TRÁFEGO [Edição 109]

 

Eu estava me preparando para tirar a carteira de motorista e, por consequência, muito assanhado. Fui visitar meu avô, procurando alguma maneira de falar no assunto.

Lá estava ele em seu gabinete, fazendo um trabalho de costura num dos seus casacos. Ele era um homem de vários instrumentos.

Estava com um botão seguro entre os lábios quando entrei. Sem aguardar, puxei a conversa:

– Vô, por que uns países usam a mão direita das estradas para guiar e outros a esquerda? Ainda não concluíram qual é a melhor?

As mãos ocupadas com agulha, fio e tesoura, ele resmungou, com o botão preso na boca:

– Espadas.

– Meu pobre antepassado, seus problemas mentais já começaram? Vou ligar para uma instituição que o venha recolher. Não se preocupe, você será bem tratado, a gente vai visitá-lo e levar bolachinhas…

Tendo finalmente colocado o botão no lugar certo, ele disse, com o ar fingidamente carrancudo que eu tanto conhecia:

– Bem que você queria que eu estivesse incapaz para poder vender todos os meus tesouros, seu folgado. Mas eu vou me manter por aqui ainda por muito tempo, de modo que é melhor sentar e ouvir minhas pérolas de sabedoria

Puxei o banco de couro que já estava lustroso de tanto eu me acomodar para ouvir o velho.

– Por muito tempo, o veículo mais usado para as pessoas se deslocarem com certa pressa foi o cavalo. Desde sempre, ele era usado por pessoas de mais posse e valor naquelas sociedades, muitas das quais se relacionavam com a atividade militar. Portanto, usavam espadas.

– Mas nem sempre estavam em guerra.

– Eles a usavam também para se defender de ladrões e assaltantes de estrada. Além do mais, tratava-se de objeto vistoso, que transmitia informações visuais para as outras pessoas. Se muito ornamentada, dizia que o dono era rico; se muito usada, dizia que era melhor não se meter com ele.

– Muito bem, mas e daí?

– Daí que elas eram usadas em cintos, à esquerda, para poderem ser sacadas e usadas com a direita.

– Por que?

– Porque a maior parte das pessoas usa melhor a direita. Os canhotos são cerca de dez por cento da população, devido à conformação cerebral da espécie.

– E o que os cavalos têm que ver com isso?

– Compre um cavalo. Coloque uma espada no cinto, do lado esquerdo. Tente subir nele pela direita para enfrentar os inimigos que vêm em tropel, querendo separar a sua cabeça do corpo.

Fiz a imagem mental da situação atrapalhada e tive que concordar.

– Não preciso, Vô, realmente não ia dar certo. Mas, de qualquer jeito, a maioria das pessoas que anda a cavalo não usa espada há muito tempo. Ou seja, eles podem ser montados pela direita.

– Pois monte um pela direita. Eles são treinados para ser montados pelo outro lado e estranham se algum incauto subir errado. Você seria derrubado ao tentar.

– Muito bem, e o que isso tem a ver com as mãos das estradas e os automóveis?

– Tem que, na Europa, por muito tempo as estradas mais movimentadas tinham a mão pela esquerda, ou seja, pelo lado de fora, para facilitar uma eventual retirada da arma. O uso dela é mais aproveitado se o inimigo for mantido à direita, o que lhe dá maior alcance. E mais, usada pela esquerda não se corre o risco de bater com a bainha em outras pessoas ao cavalgar na estrada.

– Parece razoável. E por que isso mudou?

– Mudou em alguns países, noutros não. A Inglaterra e suas antigas colônias mantêm a esquerda, bem como o Japão e vários países da Ásia e até dois países da América do Sul, Guiana e Suriname. Mais de um terço do tráfego mundial ainda é assim.

A razão básica para a mudança é que, com o aumento da produtividade humana, muita coisa teve que passar a ser transportada por veículos puxados por vários cavalos. Lá pelo final do século XVI, eles começaram a ocupar mais e mais lugar nas estradas, e andavam pela direita.

– Só para contrariar?

– Não. Ocorre que ainda não tinham inventado uma boleia para o condutor sentar nos carros; assim, ele montava o cavalo mais de trás e subia nele, como todos os outros, pela esquerda. Por isso ele precisava ir pela direita, para poder enxergar melhor a estrada à frente. Era complicado controlar quatro a seis equinos puxando um vagão com muito peso.

No século XVII, a Rússia decretou que o trânsito seria pela direita. Na França pós-revolução, perto do fim desse período, começou-se a usar também esse lado: os nobres passaram a não usar espadas, já que o seu cartaz com a população em geral não era dos maiores. As conquistas de Napoleão pela Europa afora espalharam essa orientação, em parte também por birra contra a Inglaterra.

– Então, Vô, aqui estamos nós, com um tráfego determinado pela prevalência de um lado do cérebro?

– Brilhante conclusão. Dá até para desconfiar que você é mesmo um descendente meu, e não uma compra feita numa loja de animaizinhos.

Agora, conte-me sobre as suas aulas de direção.

 

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