A MORTE DE UMA PALAVRA – I [Edição 64]

 

 

Aviso: este artigo contém cenas que podem ser consideradas assustadoras por pessoas de muita sensibilidade. Aconselha-se cautela durante a sua leitura. 

 

Nosso corajoso detetive hoje resolveu passear pelas ruas do bairro, depois de ter feito seus atendimentos da noite.

Ah, ele se sente revigorado no ar típico desta região da cidade! Cheiro de lixo jamais recolhido, vento com poeira, românticas folhas secas se arrastando pelo chão…

 Além delas se arrastam pelo chão outras coisas: papéis velhos, fragmentos variados de objetos indescritíveis e coisas com patas – ou mesmo sem patas –  que é melhor não citar.

A noite apresenta um ar escuro, esfacelado aqui e ali por raios claros de uma lua eternamente cheia, o que confere estranha beleza àquelas ruas descuidadas.

Caminhando serenamente e inspirando fundo, vai nossa figura de gabardine grande demais e chapéu caído sobre o rosto, quando ouve o sussurrar de rodas bem lubrificadas se aproximando por trás.

Intrigado, ele olha ao redor. Um arrepio o percorre quando ele distingue o que é que vem deslizando rapidamente para o seu lado.

O terror se apodera dos seus músculos com dedos de gelo, transformando-os em mingau e deixando-o  paralisado no lugar como fosse um poste.

Aliás, fecha os olhos e faz tudo para mimetizar um poste, quem sabe assim aquilo passa por ele sem notar…

Mas não dá certo. Ele ouve o barulho se aproximar e parar bem junto dele.

De novo a gente avisa: este é o momento de parar de ler se você é impressionável.

Claro que, se parar, não ficar sabendo o resto da história.

 

 

Ele arrisca um olhar e constata que não é pesadelo: logo à sua frent, encarando-o, está um ser muito alto, extremamente magro, usando uma túnica preta esfarrapada até os pés, com um capuz que cai até os olhos.

Um olhar para baixo mostra que a figura veio deslizando, incongruentemente, num enorme skate preto de mais de dois metros de comprimento, empurrando-se com a longa vara cheia de nós que segura numa mão esquelética.

A outra mão joga o capuz para trás.

Aparece um rosto esverdeado, de órbitas vazias, a pele retraída a ponto de mostrar os dentes num sorriso eterno e vazio. Há teias de aranha empoeiradas naquele face que há muito não é beijada, mofo e líquen em algumas partes da pele, pequenas aranhas percorrendo-a.

X-8 tem a impressão de que está tendo dezoito infartos ao mesmo tempo. Mesmo assim consegue ler no peito da túnica, em letras reflexivas verde-limão:

CARONTE

TELE-BUSCAS

Pronto, tinha chegado sua hora, pensa o aterrorizado detetive. 

O “Tele-Buscas” da propaganda dizia tudo. Aquele ali não fazia entregas, só buscava.

O Velho Caronte! O Kháron dos gregos, o ser que levava os mortos através dos rios do Inferno em sua última viagem em troca de uma moeda. E ele estava ali do lado de X-8!

E de nada lhe adiantava saber que Caronte tinha aparecido um tanto tardiamente na mitologia grega, lá por perto de IV A.C. E que a moeda de pagamento era colocada na boca dos mortos.

Nem que ele tinha uma mancha em sua folha corrida: ele só podia transportar um ser vivo por aquelas vias aquáticas se este fosse portador de um ramo de ouro colhido em certa árvore sagrada. Mas aconteceu que Héracles, o Hércules dos romanos, um dia teve que descer às profundezas para buscar o cão de três cabeças, Cérbero, e se recusou a mostrar o devido salvo-conduto.

Ante a negativa do fiel funcionário, moeu-o a pancadas e conseguiu atravessar, ida e volta.

Após o devido processo administrativo, Caronte passou um ano acorrentado.  Além de ficar estropiado pelas mãos do bruto semideus, ficou com a vergonha de ter falhado em seu trabalho. Adeus, promoção!

A imobilidade pétrea de X-8 não mudou quando o  inverossímil ser puxou um rolo de pergaminho do interior dos seus trapos e leu, em voz cavernosa:

– De ordem da Mais Alta Autoridade Etimológica, o senhor está convocado para prestar os últimos ritos a uma palavra agonizante. Suba.

O alívio do detetive das palavras não pode ser descrito.

Ele prontamente recuperou seus movimentos ao perceber que não estava sendo buscado para o Mundo Infra, e sim para dar conforto a uma palavra em seus últimos momentos. Ou seja, não corria nenhum risco; ali, ele era a autoridade.

Quando ele fazia a Faculdade de Etimologia tinha sido avisado de que, depois de formado, o Código de Ética de um etimologista o obrigava a esse ato de caridade pro bono, ou seja, sem cobrar. Mas sabia que tais chamados eram raros.

Assim, ainda meio tonto pelo choque, ele subiu na parte traseira do skate, precisando se agarrar na cintura de Caronte para manter o equilíbrio.

O tecido do manto se esfarelou um pouco, largando um cheiro de poeira e túmulo; a sensação de estar segurando uma ossatura cheia de pontas. por baixo daquilo era assustadora.

Caronte começou a empurrar apoiando a vara no chão e imediatamente o skate adquiriu uma velocidade inesperada; percorreu rapidamente umas ruas do bairro e logo entrou numa parte rural que X-8 nem sabia existir nos arredores.

Deslizaram silenciosamente por estradinhas de terra, entre colinas baixas e arredondadas, grupos de árvores esparsos, casas abandonadas aqui e ali. O luar acrescentava um aspecto sobrenatural à paisagem. Como se fosse necessário!

Depois de um trajeto que pareceu durar muito pouco, o estranho veículo se deteve à porta de uma casa pequena, paredes descascadas, dando em tudo mostras de grande pobreza.

Do seu interior saía uma luz fraca e vozes em discussão acalorada, entremeadas de guinchos e berros de raiva.

Caronte estendeu um longo braço ossudo e apontou a porta, num gesto inconfundível e com um silêncio estrondoso. 

Os dois passaram pelo umbral da porta e as vozes se aquietaram instantaneamente.

X-8 viu então uma cena única em sua vida.

CONTINUA NA PRÓXIMA EDIÇÃO

Para quem tiver coragem de ler, claro.

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