E a Humildade [Edição 33]
Como fazia todas as noites, X-8, o grande detetive das origens das palavras, destrancou a porta do seu escritório, pronto para receber as palavras clientes que iriam consultar para saber sobre suas origens e pagar bem caro por isso.
Relanceou o olhar pelo corredor do terceiro andar do Ed. Éden, avistando o quadro contristador de sempre: lixo de todo tipo, em diversos estratos arqueológicos espalhados pelo chão, muito mal iluminado por uma lâmpada fraquinha pendente no alto do teto.
Desta vez, porém, havia algo novo: uma caixa de papelão grande, bem próxima ao seu escritório. Irritado, ele se preparou para levá-la aos pontapés até à escada e derrubá-la de lá, quando ela falou:
– O senhor é que é o seu X-8? O defensor das palavras?
Elogios eram com ele. Parou, o pé no ar:
– Isso e muitas coisas mais. Quem está aí dentro?
– Sou eu, Humildade. O senhor me deixa sair?
“Mais uma palavra que assume seu significado” – pensou o detetive. “Não precisa acontecer, mas não é nada raro”. Respondeu:
– Naturalmente, saia e entre no meu escritório.
Saiu de dentro da caixa uma palavra com vestimentas muito simples, olhando para o chão, toda encabulada, e entrou na sala em preto-e-branco estilo Anos Cinqüenta Desmazelados.
O detetive se sentou à escrivaninha e teve que insistir para Humildade se acomodar na cadeira à frente, pois ela primeiro foi para um canto e depois queria ficar de pé, mãos atrás das costas, cabeça baixa.
– Fale, minha senhora; em que posso ajudá-la? É uma questão de origem, espero?
– É, seu moço, eu tenho alguns problemas de autoestima e o meu psiquiatra, que está desesperado com minha fraca resposta ao tratamento me mandou para cá como último recurso.
X-8 se alertou: quando isso acontecia, não dava para retardar a ajuda. Palavras podem sumir de um idioma se não se sentem bem, e a segunda grande missão do detetive era salvar as palavras.
A primeira, naturalmente, era ganhar dinheiro.
Ele colocou disfarçadamente a mão no bolso da gabardine e apertou o botão do celular que tinha comprado numa loja de brinquedos baratos.
O aparelhinho começou a tocar alto e X-8 o levou ao ouvido:
– Ele. Sim. Não. O Ministro? Hum. – Olhou para a palavra e pediu licença por gestos, passando para o quarto ao lado e trancando a porta.
Ali ele folheou depressa alguns livros, tomando nota mentalmente do material básico necessário para atender à sua cliente. Dali a cinco minutos, voltou para a sala, fingindo que estava encerrando a conversa:
– A que horas chega o avião da Força Aérea mesmo? Ah, está bem, dá tempo de sobra. Não, não venham me buscar para não chamar a atenção com esse negócio de escolta, sirenes, etc. Não sou disso. Deixem que eu vou por minha conta. Ah, não se esqueçam de reservar a suite Hiper e os computadores de maior capacidade. Até.
Virou-se para a palavra:
– Coisas do ofício. Mas dá tempo de lhe fazer este seu atendimento, minha senhora, não se preocupe.
Devo-lhe dizer que a senhora, dona Humildade, vem do Latim humus, “terra”, derivado por sua vez do Indo-Europeu ghyom-, “terra”.
Daí se fez a palavra humilis, “humilde”, literalmente “que fica no chão, que não se ergue”, passando muito bem a mensagem deste significado.
Daí vieram outras palavras, como inumar, “enterrar”, formada por in-, “em”, mais humus. Ou seja, trata-se de colocar algo na terra.
Muito próxima a esta está seu oposto, exumar, de ex-, “fora”, mais humus. Aqui o verbo expressa a idéia contrária, de “desenterrar”, tirar fora da terra.
Mas o que eu lhe queria dizer, dona Humildade, é que a senhora descende de uma palavra que gerou também homo, “homem” em Latim. A idéia é “criatura nascida da terra”, como o Homem é apresentado na maioria das religiões, por oposição às divindades, sempre celestes.
Portanto, a senhora é parente, entre outras, de homicídio, coisa feia de se fazer, que junta homo ao sufixo –cídio, que vem do Latim caedere, “matar, imolar, derrubar”.
Outra palavra parente sua, esta refletindo coisa mais agradável, é homenagem, que se formou no Francês arcaico a partir de homenaticum, um derivado de homo no sentido de “vassalo”.
Também está neste rol hombridade, “honradez, retidão de caráter, coragem”, do Espanhol hombre, “homem”, derivado de homo.
Bonomia, o modo de agir de uma pessoa desprovida de más intenções, bondosa, é também sua prima; vem do Francês bonhomie, formado por bom, “bom”, mais “homme” que por sua vez vem de homo.
Está demais dizer, creio eu, que humano, humanidade, humanitário, etc., têm a mesma origem que a senhora.
Posso contar-lhe que a senhora tem uma parente que provavelmente nem a senhora conhece: é transumante, “aquele que realiza mudança de pastos com seu gado, que migra”. Essa palavra se forma por trans-, “através”, mais humus, ou seja, descreve um movimento “através da terra”.
A cada informação nova, Humildade abria os olhos e se mostrava maravilhada. Quando o detetive parou de falar, ela disse:
– Mas então eu faço parte de uma família que tem grande importância em termos de uso na linguagem moderna!
– Na antiga também, Dona Humildade, e isso continuará enquanto o idioma for usado para as pessoas se comunicarem entre si – respondeu X-8.
– Acho que já estou curada. Vou mandar meu psiquiatra se catar! – e a palavra se virou para sair.
O detetive, que não admitia trabalhar sem cobrar, se interpôs no seu caminho:
– Um momentinho; a senhora se esqueceu de que não tenho secretária e que o pagamento é feito para mim mesmo.
A palavra o olhou firme e ia responder algo muito pouco humilde. Mas viu que, do bolso superior da gabardine amarrotada do detetive, se projetava uma borracha.
Não há arma que as palavras temam mais do que as borrachas, que podem acabar com elas num rápido movimento.
Assim, ela colocou a mão no bolso e retirou um maço de dinheiro, contou o valor que o detetive lhe disse e saiu, batendo com a porta.
– A gente salva uma vida e é retribuído desse jeito! – resmungou X-8, contando o dinheiro – bem, enquanto pagarem, dá para agüentar a ingratidão…