FACE [Edição 59]
Uma vez, quando eu estava com uns doze anos, entrei devagar no gabinete do meu avô, aquele lugar forrado em couro e livros que tanto me agradava.
Cumprimentamo-nos e ele percebeu que eu olhava fixo para o seu rosto:
– O que há, meu rapaz? Só agora viu como eu sou bonito?
– Não exatamente, Vô, é que eu estava procurando as maçãs.
– E esta agora! Que maçãs, seu esquisito?
– As maçãs do seu rosto. Hoje eu li essa expressão e não estou vendo maçã em rosto nenhum.
– Ah, está bem, seu gracioso. Então sente aí que eu vou explicar que “maçãs do rosto” se referem à saliência que os ossos malares fazem aqui ao lado do nariz, embaixo dos olhos, ó.
– E antigamente se achava que isso parecia com uma maçã? Nem tem casca vermelha…
– Bem, os nomes dados a partes de nossa anatomia às vezes eram meio estranhos mesmo. Ah, e antes que eu me esqueça, malar vem do Latim malum, “maçã”. Mas pelo menos pomo-de-adão faz algum sentido.
– Isso o que é?
– Trata-se desta saliência aqui no meio da garganta, que muitos chamam de gogó. Dizem que se trata de um pedaço do fruto proibido que ficou entalado na garganta de Adão, ainda no Paraíso.
– E é verdade? E “gogó”, de onde vem?
– Parece que não. É apenas a cartilagem laríngea que, nos homens, é maior e mais notável por ação hormonal.
“Gogó” viria de goela, que veio do Latim gula, “garganta, esôfago”.
– E os nomes de outras partes do rosto, Vô? Nariz, por exemplo?
– Esse vem do Latim nasus, “nariz”. E o olho vem do Latim oculus, “olho”…
– Essa não! Peguei o senhor! Isso só pode ser a origem da palavra “óculo”! Meu avô se enganou, ah,ah!
– Cale-se, seu espertinho. Olhe os seus erros: primeiro, achar que um intelecto superior como o meu pode se enganar. O que eu disse está certo, e “óculos” vieram também de oculus.
E depois, esta palavra é uma das chamadas pluralia tantum, as que só se usam no plural. Dizer “óculo” para esse artefato com duas lentes é erro grosseiro.
– Mas todo o mundo diz “meu óculo”!
– Pois diz errado e o meu neto não vai falar errado por causa disso. E pronto, vamos continuar lidando com palavras como…
– Já sei, aquilo que fica sobre o olho e lhe dá sombra, a sombrancelha.
– Você hoje está decidido a fazer um festival de besteira, não? Essa etimologia popular é totalmente errada. A verdadeira origem é o Latim supercilia, “sobre os cílios”. E cilium queria dizer “o que serve para esconder ou tapar os olhos”, um derivado de celare, “esconder, cobrir”.
E o olho contém a pupila, que vem do Latim pupilla, diminutivo de pupa, “boneca”. Isso porque a imagem de uma pessoa pode ser vista refletida no centro do olho de outra em ponto muito pequeno.
– Legal esta, Vô. E a boca?
– É do Latim bucca. Mas note que, inicialmente, esta palavra se referia à bochecha, principalmente quando inflada por um esforço. Daí, aliás, vem “buzina”…
– Agora sim errou, Vô. Vai me dizer que as bigas romanas tinham buzinas, se nem bateria elas usavam!
– Senhor, por que me deste um descendente com as idéias tão confusas? Não dá para devolver? – disse o velho, levantando dramaticamente os olhos para o céu.
Olhe aqui, seu peste, bucina era um nome dado a qualquer instrumento de sopro usado para dar sinal à distância. Podia ser de qualquer material, inclusive de certas conchas grandes, o que deu origem à nossa palavra búzio.
– Ah, tá. E bochecha, também veio de bucca?
– Veio do Italiano boccia, “bola”, em comparação com o formato arredondado delas quando infladas.
E já que estamos perto, lábio veio do Latim labium. E, afastando-nos um pouco do centro da face, temos as orelhas, do Latim auricula, diminutivo de auris, “orelha” propriamente dita.
O queixo vem do…
– Do hábito de se queixar, que a gente faz movendo o queixo para falar, desta vez acertei?
– Mais uma dessas e atiro você pela janela fechada. Você está incontrolável hoje. Não, queixo vem de capseum, “semelhante a uma caixa”, de capsa, “caixa”. E não precisa me dizer que não lembra uma caixa, que eu acho o mesmo.
E “queixa” vem do Latim quassiare, “sacudir, chacoalhar, abanar”.
Subindo, encontramos a testa, que veio do Latim testa, “concha, carapaça, vaso de argila”, pela curvatura.
E subindo mais ainda chegamos aos cabelos, palavra que deriva do Latim capillus, “cabelo”, de caput, “cabeça”. A qual, no caso do meu neto aqui presente, é oca.
E antes que o dito cujo neto proteste, acrescento que barba é do Latim barba, de mesmo significado.
– E as suíças?
– Parece que estas derivaram da época em que o rei Luís XIII da França contratou mercenários suíços para servir em seu exército. Eles apareceram com vistosos apêndices pilosos na região em frente às orelhas e fizeram sucesso.
E o nome do país vem de Schwyz, o nome de um dos três cantões iniciais da confederação, que provavelmente vem do Germânico suittes, talvez relacionado com suedan, “queimar”, em referência às áreas desmatadas e queimadas para a construção das cidades.
– Quer dizer que essa atividade não é só brasileira, Vô?
– Como se vê, é antiga e destacada a ponto de dar nome a um país.
Para terminar, todas estas palavras pertencem à face, que deriva do Latim facies, “aparência, forma, figura”, provavelmente de facere, “fazer”.
E antes que você incendeie a paciência do seu avô, vá brincar um pouco com o gato, que está esperando por você.