No Hospício [Edição 32]
X-8 está no seu escritório esperando clientela. Já são 21 horas e ninguém apareceu. Ele se prepara para uma noite de vacas magras.
Felizmente isto tem acontecido pouco, pois sua fama está crescendo e as palavras freqüentemente o indicam a outras que queiram saber sua origem através de uma perigosa pesquisa no mundo da Etimologia.
O detetive aceita correr esses riscos, contanto que paguem muito bem. Afinal, estamos num mundo capitalista e ele está economizando para a sua aposentadoria.
Concluindo que não vai chegar ninguém para consultar esta noite, ele se recosta na cadeira giratória meio desequilibrada, coloca os pés sobre a escrivaninha e começa a ler o livro usado que comprou, “As Aventuras de Sherlock Holmes”, de Conan Doyle.
São dois volumes grossos, de tamanho pequeno, encadernados em vermelho com relevos, com impressão em papel-Bíblia, marcador de folhas em seda, um primor.
Entusiasmado, ele acompanha a movimentação de Holmes e seu auxiliar Watson pelas charnecas inglesas, suas correrias no meio do nevoeiro, seu andar em casas centenárias.
Vê-os lidar com o assassino da perna de pau que tinha por criado um pigmeu selvagem; com o padrasto malvado que tentou matar as duas enteadas usando uma cobra peçonhenta que ele alimentava com leite; descobre que um próspero e respeitável pai de família ganhava bom dinheiro disfarçado de mendigo nas ruas de Londres…
Tal como Conan Doyle, X-8 é muito imaginativo; sem perceber, desliza para a época vitoriana.
Arredores de Londres, 1892. A biblioteca forrada de livros de uma mansão senhorial.
X-8 está com o cachimbo apagado entre os dentes, boné xadrez na cabeça e lupa na mão, debruçado sobre a vítima daquele assassinato horrível.
Trata-se de um homem enfiado de cabeça num grande vaso chinês da dinastia Ming. Só os pés, calçados de botinas com polainas brancas, estão de fora.
Com um rápido olhar, o detetive percebe que aquele infeliz tinha tocado tuba numa banda militar onze anos antes e que detestava acompanhar “Pompa e Circunstância”, de Elgar.
Além disso, descobre que a mãe dele era fanha, que o cachorro da família ostentava uma orelha branca e outra preta, que o morto tinha forte alergia a abacaxi.
Por outro lado, os indícios mostravam que o seu assassino tinha vindo das ilhas Andaman, onde era açougueiro, que usava um brinco de prata velha na orelha esquerda, que apreciava ópera e era dado ao esporte do ciclismo.
Ele certamente descobriria mais assim que pudesse enxergar algo mais do que os pés e tornozelos do pobre homem. Isso tudo ele notou num átimo e se virou para dizer a Watson que já tinha uma idéia de quem…
Watson?! Ao se virar, ele viu a cara sorridente, cheia de espinhas e com o característico olhar vazio de Paulo Geraldo, Pejota para os amigos.
O detetive etimológico se sobressaltou. Tinha estado tão distraído com sua leitura e depois com a sua fantasia que não tinha percebido a entrada do rapaz, que vinha a ser o genro do Porco Garcia, dono da mais famosa e única pizzaria do bairro.
Com canina afeição, Pejota sacudiu metaforicamente o rabo que não tinha e falou:
– Tavam querendo falar com o senhor lá do asilo das palavras disseram que era urjente e eu então disse que vinha aqui lhe avisar tá legal
O QI do adolescente não permitia luxos como correção ortográfica, pontuação (nem sequer o ponto final!), pausas ou inflexões nas frases.
– Ah, sim… Bem… Ããh… Obrigado, Pejota! – respondeu o detetive – vou até lá então.
Lembrou-se de que seu ídolo Holmes ficava muito nervoso quando não tinha um caso para resolver e que só estava em sua plenitude quando andava às voltas com um mistério aparentemente insolúvel.
Talvez esse estranho chamado fosse um problema desses, quem sabe? Fechou a porta e seguiu para o Asilo das Palavras, que ficava a poucas quadras dali.
Esse asilo se tinha instalado há poucos meses no bairro, num casarão antigo, de longos corredores e muitos quartos. Era o que havia de mais próximo de uma mansão vitoriana nas proximidades, embora não fosse anterior à decada de 1940, e olhe lá.
Pejota ia atrás do detetive, que aceitou a sua companhia porque sair assim em dupla lembrava mais as aventuras de Sherlock Holmes.
Chegaram logo ao Asilo. Era uma casa grande, de dois andares, no meio de um terreno amplo, coberto de vegetação descuidada. Sua frente tinha um alpendre enfeitado por lambrequins de madeira cheios de falhas.
O lugar causava forte impressão assim, iluminado somente pela lua cheia. As sombras pareciam prenhes de perigos, as partes iluminadas brilhavam de prata. Bateram à porta.
Ela foi aberta pelo atendente da noite. Este era um sujeito enorme, com mais de dois metros de altura, ombros largos, cabeça e inteligência muito pequenas, barba por fazer, extremamente econômico com as palavras. Chamava-se Monkenstrausen e até obter este emprego vivia de pequenos serviços pelo bairro.
Vestia um avental de amarrar atrás do pescoço quase arrastando pelo chão. Quando ele abriu a porta, passou pela cabeça de X-8 que esta e o atendente podiam ser gêmeos pela inteligência, loquacidade e tamanho.
– O detetive? Por aqui. – foi o discurso de Monkenstrausen com voz cavernosa. Ele estava positivamente falador naquele dia.
Segurando uma vela num pequeno castiçal, guiou o detetive corredor adentro. Só este entrou; Pejota, ao ver a figura que os atendia, se lembrou dos filmes de mortos-vivos da TV e saiu correndo para se enfiar debaixo da cama no quartinho dele, nos fundos da pizzaria.
O corredor era tenebroso; a única iluminação era a da vela.
O detetive e seu guia se deslocavam dentro de uma limitada esfera de luz; nada se enxergava, exceto um pouco de corredor de pé-direito muito alto à frente e outro pouco atrás. A escuridão se fechava logo depois deles como se fosse um zíper.
Papel de parede sujo e rasgado, teias de aranha, madeiras desconjuntadas no piso, era tudo o que se podia ver. Em pouco tempo as mudanças de direção e as subidas e descidas em escadas curtas deixaram X-8 perdido.
De repente, o auxiliar parou à frente de um quarto e disse, apontando para a porta:
– Aqui.
X-8, corajosamente, entrou. Viu-se num quarto pequeno, mal conservado, iluminado fracamente por uma pequena lâmpada que pendia do teto, com uma cama e uma mesa de cabeceira velhas como únicos móveis.
Sentada na cama estava uma palavra em camisa de força, dizendo frases desconexas em voz baixa enquanto se balançava para a frente e para trás, os olhos perdidos num mundo só dela.
Junto a ela estava uma atendente dentuça e gordinha, olhos aflitos, avental branco, a Marly:
– O senhor é o detetive que foram chamar? A gente está muito preocupada com esta infeliz que foi trazida hoje de manhã e está piorando. Não quer se alimentar nem beber nada. A gente não sabe nada sobre ela, será que o senhor não descobre alguma coisa?
Era o momento de X-8 brilhar. Fez a maior cara de sábio que pôde, embora isto fosse prejudicado pelo fato de o seu rosto não aparecer entre a gola da gabardine e a aba desabada do chapéu.
Sentou-se bem ao lado da palavra, na cama com colchão de palha, e estendeu as mãos para pegar as dela, a fim de lhe infundir confiança e dar um toque de bondade à cena.
Não conseguiu, pois elas estavam dentro da camisa de força. Ele não se atrapalhou; colocou uma mão no ombro da pobre demente e começou a prestar atenção no que ela falava.
Estalou os dedos para a auxiliar, fazendo gesto de pedir com que escrever. Esta prontamente lhe estendeu um caderno de espiral com folhas sujas e amassadas, onde anotava a entrega de medicações aos pacientes do Asilo, e uma caneta Bic de tinta azul, sem tampa e meio roída, carga pela metade.
O detetive pegou o caderno, evitando cuidadosamente tocar na caneta que ele detestava. Tirou sua caneta-tinteiro Parker 51 do bolso interno da capa e começou a anotar o que ouvia.
Bastou o seu jeito confiante e empático para a palavra se acalmar visivelmente e começar a pronunciar melhor o que dizia. O detetive anotou cuidadosamente as palavras da infeliz por uns dez minutos. Então guardou a caneta, largou sobre a cama o caderno e pediu ajuda à auxiliar para desatar a camisa de força.
– Mas… mas… Será que dá?…
– Sim. Ajude aqui – o detetive fora tão seguro e imperioso que a moça se começou a soltar fivelas.
Retirada a camisa, a palavra olhou para os dois, intrigada.
– Está mais confortável agora, Pleonasmo? – perguntou o detetive.
A palavra, que estava esfregando os braços com as mãos frias, teve um sobressalto e olhou para ele espantada:
– Sim, isso mesmo, agora começo a me lembrar… É esse o meu nome! Epa, as lembranças estão todas voltando! – ficou um certo tempo com a testa franzida, como quem faz um esforço para se lembrar de algo. Olhou para o detetive:
– Que alívio, meu senhor! Agora eu sei quem eu sou, onde moro, qual é meu trabalho. Só não sei como foi que eu vim parar aqui. O que foi que houve?
A atendente explicou:
– Você estava na rua, perdida, murmurando coisas sem pé nem cabeça, meio agressiva. Como não há Polícia neste bairro, trouxeram-na para o nosso Asilo de Palavras. E este senhor é um detetive famoso que veio estudar o seu caso.
A palavra apertou calorosamente a mão de X-8, agradecendo, comovida. Quis saber:
– O senhor descobriu meu nome em algum documento que está comigo?
– Realmente, essa é a primeira providência que tomo num caso desses. Mas a – aham – roupa que você estava usando não permitia colocar as mãos nos seus bolsos. Comecei então a prestar atenção no que você dizia.
Está tudo anotado aqui, em tinta Azul Royal Lavável. Vou ler alguns exemplos: “o macaco estava subindo para cima”, “o torcedor estava gritando alto”, “a moça terminou a prova e saiu para fora da aula”, “a moção recebeu o voto unânime de todos”, “o seu nome será perpetuado para sempre”.
Só pude deduzir que você é a palavra que se usa para denominar esta maneira de se expressar com repetição e desperdício de palavras. Com as pessoas demonstrando tamanha ignorância de seu idioma ultimamente, seu trabalho deve ser estafante e não admira que você tenha tido uma Síndrome Pós-Traumática que a deixou em amnésia temporária.
Veja, seu nome vem do Grego pleonasmos, “abundância, exagero, excesso”, do verbo pleonázein, “sobrar, exceder, exagerar”. Deriva de pléon, “mais, numeroso”, comparativo de polys, “muito”, que por sua vez veio do Indo-Europeu ple-, “espalhar”.
Mas isto não é hora de cultura. Você deve estar querendo ir para casa, onde sua família deve estar aflita. Venha.
Saíram do quarto e foram acompanhados por Monkenstrausen no esplendor de sua mudez até à saída.
Na rua, Pleonasmo se despediu calorosamente de X-8, pediu um cartão deste e foi embora com pressa, tanto para chegar em casa logo como para sair daquele bairro assustador.
O detetive foi voltando para suas acomodações na Baker Street, desfrutando as ruas calçadas com paralelepípedos que de tão gastos refletiam o luar, andando entre os lampiões de gás, ouvindo os carros de aluguel a passar, com o trote lento dos cavalos pontilhando a neblina noturna.
Chegou ao seu escritório-morada e foi dormir, extremamente satisfeito com esta aventura.
No meio da madrugada, acordou de súbito, horrorizado: não tinha cobrado pelo seu trabalho!
Mas isto não ia ficar assim.