(Esta Vez Apresentando Uma Aventura De X-6, Pelo Professor Raul Castro Brasil Bêco) Capere [Edição 57]
X-6 estava pronto para trabalhar. Ele era o novo estagiário da equipe da palavra; seu currículo tinha uma formação na Universidade da Etimologia e também Especialização em Investigação de Palavras.
Não lhe faltava experiência com processos judiciais, para poder lidar com palavras que tinham falsas etimologias. Tinha também Mestrado em palavras derivadas do Tupi-Guarani. Do que se vê que ele era pessoa muito bem preparada para trabalhar em Etimologia.
O escritório era ao lado do Edifício Éden, local onde ficava o escritório do excêntrico detetive etimológico X-8, que ficava à sua escrivaninha atendendo as palavras em busca de suas origens. Naturalmente que ele tinha boa clientela, dado que ele era mais experiente e conhecido na praça.
Acima do escritório de X-6 estava o da X-7 que atendia a uma Tulipa desconsolada. Do lado esquerdo, estava tia Odete dando aulas particulares.
Só o escritório do X-8 era em frente, pois segundo ele, queria exclusividade total. X-6 era alto, com uma roupa de detetive desbotada e um chapéu que ocultava o rosto. Ao contrário de X-8, era extrovertido e dotado de bom humor, sempre disponível para ajudar uma palavrinha. Em sua primeira noite de trabalho privado, sentou-se à escrivaninha toda empoeirada, colocou os pés sobre a mesa e esperou. Esperou, esperou e nenhuma palavra o veio consultar.
Quando já estava quase desistindo e pensando em trabalhar noutra seara, uma palavra bateu à porta e pediu para entrar. Tratava-se de um verbo, e em latim.
Era muito raro aparecerem palavras geradoras, quase sempre quem consultava eram palavras derivadas atrás de suas antepassadas. Mas agora era uma palavra latina atrás de seus descendentes. Era uma ocasião especial para X-6 mostrar seu talento.
A palavra era capere, que em latim significa “pegar”. A palavra desconsolada sentou-se e exclamou:
– Detetive, preciso de sua ajuda. Ando por aí como um fantasma, atrás de meus descendentes. Sei que geralmente isso não acontece por aqui, mas quero saber quem eu originei; sei que, se estou aqui, não é à toa.
X-6, perplexo com a situação, percebera que, quando alguém diz que o Latim morreu, está enganado. Ele ainda vive, nós é que não sabemos.
– Bom – acomodou-se melhor na cadeira e baixou os pés – deixe seu pagamento aqui – que por sinal era a metade do que o cobrado pelo X-8 – e venha pegar o resultado em dois dias.
A palavra retirou o triplo da quantia e disse:
– Não tenho tempo a perder. X-8 está ocupado demais no momento e me garantiu que você responderia na hora. Disse que você era muito competente; além do mais, eu não gostaria de ter que voltar a este bairro pavoroso.
X-6 sabendo que a palavra já havia ido ao X-8, e imaginando que ele a mandara aqui para inaugurar seu escritório, decidiu começar imediatamente:
– Bom, principiemos por suas raízes e metaplasmos…
– Como é…? – perguntou intrigada a palavra, quando X-6 a interrompeu com um gesto.
– Explicar-lhe-ei. A senhora, capere, nos forneceu a raiz cap-, que após sofrer apofonia gerou raízes como cep-, cip- ou cup-.
Apofonia, para sua informação, é o fenômeno da uma junção de afixos ao radical ou raiz latina com uma troca de vogal na raiz.– X-6 percebeu que a palavra estava entendendo, o que o fez prosseguir com descontração.
O que é interessante é que seu significado de “pegar” tem um valor metafórico em vários sentidos. Um exemplo disso é que você ajudou a formar a palavra latina incipere que justamente significa “iniciar”.
Veja como é quase universal que da idéia de “pegar” nasça a de “começar”. Um caipira diria que “garrou chover”. Outra noção assim é a de “aprender”, de ad + prehendere, ou seja, “prender uma espécie de conhecimento”. O ato de pegar é, portanto, metáfora de “início, começo”. Por isso, tudo o que está no começo é incipiente.
– Nossa! – admirava-se a palavra consulente.
– Daí vamos para uma das raízes que você origina, como no caso de cap- e gera raízes apofônicas como cep-, cip-, cup-.
A raiz cap- está na palavra captar, captura. Ora, não são elas palavras que significam “pegar alguma coisa”? A vítima da captura é a caça. Não estranhe a presença do “ç”, ele se dá por um processo assibilação do “t”, do seu particípio passado, captus, para “ç” ou até mesmo “z”. Quando alguém atrai os outros através de seu carisma não se pode dizer que se trata de uma pessoa cativante? Mas, se essa pessoa for colocada em um lugar de onde não pode sair, não se pode dizer que ela é uma cativa e que ela está num cativeiro? Todas essas palavras vêm de você.
A palavra ia anotando tudo com a máxima destreza, sem perder uma só linha:
– Tem mais.
– Mais!!! – admirou-se a palavra.
– Espero que você tenha bastante papel. Veja. Quando se diz que a pessoa pode ser contratada para um serviço, dizemos que ela é capaz, pois tem a capacidade de “pegar as coisas, entender o que precisa fazer”.
Tudo que abarca o que pegamos vai gerar o sentido de caber, daí a metáfora de que algo que não cabe é algo sem cabimento, é uma coisa descabida.
Agora, vamos para a raiz apofônica cep-, escute e anote. Quando “pegamos” alguma coisa, no sentido de entender, dizemos que percebemos algo. Para isso é necessária a percepção, gerando também a palavra perceptível. Tanto é que em Portugal, a palavra ´”perceber” é sinônimo de “entender”. Em alemão, greifen é “pegar” e begreifen, seu derivado, significa “entender”.
Quando se pega algo de volta, dizemos que estamos recebendo o que nos pertence. Daí nascem variantes como recebimento ou recepção, “ato de receber”.
Aquele que recebe é o recepcionista.
Mas há coisas que não conseguimos pegar, daí vem a decepção. Se alguém nos oferece algo que queremos e pegamos para nós, dizemos que aceitamos a tal oferta, muito agradecidos.
Quando se capta alguma noção, dizemos que temos um conceito a respeito do que se pensa. Tal palavra pode ser ainda a reunião de tudo o que se pensa sobre alguém, mas quando pegamos essas idéias antes de conhecê-la estamos tendo preconceito? Mas nem sempre conceber é pegar, ou gerar conceitos. Pode-se também gerar a vida. De um lado, tem-se concepção, de outro temos Conceição, que é o nome próprio que homenageia a gravidez da Virgem Maria. Se a gravidez não é desejada, tomam-se os anticoncepcionais.
A palavra enxugava as lágrimas de emoção, anotava enquanto soluçava perdidamente emocionada com tantas informações.
– Quer dizer que sou uma Conceição?
– Pois é – dizia X-6 orgulhoso – e das boas, nunca imaginei uma palavra para pegar tantas outras e as repassar dar para nosso idioma. Mas ainda tem mais, esqueceu de sua apofônica cup-?
– O que tem ela?
– Ora, ao se pegar algo em que se cabe, vamos ter a palavra ocupar, que etimologicamente significa “pegar e pôr na frente”, com o prefixo ob, “à frente”. O espaço ocupado gera metáfora de tempo ocupado. Daí que o trabalho é uma ocupação; quem não se ocupa é um desocupado.
Espero que a consulta tenha valido a pena. Sempre que precisar pode vir aqui, estarei sempre á disposição.
A palavra não conseg
uia falar de tamanha emoção, saiu pela porta e caminhou todo o corredor. Ao sair do prédio, bem na esquina, encontrou X-8 que a esperava.
Ela se aproximou do detetive e disse:
– Pronto, fiz conforme o combinado, aqui está tudo que ele me disse – e entregou o papel.
X-8 agradeceu:
– Obrigado, vamos levar em consulta para a equipe da palavra, Tia Odete, X-7 e os outros vão analisá-la para ver se o efetivamos na equipe.
Enquanto isso, X-6 ficava em seu escritório esperando mais clientes, sem desconfiar que estava sendo observado pela da Equipe da Palavra.