Faz Aniversário [Edição 37]

O famoso Detetive Etimológico está sentado em seu escritório de mais puro estilo Anos Cinqüenta Empoeirados. É uma noite fresca de outono e o vento entra pelas janelas, balançando as cortinas como se fossem fantasmas.

Traz consigo os perfumes da rua: o cheiro das frituras do Bar do Garcia, ali na frente, um pouco de cheiro de lixo…

Traz  também o som de papel arrastado pelo vento nas ruas sujas. E também, de súbito, o pavoroso e altíssimo som de um pagode dos mais conhecidos.

X-8 não gosta de pagode. Não gosta de música popular. Detesta, aliás. Seus ouvidos estão acostumados aos clássicos, e se irritam profundamente com essas manifestações que não podem ser contrariadas pelos politicamente corretos porque são “expressões legítimas da cultura popular”.

Ele se aproxima da janela, irritado, pensando em pegar algum lixo no corredor do prédio para jogar no responsável pela barulheira ali embaixo. Põe a cabeça para fora, indignado, e se horroriza.

O responsável era ele mesmo!

Sim; era o dia de seu aniversário e lá embaixo estava um Fusca com portentosos alto-falantes, veículo maldito de um Tele-Mico daqueles que são contratados para ir fazer festa para uns poucos e irritar a vizinhança inteira.

Ao redor do carro estão diversas palavras com cartazes elogiosos, do tipo “Viva X-8”! “Nosso Salvador”! “É o maior”! – e outras originalidades.

Quando o vêem aparecer à janela, desatam a gritar, exigindo que ele desça.

X-8 percebe que simplesmente não tem saída. Recusar só iria demorar mais ainda a apresentação. O caso é ir, enfrentar o pesadelo e voltar para tomar uma aspirina.

Coloca algodão nos ouvidos e desce, após enterrar mais ainda o chapéu na cabeça e levantar mais ainda a gola da gabardine que lhe oculta o rosto.

Chegado à calçada, as palavras suas clientes o saúdam com alegria. Ele não sabia que era popular a esse ponto. Aliás, não desejava ser popular a ESSE ponto.

Após aplausos, o condutor do fusca fatal começa um longo e engrolado discurso cheio de erros de concordância, em que chama o detetive de “ícone de nossa cultura”, “orgulho do bairro”, “ardoroso batalhador pela integridade das palavras”, “resgatador do conhecimento arcano”, “incansável pesquisador”, “sábio dos sábios” e outros adjetivos laudatórios que fazem a pobre vítima corar até à alma.

Começa então o espetáculo propriamente dito, com o espocar de foguetes. Bem, como com foguetes saía mais caro, alguns moleques tinham sido contratados para estourar alguns dos sacos de supermercado vazios que rolavam em abundância pelas calçadas.

Depois disso, começaram as músicas, cuja descrição vamos passar por alto, para que não seja evocado o pavor a que se submeteram os educados ouvidos de nosso personagem.

Acompanhando as músicas, exibiam seus dotes de dança umas moças da empresa festeira. Uma delas estava trajada para Dança do Ventre, sendo que o dito cujo era bastante protuberante e sacudia como geléia em determinados movimentos.

Outra se vestia, estranhamente, de Baiana, e rodava a dita cuja em frenéticos movimentos circulares.

Outra se vestia igualzinha a uma Miss Brasil de década de 60: sapatos de salto, maiô bem-comportado, cabelo cheio de laquê; tinha inclusive idade compatível.

Elas andavam e rebolavam para lá e para cá, aplaudidas sem parar pelas palavras e pessoas que circulavam por ali e que tinham saído do Bar do Garcia para apreciar o espetáculo.

Depois de meia hora disso, o apresentador anunciou que o homenageado ia fazer um discurso. Depois de apagar a velinha do bolinho de aniversário, um bolo inglês velho que apresentava uma pequena e fina vela azul usada, mas que depois de acesa ninguém notava.

O detetive percebeu ali a armadilha: deviam estar esperando que ele mostrasse o rosto para dar o necessário assoprão. Mas ele apagou a pequena chama com um rápido aperto de dois dedos em sua máscula luva marrom de couro, frustrando assim a idéia de alguns.

X-8 viu sua oportunidade de encurtar a coisa logo e começou a falar:

“Caros concidadãos e queridas palavras! Não sei como agradecer esta inesquecível homenagem que me fazem em meu humilde aniversário, palavra esta que vem, aliás, do antigo francês homage, “demonstração de respeito pelo seu senhor feudal”, de homme, “homem”, que vem do Latim homo, idem.

Antes que alguém pergunte, “aniversário” vem do Latim anniversarius, “o que volta anualmente”, formada por annus, “ano”, mais versus, de vertere, “voltar”.

A alegria que vocês demonstram – falando nisso, “alegria” vem do Latim alacer, “de ânimo leve, contente” – para com a minha humilde – palavra que vem do Latim humilis, “de baixa extração, sem pretensões”, literalmente “relativo ao chão”, relacionado com humus, “terra”, pessoa me deixa extremamente comovido.

Este vocábulo, não esqueçamos, deriva do Latim commotio, que vem do verbo commovere, “perturbar, mover”, verbo que se forma por com-, “junto”, mais movere, “mover”.

Destarte – que vem de “desta arte”, sendo esta última palavra derivada de artis, “modo de ser ou de agir”, desejo agradecer do fundo do meu coração – que vem do Latim cor, tão original presente, sendo que “original” deriva de origo, “origem”, do verbo oriri, “nascer, erguer-se” e que “presente” vem do Latim praesentare, “colocar na frente de”.

Inesquecível esta apresentação, amigas e amigos. Ela estará sempre em minha mente enquanto eu viver. Apenas lastimo que ela não possa se repetir, pois motivos de força maior me forçarão a estar ausente ou doente em todos os meus próximos aniversários. Muito obrigado”!

E se escafedeu escadas acima, enquanto era delirantemente aplaudido pela multidão nas calçadas.

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