Cata [Edição 50]
Eu estava com uns dez anos e fui levar uma dúvida atroz ao meu avô, em seu gostoso gabinete com livros e estofados de couro.
– Vô, minha mãe disse que um tio dela está com catarata. Como é isso? Ele está molhando tudo ao redor, está inundando tudo, afogando gente, provocando desastres horrorosos?
O velho gentil-homem riu:
– Imaginação e ignorância, uma combinação perigosíssima. Você é de morte mesmo. Calma, que ele está é com uma doença nos olhos que não derrama água nenhuma, apesar do nome.
Catarata vem do Grego katarhaktes, “descida, queda”, formada por kata, “para baixo”, mais arhattein, “golpear forte”.
– E daí? Os olhos caem do rosto? Deve ser feio de ver! – perguntei, cada vez mais alarmado.
– Nãão, seu escandaloso. O que cai é a capacidade de enxergar, pois uma parte transparente do olho começa a ficar opaca. Não se preocupe, atualmente tem cura.
– Ah, bom. No caso da queda d’água, até dá para entender, mas explicando assim…
– Toda coisa, quando explicada, se entende, meu ignorante neto.
Sentei-me sobre o banco revestido de couro, a seus pés, e prossegui, percebendo que ia aprender muito mais ainda:
– E catar também vem dessa palavra grega, naturalmente, meu sábio avô. Viu como eu sou esperto?
– Não vem coisa nenhuma, e isso só mostra como você acha que Etimologia se faz apenas a partir das semelhanças dos sons.
Nosso verbo catar vem do Latim captiare, “pegar, apanhar, obter”, relacionado a capere, “pegar, tomar, agarrar”.
Fiquei desenxabido; o velho percebeu e acrescentou rapidamente, para me fazer sair do momento embaraçoso:
– Também temos a catadupa, “queda d’água, jorro de algum material em grande quantidade”, que os Gregos usavam especificamente para as quedas do Rio Nilo, katádoupoi, relacionado a katádoupos, “ruído de algo que cai do alto”.
– Na semana passada, meu pai andava às voltas com o catalisador do carro. De onde vem esse nome?
– De kata mais lysis, “separação”. É um agente que promove a separação de componentes de uma substância química.
– Os gregos lidavam com Química desde cedo, então?
– Nada disso. Esse nome foi usado por Berzelius, um químico do século 18 -19, e fora criado com radicais gregos pouco antes.
– E o catálogo de sementes que minha mãe tem? Já sei, ele se chama assim porque as sementes “caem” no chão, acertei?
– Você está incontrolável hoje, mas vai ter que crescer bastante ainda. Essa palavra vem de kata, “completamente, de todo”, mais logos, “tratado, estudo”, de legein, “dizer, contar”.
– Ahá, peguei! Há pouco o senhor disse que kata queria dizer “para baixo”.
– Mas eu não disse que esse era o seu único significado, apenas que naquelas palavras era ele que se manifestava.
Essas quatro letrinhas podiam expressar também “no fundo, atrás, sobre, de uma ponta a outra, cerca de, embaixo”.
– Puxa, devia ser difícil falar essa língua.
– Acho que as pessoas eram mais espertas naquela época. Pois se até as crianças falavam Grego!
Veja, outra palavra relacionada é cataclismo, “convulsão social ou de terreno, inundação, grande desastre”, de kata “para baixo” mais klyzein, “lavar, inundar”.
– Uma vez disseram que “o fulano é de má catadura”, o que é isso?
– Um dos sentidos do verbo catar é o de “procurar com os olhos”. Assim, catadura, de expressão de quem franze os olhos à procura de algo, virou sinônimo de “mal-encarado”, de disposição perigosa.
E agora, antes que eu fique com má catadura, volte para a sua casa, que os seus pais devem estar procurando-o.