Palavra veterano

Cachorro

Aproximei-me devagar do gabinete do meu avô. A porta estava aberta, sinal de que o velho estava acessível.

Quando estava fechada, sabíamos que não era para entrar, nem mesmo bater. Meus primos e eu nos perguntávamos se, nessas ocasiões, ele estaria fazendo uma invenção estranha que o deixaria rico, se estava lendo ou simplesmente dormindo.

A possibilidade de ele estar lidando com múmias ou dissecando alguma criança das vizinhanças, embora aventada por um deles, me parecia muito remota, mesmo nos meus crédulos dez anos.

– Oi, Vô! Sabia que um cachorro quase me pegou hoje? Escapei por pouco!

– Cachorro de quê?

Com essa embatuquei. Comecei a balbuciar. Um sorriso brincou nos seus olhos profundos. Logo percebi que ele estava querendo ensinar, como era seu hábito. Ele se sentou na cadeira de balanço; eu puxei a banqueta junto a seus pés e me acomodei.

– A palavra cachorro vem do Latim catulus, depois de passar pelo Basco, que lhe mudou o final para orro. Lá em Roma, significava “filhote” – filhote de qualquer animal. A rigor, pode ser usado para todos os filhotes de mamíferos. Logo, você pode falar de cachorro de leão, de tamanduá, etc.

– Cachorro de vaca, cachorro de ovelha… – entusiasmei-me.

– Há uns animais que receberam nomes próprios para os seus jovens. Hum. Já que você trouxe os seus cachorros e suas ovelhas para dentro da minha paz, lembrei-me do Sânscrito.

Ele percebeu o meu ar confuso. O velho parecia sempre saber o que ia por dentro da gente, com aqueles seus olhos azuis que iam até o fundo da alma alheia.

– Sânscrito é o idioma literário usado na antiga Índia, que se demonstrou ser ligado ao Grego, ao Latim e a muitos outros. Outro dia eu falo mais sobre isso. Por ora, o que quero dizer é que uma raiz do Sânscrito, pac-, deu, em Latim, pecus. – fez um gesto com a mão, como se fosse um animal andando.

– Aí está um dos seus bichos: pecus quer dizer “ovelha”. Dessa palavra se originou “pecúnia”, que quer dizer, atualmente, “posses, dinheiro”, pois a posse de rebanhos significava riqueza.

– Ah, então quando o meu pai resmunga que os seus clientes estão com “problemas pecuniários”…

– Isso mesmo. É uma forma enrolada de dizerem que estão sem dinheiro ou, mais exatamente, que não querem pagar. Certamente seu pai fica nervoso quando isso acontece, não é?

– É verdade – falei, lembrando-me do clima tenso que surgia lá em casa nessas ocasiões.

– Pois é, veja só a sabedoria contida na formação das palavras: esta raiz também gerou a palavra pax, “paz” em Latim. É o sentimento que resulta – ou deveria resultar, se havida com honestidade – da posse das riquezas. O lar de vocês teria mais paz se o dinheiro não escasseasse às vezes.

Percebi que uma sombra passou pelo seu interior.

– Mas isso é uma fase que há de passar. Faz parte da vida de todos. Agora veja: as pessoas e o lugar ao redor daquele que possuía as riquezas e que dali também retiravam a sua subsistência, como a família, empregados, servos, aldeões próximos, constituíam o pagus, outra palavra que veio do tal pac. Você se lembra do que o seu pai disse quando voltou da última viagem?

– Sim: “Que bom voltar para os pagos!” Fiquei contente, achando que os clientes iam pagar…

– Não era bem o caso. Por pagos ele quis dizer o seu lugar, a sua terra. As pessoas que moravam no pagus, por estarem mais afastadas da urbs, a cidade, foram as que custaram mais a se converter ao cristianismo, daí a palavra pagão.

– É por isso que a Vó me chama de “pagãozinho”? Porque não fui batizado?

– Exatamente. Ela gosta de arranjar motivos para se preocupar. Para ela, você é um pagão, apesar de ser um garoto da cidade, um urbano. Acho que ela imagina que qualquer dia você vai fazer sacrifícios a Baal e comer criancinhas fritas.

– Baal? Parece interessante!

– Está aí material para outra conversa. Outro dia fale-me em Belzebu que daí já sai mais assunto. Mas deixe-me completar meu pensamento: não é fascinante ouvir o gaúcho cantar as saudades do seu pago e saber que essa palavra fez todas essas voltas geográficas e históricas? E antes que eu me esqueça, o nome do animal que queria morder você é cão.

Mas isso ninguém diz!

– É verdade. Na linguagem coloquial, cachorro tomou conta desse significado. Cão quase só se usa na escrita: “Cão maldito! Você me paga!”, ou “Filho de um cão”, etc. Fez um ar dramático de filme ruim em preto e branco quando disse isso e eu ri. Ele continuou:

– As únicas pessoas que eu vi usarem a palavra cachorro corretamente foram veterinários. Agora não sei se ainda o fazem, mas uma vez vi uma veterinária dizer “cachorro de gato”, e ela estava certíssima.

– Uma vez, quando eu era menor, ouvi o vizinho dizer que o senhor era um veterano, e achei que o senhor era um doutor de bichos!

– E há uma relação bem próxima entre essas palavras. Em Latim, vetus quer dizer “velho”. Daí veio “vetusto”…

– Quando o Pai disse que o seu carro, Vô, era vetusto, achei que era a marca! – Um relâmpago fuzilou em seus olhos:

– Pois o meu Vetusto anda melhor que muito Novusco por aí! – Mas logo deu uma risada e continou:

– Pare de me distrair. Deixe-me contar que os cavalos que serviam aos exércitos de Roma, quando ficavam idosos demais para o serviço, ficavam num lugar onde podiam desfrutar da folga que mereciam depois de tantas lutas. Os encarregados de cuidar deles eram os veterinarii, ou seja, “os que cuidam dos velhos”. Como estes acabavam também tratando da saúde dos animais, acabou surgindo a palavra veterinário com o sentido de médico de animais em geral. E desse vetus veio a palavra veterano, que é o que eu sou mesmo. Agora toca a brincar no pátio, que você já teve cultura suficiente por hoje.

– Tá bom, Vô. – Eu já estava no corredor quando ouvi que ele me dizia:

– Cachorro!

Por um instantinho eu me sobressaltei. Mas logo recordei o início da nossa conversa e me senti como um filhote aninhado nos braços do dono. Meu avô nem sempre colocava a gente no colo, mas sabia dar colo com as palavras.

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