Material De Escrita [Edição 42]
Nem os combates nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial se comparavam às cenas que ocorrem em minha sala de aula. Hoje a causa da batalha foi que alguém pegou o lápis de outro alguém e isso bastou para que todos acabassem neste frenesi guerreiro.
Socos, pontapés, rasteiras, puxar de cabelos, mordidas, xingamentos. Só não há mortes porque eu proibi terminantemente facas, fuzis e granadas.
E eu aqui no meio disso tudo, sem me alterar. Hoje fui esperta. Tomei uma dose extra preventiva de Nervocalm, à base de maracujá e extrato de cérebro de tartaruga, e estou me sentindo impassível.
Mas vou cortar o pugilato para evitar queixas dos pais destas gracinhas que o Destino me enviou para ensinar. Devo ter feito algo muito ruim em alguma vida passada, mas deixo para ruminar sobre isso depois.
– Aqui, criancinhas queridinhas, vamos nos sentar em roda e falar sobre a causa de tudo isto. Hum, estão cansadas de bater e apanhar e preferem seguir minha sugestão. Ótimo.
Certo, o lápis de cor da Patty sumiu e ela foi ver na mochila da Aninha, que ficou ofendida e puxou o cabelo de outra menorzinha que ela, para se garantir, que deu um pontapé no Zorzinho… Está bem, não precisam me contar mais, essa história eu já ouvi há tempos.
Olhem aqui, vou contar sobre a origem da palavra lápis. Eu já falei sobre isso, mas vocês já devem ter-se esquecido, pois foi em outro ano letivo. Claro que, se se tratasse de cantora ou jogador de futebol, vocês saberiam até o endereço e o CPF.
Vejam, esse objeto tem seu nome derivado do Latim lapis, “pedra”. Inicialmente, em Roma, se escrevia com pedaços de pedra de hematita, o lapis haimatites.
Antes que perguntem, essa segunda palavra vem do Grego haima, “sangue”, pois ela produzia um traço vermelho. Sim, a mesma palavra que originou hemácia, hemograma e outras.
Certo, Aninha, lápide também vem do Latim lapis, pois se tratava de uma pedra colocada sobre um túmulo. Muito bem. Fino, o seu faro.
Como, Val? Ah, uma viúva que mora no seu edifício escreveu uma porção de desaforos na lápide do falecido quando descobriu que ele tinha deixado mais duas viúvas? Não, não queremos mais pormenores sobre o assunto, deixe para lá, que agora eu vou contar que, bem antigamente, o que havia para escrever eram pontas afiadas para riscar a pedra ou a argila. Daí que a palavra usada em Grego para “escrever”, graphein, originalmente queria dizer “arranhar”.
Sim, Joãozinho? Pornografia? Tem que ver com o assunto, sim, mas não falarei sobre isso hoje. Nem outro dia, aliás. Fique quieto.
Vou é contar que havia um instrumento pouco sutil para escrever na pedra, o cinzel, que vem do Latim cisellum, “instrumento de corte”, de caedere, “cortar”.
Não, apesar dos desenhos animados e historinhas, o pessoal das cavernas não escrevia cartas com ele em placas de pedra. Essa ferramenta era usada para inscrever textos em prédios públicos, por exemplo.
Assim que se deixou de riscar na pedra e no barro, deu para usar instrumentos com pontas mais maciazinhas, como o pincel, por exemplo, que vem do Latim penicillus, “pincel”, cuja origem mais remota não vou dizer para não assanhar o Joãozinho ali, que hoje parece particularmente incontrolável. A primavera sempre agita crianças e adultos.
Além deste instrumento para escrita e desenho, temos a caneta, que vem do Grego káuna e do Latim canna, “talo, cana de planta”. Sim, antes se cortava um pedaço de planta adequado, molhava-se a ponta dele em tinta e se escrevia por alguns segundos, até a tinta terminar e a pessoa ter que mergulhar de novo a ponta no tinteiro.
O que é mais do que se consegue que um aluno escreva hoje em dia, mesmo com a melhor esferográfica.
Aliás, o nome desta vem daquele graphein de que falei acima, mais sphairos, “bola, esfera, objeto redondo”, já que a base do seu funcionamento é uma esferinha de metal e uma tinta mais espessa. Tinta essa que, quando suja a roupa da gente, nunca mais sai.
Antes desta, a gente usava a caneta-tinteiro, que tinha um depósito de tinta no corpo e que dava uma escrita maravilhosa. E antes ainda, era a pena de aço.
Não, Ledinha, não quer dizer que houvesse aves de metal com penas de aço. Elas eram chamadas assim por tradição, porque funcionavam de modo análogo às penas de ganso e outras aves, que eram arrancadas e tinham uma extremidade cortada obliquamente. Depois eram usadas tal como os talos das plantas de que falei, sendo mergulhadas na tinta e servindo para escrever um pouquinho só antes de secar.
E pena vem do Latim pinna, “asa, pena, extremidade”.
Não, Mariazinha, eu não fui alfabetizada usando penas de ave nem talos de planta. Nasci um pouco depois disso.
Sei, era muito trabalhoso escrever daquele jeito. Mas vejam, foi com instrumentos deste tipo que tantas obras-primas de literatura e música foram escritas. Infelizmente, o uso do instrumento sensacional que é o computador para escrever não parece ter aumentado em nada a qualidade da nossa produção intelectual. Só a das besteiras.
Falando em obra-prima, acabo de escutar um som que é melhor do que uma sinfonia para os ouvidos de uma cansada professora: o sinal do término das aulas.
Todos para casa, sem brigas na saída.