COBERTURA [Edição 74]

É noite fechada no bairro de X-8. Ele está em seu escritório, alerta como sempre, sentado à sua escrivaninha e pronto para ajudar alguma palavra que esteja em apuros em relação à sua própria origem. Contanto que ela possa pagar à vista.

Neste preciso momento, sem ninguém para atender, ele está treinando seu disfarce de dorminhoco.

Consiste do seguinte: ele coloca os pés sobre o tampo cuidadosamente empoeirado da escrivaninha e enterra a cabeça mais ainda na gola da gabardine que só tira para tomar banho e dormir.

Ela desaparece, tapada pelo chapéu. Em seguida, ele começa a emitir roncos como se estivesse dormindo, o que enganaria qualquer espião que o estivesse vigiando.

Logo começa o desfile de animais estranhos à sua frente: misturas de jacaré com chimpanzé andando de monociclo, de arara com capivara fazendo malabarismos, de girafa com garrafa, de rato com pato, tudo muito colorido e acompanhado por uma ruidosa banda de minhocas…

É então que ele cai da cadeira e vê que o desfile nunca ocorrera.

– Puxa, isso é que é disfarce bem feito  –  pensa ele, que jamais aceitará ter cometido algum deslize. – Até eu me enganei. Excelente.

Nesse momento batem à porta e ele, com a cara de quem nunca deixou de estar alerta na vida, manda entrar.

Entra a palavra Cobertura, espevitada, gasguita, esganiçada, cabelo em rabinhos de
cavalo dos dois lados, nervosa, adolescente, saltarina.

Para-se na frente dele e não espera que ele pergunte o que ela deseja. Incontinenti despeja sua verborragia:

– Aí, Tio, é o seguinte, eu andei me dando mal na escola porque aquele velharedo não quer que a gente use celular, imagina só como é que a gente vai repassar as últimas fofocas prá colega que senta do outro lado da sala, e também tive uns probleminhas por faltas mas também lá eles querem que a gente vá todos, to-di-nhos os dias, mesmo que a gente tenha ido a uma festa na noite anterior, assim não há quem agüente, não há condições, e estou ameaçada de expulsão se não levar até amanhã um trabalho que me deram sobre Entomologia que é de onde vieram as palavras, imagina só, eu nunca tinha pensado que elas tinham origem, e é um absurdo e tudo mais, mas meus pais me deram uma boa grana para pagar se você me ajudar nesse trabalhinho aí, seja bom, Tio, ajude uma pobre palavrinha estudante que sofre muito, ouvi falar que você é muito legal e…

O detetive ergueu a mão, interrompendo aquela catadupa de conversa:

– Não faço trabalhos de casa. Detesto. Pode sair.

– Mas Tio, olhaqui, não posso ficar sem levar isso para casa, o que é que eu vou fazer com esta grana toda que trouxe… – e tirou do bolso um maço de notas muito atraente.

O bom coração de X-8 amoleceu com tão comovente argumento.

– Hum… qual é o tema?

– A professora quer que eu dê as minhas origens, que estou louquinha para saber mesmo, e as de objetos que eu nomeio e que se usam na cabeça.

X-8 percebeu que aquilo era barbada. Acima de tudo, claro, teria ocasião de ajudar uma palavrinha mal-orientada a encontrar o caminho do estudo e da cultura e de aumentar seu saldo bancário.

Topou na hora, mas disse que iria falar e a cliente ia anotar tudo, nada de dar por escrito.

Ela aceitou e puxou um caderno cor-de-rosa, uma caneta da mesma cor com tinta idem de sua mochila rosada e se preparou.

O detetive pigarreou e começou:

– Para início, Cobertura deriva do Latim coperire ou cooperire, de com, “junto”, mais operire, “cobrir, tapar”.

Seu nome pode ser usado genericamente para diversos tipos de peças de vestuário usadas para proteger a cabeça.

Por exemplo, chapéu, do Latim cappellus, “chapéu”, de cappa, “proteção em tecido
para a cabeça”, de caput, “cabeça”.

Os militares usam o quépi, que veio do Inglês cap, também do Latim caput.

Já religiosos católicos e israelitas podem usar, em cerimônias, o solidéu, um barrete pequeno que tapa só o alto da cabeça; ele deve seu nome à expressão latina Soli Deo, “somente a Deus”, em alusão ao fato de que o religioso só o deve retirar no sacrário, em respeito ao seu Deus.

Temos também o boné que está tão em voga neste país, e que veio do Francês bonnet, descendendo do Latim medieval, obunnis, “espécie de capa”.

Em lugares mais frios se usa bastante a boina, nome basco derivado de bonnet.

Na hora da formalidade, usa-se, cada vez mais raramente, a cartola. Esta pelo menos tem a vantagem de apresentar uma etimologia diferente. Vem de nosso idioma mesmo, de “quarta”.

– Mas como, “quarta”? O que é que tem que ver? Quarta-feira? Eu tenho uma festa sempre às quartas, como é isso?

– Calma, moça. Já explico: ela vem de “quarta” com o sentido de “barril com a capacidade de um almude”, ou seja, de uns oito litros. Pela semelhança de formato, deu-se inicialmente o nome de quartola a esse chapéu tão esquisito, para não dizer ridículo.

– Almude? É um tipo de almoço?

– Não, é uma medida com quase trinta e dois litros, do Árabe al-mudd. E pare de fazer perguntas ou o preço vai dobrar!

Falando também em chapéus usados em cerimônias, há o chapéu-coco, aquele
que o Carlitos usava. Surpreendentemente, a palavrinha sabia quem era este personagem:

– Aquele chapéu redondo? Tá na cara que vem de “coco”, o fruto do coqueiro, grande coisa! Deve ter sido inventado por macacos.

– Pois não foi. Ele foi feito em 1849 por encomenda para Sir Edward Coke, pois este já não agüentava mais perder cartolas durante as caçadas à raposa. O chapéu mais baixo era mais adequado para cavalgar pelos matos.

– Ahh… que coisa! Mas já está bom, seu Detetive, com isto aqui vou conseguir fazer um trabalho bem bom para satisfazer aquela professora insistente.

– Ei, falta muito mais, há outras palavras ainda por examinar – disse o honesto detetive.

– Quer saber? Já estou aqui estudando há um tempão e fiquei cansada. Ainda vou ter que passar a limpo meus rabiscos para apresentar o trabalho amanhã . Se precisar volto depois para ver o resto. Tchauzinho, seu X-8!

E saiu a gasguita esganiçada e elétrica, fazendo barulho com seus sapatos de plástico cor-de-rosa nas tábuas gastas do corredor do Edifício Éden.

 

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