Numa Mesa de Bar [Edição 28]
Era a última semana de dezembro. O bairro onde mora nosso detetive, um lugar tão repelente que a Prefeitura da cidade já publicou um desmentido da sua existência nos jornais, está acompanhando a animação das festas.
Em diversas janelas dos apartamentos do Edifício Éden, onde umas moças trabalham em suas próprias moradas, há algumas lâmpadas coloridas baratas dando a entender que ali há um intenso espírito natalino e muita diversão.
É nesse edifício que se situa o escritório do famoso detetive etimológico. No ano passado ele resolveu colocar luzinhas para fora da janela também, pois achou de muito bom gosto a decoração das moças.
Depois de repelir diversos bêbados que queriam entrar e ter certos tipos de lazer que absolutamente não eram com ele, X-8 retirou os enfeites e os doou a uma das moças.
No bar do Garcia, em frente ao Edifício Éden, foi recolocada a coroa de Natal de plástico com um Papai Noel, a mesma que é usada há anos. Este ano, porém, ela foi lavada. Retirada a gordura e a poeira que ali se haviam acumulado (Garcia só se lembrou de a tirar da porta em agosto passado), deu até para reconhecer as cores e as formas.
No Clube Cultoral, as noites são dedicadas aos ensaios do Coral. O Coral do Cultoral, como os sócios gostam de dizer.
Pasmem todos: um grupo de canto coral naquele recanto esquecido de todos! Eis a prova de que a veia artística existe no mais profundo do ser humano em qualquer ocasião e em qualquer lugar.
A idéia foi do Fininho, o ecônomo do clube, uma estranha cruza entre um ser humano anêmico e uma desconfiada ratazana de igreja. Ele tinha a estranha capacidade de sempre olhar de esguelha para tudo e todos. Ninguém tinha idéia de como ele era de frente.
Ele percebeu que aquela atividade traria mais clientes para o bar do Clube (Clube Ultrapassador de Toda a Ralé, não se esqueçam) e lançou a sugestão de se fazer uma coisa assim fina, superbacana, bem legal, diferente, com gente cantando de uniforme e tudo, entende?
O pessoal gostou. Foram feitas muitas reuniões para discutir de modo democrático, participativo e fraterno sobre o modus operandi do Coral.
Elas renderam um total de 247 pontos em pele e tecido subcutâneo, 13 dentes perdidos, uma luxação escápulo-umeral, 8 fraturas de metacarpianos, uma de mandíbula, escoriações diversas e incontáveis roupas rasgadas.
Finalmente chegaram a um acerto. Participaria quem quisesse, independente de credo, raça, status sócio-econômico e mesmo de saber cantar, que aquilo sim era uma democracia.
“E quem não gostar disso a gente arrebenta”, conforme disse um dos participantes.
Qualquer um poderia fazer parte, contanto que não entrasse depois que o grupo tivesse começado a cantar na apresentação final, que aí também é demais, pô!
Os uniformes iam ser legais: feitos daquela espécie de tecido de papel que faz parte de tudo que é fantasia de peças de teatro em escolas primárias, constavam de um lindo paletó amarelo e calças roxo-paixão com uma listra azul-claro numa perna e vermelha na outra.
Essa estranha disposição das listras foi a saída salomônica de Fininho, quando percebeu que não haveria consenso no assunto e que o bar estava por ser demolido pelo saudável e democrático exercício da discordância entre amigos.
A camisa preta, azul-escuro ou bordô cada um já tinha, pois era a de ir aos casamentos. A gravata podia ser qualquer uma, contanto que fosse discreta. Mais de seis cores, não.
Os tênis, combinou-se que deviam ser lavados antes da apresentação. E que deviam ter cadarços. Atados e tudo. Nada de chinelos, que aquilo era coisa séria, de respeito, pô!
Aliás, os próprios cantores deveriam ser lavados antes da apresentação.
Com a igualdade de gêneros, claro que o uniforme era o mesmo para as mulheres que quisessem fazer parte do grupo. Naturalmente, se as gatinhas quisessem ir de microssaia podiam, que afinal aquilo era mesmo uma democracia.
Com todo este rigor, dá para ver que a coisa era para ser chique mesmo. Muitos velhos habitantes do bairro tiveram que reconhecer que aquela geração estava fazendo muito para levantar o orgulho dos habitantes.
Decidido isso, chegou a hora do repertório. Ora, quer coisa mais fácil? “Dingobéu”, “Noite Feliz”, “Papai Noel”, tudo acompanhado com fundo de harpa paraguaia que o Farofa, o DJ oficial (casualmente, sobrinho de Fininho) providenciaria.
No entanto, nos ensaios houve o problema da letra. Ninguém sabia as letras, principalmente porque eles queriam cantar em estrangeiro, para mostrar como eram chiques.
Tentaram cantar com cada um usando as sílabas que bem lhe ocorressem no momento, mas não deu muito certo. O problema era consideravelmente agravado pelo fato de ninguém apresentar um talento musical mais elevado do que um jacaré no cio.
A regente era D. Pepina. Ela era chamada assim porque a cor e a textura do seu rosto, bem como o formato do seu nariz, lembravam um pouco o seu homônimo em conserva.
Ela havia começado a vida profissional como professora de canto lírico. Daí passou a professora de música em escolas primárias. Depois que perdeu tudo o que tinha pagando um trabalho espiritual para evitar uma doença muito ruim que a ameaçava, mudou-se para aquele bairro e se dedicou a ver novelas na TV. Quando o aparelho funcionava.
Mas pelo menos o trabalho espiritual tinha dado certo, pois ela estava em idade avançada e não tinha contraído nenhuma doença ruim.
O pessoal sabia que ela tinha lecionado música e a convidou para reger o caos que se formava no salão de festas do Clube. Mas nem mesmo o seu conhecimento e a prática de lecionar para crianças a habilitavam para aquilo.
Muito diplomaticamente, ela acabou convencendo os seus cantores de que as verdadeiras músicas tradicionais de Natal eram os pagodes, funks e hip-hops do momento. Citando diversos nomes históricos, como os do Faraó Amenófis, Moisés, Herodes e Napoleão, ela demonstrou que estudos recentes tinham descoberto que tinha sido com canções muito parecidas com essas que os pastores haviam saudado aquele nascimento em Belém.
Desta forma, não era necessário ensaiar nem letras nem música, pois o coro sabia tudinho de cor. E assim D. Pepina conseguiu o respeito do bairro. E também muitos “bicos” para ensinar canto, já que todas as adolescentes, sem exceção, pretendiam ser cantoras de sucesso na TV.
Nesse assanhamento natalino estava o bairro quando o impoluto e misterioso detetive etimológico, em sua capa de gabardine amarfanhada e chapéu desabado sobre a face, entrou no bar do Clube, para tomar alguma coisa estupidamente gelada.
Um refrigerante, está claro, pois ele não conseguia tomar álcool.
Logo foi chamado a uma mesa, já que era respeitado como o maior intelectual do bairro, e notou que o pessoal estava querendo saber mais do Natal. Ele então começou a falar para um grupo muito atento:
– Pois é, pessoal. Esta é a época que foi escolhida para comemorar o nascimento de Jesus, mas não corresponde à possibilidade histórica. Pela descrição dos Evangelhos, com os rebanhos nos campos, o mais provável é que tenha sido em outubro.
– Mas e por que escolheram esta data? Por causa do Papai Noel? – perguntou Higino, o corretor zoológico.
– Não, seu Higino. O Papai Noel veio muito depois. Ocorre que, nesta data, os cristãos que estavam sendo perseguidos em Roma, antes que o cristianismo fosse oficializado lá, aproveitavam a festa das Saturnalia, feitas em homenagem ao deus Saturno.
Nesta época os costumes relaxavam e a repressão estava muito ocupada fazendo coisas melhores, o que permitia aos primitivos cristãos se reunirem e fazerem discretamente os seus festejos.
– Quer dizer então que quem determinou mesmo a época das festas foram os romanos?
– Nem mesmo eles. Estas festas eram muito mais antigas do que eles, talvez um resultado do final da última Idade do Gelo. Eram festas pagãs que os romanos tentaram domesticar e dizer que eram deles sobrepondo-lhe um mito da sua religião. Isso é um fato mais comum do que se pensa.
– E o que é que tem a Idade do Gelo com isso? – quis saber Mistinguete, a filha do Porco Garcia, imaginando uma época em que havia geladeiras espalhadas pelos matos, montanhas e desertos.
– É que aqueles eram tempos muito difíceis para quem não tinha supermercados nem estufas nem roupa acolchoada de nylon. Os invernos eram duríssimos. Os muito jovens e os muito velhos morriam. As pessoas não sabiam se os dias iam realmente voltar a se alongar, com a temperatura subindo, a vegetação crescendo e os animais dando cria de novo.
Assim, quando no Hemisfério Norte as noites paravam de encompridar, lá pelo fim de dezembro, eram feitas grandes festas porque a esperança havia retornado e tempos melhores viriam.
– Diga-me uma coisa, seu detetive: e o nome dele? Por que não há família Cristo por aí? – perguntou Minhoca, a fofoqueira oficial do bairro. Ela portava esse apelido por que se metia em tudo que era buraco.
– Para iniciar, o primeiro nome era muito comum na época; era Yehoshua, “Jeová salva”, que se apresenta também sob a forma de “Josué” entre nós. E o segundo não era um sobrenome, mas sim um apelido. Naquela época ainda não se havia estabelecido o hábito dos sobrenomes, sendo as pessoas distinguidas pelo local onde tinham nascido ou pelo ofício que exerciam. Por exemplo, Maria Madalena era “Maria, a de Magdala”, uma cidade.
Bem mais adiante, na vida de Jesus, quando cresceu a sua fama espiritual, ele passou a ser chamado de Meshkiah, “o ungido”. Aqui tenho que explicar que, como não havia muita água naquelas regiões, a higiene não era feita como nós fazemos agora, com muita água e uma substância química que permite à gordura de nosso corpo ser dissolvida.
Pelo contrário, quando uma pessoa queria se limpar, passava óleos finos na pele e retirava o excesso com um instrumento de metal recurvo, que os gregos chamavam de strigilos.
– Mas que meleca! – disse Bufunfa, paradoxalmente uma pessoa cujo pouco afeto pela higiene pessoal era notório para qualquer pessoa que tivesse um nariz.
– Nada disso. O excesso de óleo com a sujeira da pele era todo retirado e a pessoa ainda tinha a vantagem de ficar protegida contra o dessecamento do sol.
Quando uma pessoa ia se apresentar a alguém importante, como uma divindade, deveria fazê-lo limpa, o que queria dizer ungida. Essa palavra Meshkiah foi traduzida para o Grego como Christós, do verbo chríein, “ungir, untar, perfumar”. E deu, em tradução direta para nosso idioma, Messias.
A platéia estava boquiaberta com tanta cultura. E isso interessava a X-8, pois podia resultar em mais clientes para o seu escritório.
– Legal! Mas do que eu gosto mesmo é dos Três Reis Magos. Aquilo é que foi legal, eles montarem nos camelos para levar bolinha de futebol, carrinhos, mordedor de borracha, ursinho de pelúcia… – disse o marido de Mistinguete, Paulo Geraldo, o Pejota.
– Bem, talvez os presentes não fossem exatamente esses. Mas vou dizer uma coisa chocante: não se fala em Três Reis Magos em lugar nenhum da Bíblia.
O espanto foi geral:
– E essa agora? A gente sempre vê a figura deles nas ilustrações, até nos cartões de Natal mais finos! Inclusive os nomes deles são conhecidos! – disse Minhoca, feliz da vida por poder denunciar alguma coisa mais tarde.
– Esse é mais um dos mitos que se formaram ao redor dessas histórias. Segundo as palavras da Bíblia, esses visitantes não eram reis, eram “homens sábios”, talvez astrólogos e estudiosos. A palavra para isso em Grego era magoi, “feiticeiros”, do Persa magush, idem.
As pessoas acham que eles eram três devido aos presentes que entregaram: ouro, incenso e mirra. Os nomes foram inventados muito mais tarde e acabaram incorporados à cultura cristã. E tem mais: eles não andavam em camelos, que são animais apenas de carga; os de montaria são dromedários, aqueles de uma corcova só.
– Falta dizer agora que ele não nasceu no ano em que nasceu – comentou Minhoca, com os olhos brilhando, a mente alerta para apreender aquelas novidades e passar adiante depois.
– E é verdade. Pela história, ele nasceu durante o reino de Herodes. E os registros romanos, muito precisos e minuciosos, mostram que esse rei morreu no que hoje conhecemos como 4 Antes de Cristo.
– Ué, e eles não sabiam olhar a data na folhinha? Que gente burra! Se eu estivesse lá, organizava tudo direitinho – resmungou Pejota, que hoje estava se sentindo um gigante intelectual.
– Não haviam inventado a folhinha ainda. Quem fez o nosso calendário marcando o início da contagem dos anos a partir do nascimento de Cristo se enganou e agora ele já está definido assim.
Nesse momento, começou uma cacofonia medonha no palco. D. Pepina estava começando a reger o ensaio; os sons do pagode se misturavam aos gritos dos cantores que estavam ameaçados de cair.
Por um lado, havia gente demais no coral; por outro, todos queriam estar na frente do palco, de modo que as cotoveladas, joelhadas e empurrões se sucediam.
X-8, que gostava de Mozart, Beethoven, Bach e Companhia, resolveu pagar a sua bebida e sair de fininho. Sair do bar foi um alívio para os seus ouvidos.
Voltando para casa pelas ruas escuras, pensou na luta daquele pessoal pela própria valorização e não pôde menos que admirá-los. Sentiu-se também extremamente generoso por ter dado aquelas informações históricas sem ter cobrado nada.
Definitivamente, ele estava integrado às festas!
E se ele abrisse uma banquinha ali no Clube para prestar informações sobre o Natal e outros feriados, cobrando barato?…