LIXO [Edição 76]

 

Esta noite os moradores do Ed. Éden, ali na esquina junto ao Bar do Garcia, estão reunidos na calçada, zumbindo como uma colméia ameaçada.

A razão? O extraordinário mau cheiro que tomou conta do prédio. É um fedor que entra pelas narinas, percorre o nervo olfatório, vai ao respectivo centro cerebral e dali faz curto-circuito direto para a alma da vítima, deixando-a esmagada perante a horrível sensação.

E vejam bem que quem mora naquele bairro esquecido da Divindade, –  para nem falar nas autoridades municipais  – está acostumado a sensações desse tipo.

Corte para o interior do escritório de X-8 no mesmo edifício, terceiro andar, fundo do
corredor.

É dali que vem o nauseabundo cheiro. Mas por que?

Ora, hoje é o dia das consultas charter, em que X-8 atende a grupos de palavras correlatas. E o tema é nada menos que… lixo.

Estão ali palavras que representam todo tipo de coisas de odor ofensivo, ansiosas por saberem algo sobre suas origens, desejo infrene de toda e qualquer palavra digna desse nome.

O detetive, ansiado pelos eflúvios sufocantes que elas emanam, está com um lenço no nariz ( – “Estou com um resfriado daqueles, vocês desculpem!”).

Ele trata de encurtar ao máximo a consulta. Mas sem deixar de repassar toda a explanação sobre a etimologia de cada cliente; ele jurou sempre fazer isso adequadamente quando prestou o compromisso solene na formatura da puxada Faculdade de Etimologia e nunca faltou.

Ele se dirige a uma palavra que parece comandar as outras, lixo.

– Você aí, lixo, devo informar que não tem origem definida com certeza; parece vir do Latim lixare, “aparar, desbastar, lixar”, em referência ao resultado da operação de retirar
excessos de algum material. Mas realmente não há certeza.

A palavra se remexeu na cadeira, decepcionada.

– Já sucata, do seu lado, que inicialmente designava “restos de material metálico”, vem do Árabe suqata, “aquilo que cai”.

E resíduo ali vem do L. residuum, “sobra, resto”, de residere, “ficar atrás, sobrar”. E esta
se forma por re-, “para trás”, mais sedere, “sentar”. Você tem exatamente a mesma formação que residência, aliás.

A noite era quente, o único equivalente de um condicionador de ar que X-8 tinha em seu antiquado escritório era um velho leque. Mas leque nenhum iria afastar aquela atmosfera esmagadora que se encontrava no aposento.

Ele prosseguiu, falando cada vez mais rápido:

Imundície, você está aí. Sua origem é o Latim imundus, “sujo”, formado por in-,
partícula negativa, mais mundus, “limpo”. Curiosamente, esta palavra também acumulava o significado de “mundo” e de “jóia”. Não sei bem quanto vinho tinha bebido o gramático que resolveu atribuir significado a estas palavras.

– E, apresentando o que deve ser o maior destaque olfativo desta sala, vemos lá no fundo excremento. Sua origem é o Latim excrementum, de excretus, “material eliminado pelo corpo”, particípio passado de excernere, “separar, eliminar”, formada por ex-, “fora”, mais cernere, “separar, peneirar”.

Vemos aqui na frente dejeto, que deriva do Latim dejectus, “lançado fora”, particípio passado de dejicere, “jogar fora, livrar-se de”, além de “destruir, vencer, matar”. Sua antepassada era feita por de-, “fora”, mais jacere, “jogar, lançar, atirar”.

A palavra se refestelou toda, impressionando as outras com seu passado sanguinário.

Resto, não se inquiete que já estou chegando aí. Você vem de restus, particípio passado de restare, “ficar para trás, ser deixado”, de re-, mais stare, “estar, ficar”.

– E de seu lado está sobra, que vem de superare, “passar por cima, elevar-se, subir”, de super, “sobre, acima”.

O interessante é que o verbo sobrar tem a conotação de “exceder, haver em abundância”, além de “subsistir como remanescente, ser desnecessário ou menosprezado”.

A palavra, que estava por se inflar toda com a origem, murchou.

– E agora, nossa conhecidíssima sujeira. Você deriva do Latim succidus, “com seiva, gorduroso, úmido”  –  enfim, qualquer material que deixe seu usuário pouco apresentável.

Agora temos umas clientes de uso menos comum, como lia.

Lia quer dizer “resíduo, resquício”, aplicando-se originalmente ao sedimento ou
borra que fica no fundo do barril de vinho em sua fabricação. Deriva do Gaulês liga e é uma das poucas palavras relativas ao assunto que hoje tratamos que não vem do Latim.

E, como falamos em borra, ela vem de bura, “tecido grosseiro, restos de tecido”, sendo depois aplicada a materiais como a lia.

E fundagem tem esse mesmo significado de “depósito no fundo de algum líquido”. Naturalmente vem de fundus, “vasto, fundo”, “a parte de baixo, alicerce, área de terra”.

Agora, prezadas e queridíssimas clientes, vou convidá-las a saírem pela porta dos fundos do edifício, pois o rumor de indignação por parte dos populares na calçada aqui embaixo me diz que estamos prestes a enfrentar uma revolta.

Desçam a escada até o primeiro andar, andem até a outra ponta do corredor e usem uma escadinha estreita que dá para o terreno baldio ao lado. Vai ser fácil de achar, é só seguir os ratos e baratas que circulam por ali.

Boa noite para todas e agradeço a presteza na saída.

 

Origem Da Palavra