COURO [Edição 68]

 

Eu ainda não tinha feito dez anos mas já gostava de visitar meu avô em seu gabinete.

Eu me sentia bem com ele e percebia que o velho de barba branca não era na verdade o carrancudo que tentava aparentar. Pelo menos comigo. O resto não importava.

Ah, o seu estúdio! Aquela peça no fundo do pátio era o paraíso para mim. Aconchegante, forrada por livros e objetos interessantes, com estofados de couro amaciado pelo tempo e pelo estudo…

Só muito mais tarde percebi que iria passar a vida toda tentando providenciar um lugar assim para meu uso.

Mas naquele dia, talvez devido à luz do fim da tarde que entrava pela janela, meus olhos estavam atraídos pelo couro das poltronas.

– Quem foi que inventou o couro, Vô? – perguntei, sabendo que ele entenderia o que eu queria dizer.

– Ah, meu rapaz, esse é um dos materiais usados há mais tempo pelo Homem, e sua utilidade está tão presente agora quanto há milhares de anos. Pensando bem, está mais presente ainda.

A palavra que usamos para ele vem do Latim corium, “pele retirada de animal”, do Grego khorion, “couro, membrana, pele”, de uma fonte Indo-Europeia sker-, “cortar”.

– Parece certo, né? Não dá para tirar um couro sem cortar.

– Isso mesmo, para supremo incômodo do portador do couro. Aliás, essa mesma fonte resultou na palavra latina caro, “carne”, pelos mesmos motivos.

O Grego khorion nos deu a palavra de uso erudito cório, usada em Biologia e Zoologia para designar vários tipos de membrana.

E   corium nos deu, por exemplo, couraça, que designa a parte da armadura que protege o tronco, envolvendo peito e costas.

– Ué, Vô, as armaduras não eram de metal?

Couraça é um nome usado até hoje, com base nas proteções mais antigas, que podiam ser de couro fervido, muito resistente e que davam proteção muito boa  –  até que as armas foram se aperfeiçoando e acabaram com a festa.

Veja que existem navios chamados encouraçados justamente por terem uma blindagem especialmente resistente – e ela não é de couro.

– Ia ser difícil costurarem tudo aquilo ao redor do navio.

– Isso, você está ficando mais inteligente a cada dia. O que me lembra que há uma classe de soldados que não temos mais, os couraceiros.

– Andavam com um couro de vaca pendurado nas costas, Vô?

– Não exatamente, seu graciosinho. Começaram no século XVI, com equipamento muito semelhante ao dos cavaleiros medievais. Até o século XIX participaram de batalhas usando a couraça e o capacete.  Eram homens grandes, em cavalos muito fortes, e tinham em conjunto uma especial capacidade de choque.

Até hoje há exércitos europeus – Espanha, Inglaterra, Itália, França, por exemplo – usando regimentos de couraceiros, que fazem bonita figura quando desfilam com seus uniformes de gala.

– Quando o senhor era moço lutou contra eles, Vô? – eu disse com meu ar mais ingênuo  – o que fez o velho me virar olhos esbugalhados e dizer:

– Não, seu tolo. Quando eu servi nas Forças Armadas, a gente usava só pedras e pedaços de pau. Essas modernidades vieram muito depois de minha época. Agora aquiete-se e me deixe contar sobre uma coisa muito interessante.

Se você não sabe, é hora de saber o que é um pergaminho. Trata-se de um material para escrita que teve importância enorme na história humana.

Tudo começou, ao que parece, lá pelo segundo século  AC. Foi quando um tal de Eumenes, governante de Pérgamo, uma cidade da Ásia Menor, ficou aflito porque se defrontou com uma grande escassez de papiro, o material retirado de uma planta aquática e que servia para escrever.

– Ué, naquele época o pessoal gostava tanto assim de escrever?

– Talvez não gostassem tanto, mas precisavam fazer isso para poderem manter funcionando a administração e as leis.  Seja como for, ele acabou determinando o surgimento da indústria do pergaminho, um material feito a partir do couro de novilhos, cabras e ovelhas.

– Mas, afinal, isso é um couro; por que ter um nome diferente?

– Inicialmente, é um couro mais fino, de animais com, digamos, um revestimento menos espesso que o de gado bovino adulto. Depois, o tratamento é diferente: ele é tratado com soda cáustica e não é curtido. Desse jeito, ele não fica impermeável e se presta a receber e absorver tinta. Se não fosse assim, ela iria escorrer e fazer uma lambuzeira daquelas.

– Ah, entendi.

– Pois o material chegou para ficar, ainda mais que, como era mais resistente que o papiro, formado apenas por fibras vegetais, ele se prestava muito bem para o uso em rolos.

– Aqueles que aparecem nos filmes sobre Roma e tempos bíblicos? Aquelas coisas pareciam meio incômodas de se usar.

– Você tem razão. Era mesmo atrapalhado de encontrar uma parte qualquer porque era necessário desenrolar tudo até chegar ao ponto desejado. Foi por isso que se começou a usar uma outra apresentação para a palavra escrita, o códice, que vem do Latim codex, literalmente “tronco de árvore”, porque era feito inicialmente com tabuinhas de madeira recobertas com cera para escrever. O códice tem a estrutura de nossos livros atuais e é muito mais fácil de usar.

– Bem, Vô, mas esse tal de pergaminho já está fora de uso há séculos. Por que o senhor diz que ele é tão importante?

– Engano seu. Ainda hoje há documentos nacionais muito especiais que são feitos em pergaminho.

E mais, há muitos artistas que estão procurando esse material como base para suas obras, pois eles dizem que ele interage com o material de desenho, se retorce levemente e faz saliências e afundados que conferem à obra uma caráter quase de ser vivo. Assim, o século XX viu um renascimento do pergaminho.

Mas a grande importância a que eu me referi é a seguinte: o papiro era muito frágil e permitia a escrita apenas num lado. Já o pergaminho não só permitia fazer isso dos dois lados como deixava que um texto anterior fosse apagado por meio de raspagem e se escrevesse um novo em seu lugar.

Por isso esse material era chamado palimpsesto, do Grego palin, “para trás”, e psen, “esfregar suavemente”.

– E daí?

-Daí que várias obras perdidas, ou seus trechos, foram recuperadas de textos de menor importância. Como o pergaminho era caro, ele era amplamente reaproveitado e muitas vezes eram anotados fatos de menor importância por cima de escritos de grande valor.

Hoje há muito trabalho de pesquisa com equipamentos modernos feito em palimpsestos guardados como tesouros em bibliotecas antigas.

 Veja só o quanto a gente pode aprender simplesmente prestando atenção num material que está espalhado ao nosso redor e que aparenta ser tão banal que a gente nem nota.

E já que você está aí, pegue um pano e me ajude a limpar o couro de meus estofados.

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