cargos no Governo!

Meio e Ambiente agora estavam encolhidos, demonstrando que sabiam quem estava com a razão. Nem tentaram se defender. O Chefe, espantado, os encaminhou para que fosse feito um Termo de Ajuste oficial que os impedisse de andar juntos.

– Viu só, Chefe, como os criminosos andam entre nós? – disse X-8.

O Chefe, impressionado e contente com a sua escolha de assessor, assentiu.

CONTINUA

EM FUTURA EDIÇÃO…

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