PAPAI NOEL RECEBE UMA VISITA [Edição 98]
Uma noite de inverno na Lapônia. A paisagem é linda, o luar se destaca sobre a neve que reveste o chão e as árvores.
No centro do quadro, uma grande casa de madeira, derramando uma acolhedora luz amarelada pelas janelas.
Aproxima-se dela uma estranha figura bípede totalmente revestida de roupas que mal deixam entrever os seus olhos.
Bate à porta.
Um senhor gorducho, vestido de vermelho, com barba branca e longa, muito bem aparada, abre.
Antes que ele possa dizer algo, a figura se esgueira para dentro da sala confortavelmente aquecida por uma lareira e começa a falar em velocidade supersônica para o cavalheiro atônito:
– Boa noite, meu senhor. As numerosas representações que vi do senhor me permitem identificá-lo desde já como Papai Noel, o Bom Velhinho para os íntimos.
O frio lá fora é atroz, mas aqui vou aceitar o convite ainda não feito para retirar um pouco de meus abrigos, desde já grata pela oferta não expressa.
Não tenho muito tempo, de modo que nossa conversa terá que ser breve.
Para iniciar, preciso apresentar-me: sou Odete Sinclair, professora de Etimologia numa escola maternal de minha terra, onde leciono as criaturas mais impossíveis deste planeta. Sou uma profissional muito conhecida, todos sabem quem eu sou ali na escola e no supermercadinho.
Vim aqui… Mas antes, permita-me dizer que o nome Papai Noel passou para o Português do Francês Père Noël. A primeira palavra quer dizer “Pai” e se usa muito como tratamento familiar e afetuoso para um homem que não é mais jovem. Não que seja o seu caso, claro.
E Noël é a palavra francesa para Natal, e vem da expressão latina natalis dies,“dia do nascimento” (no caso, de Jesus).
Este dia também é conhecido como o dia da natividade, do Latim nativitas, “nascimento”, de naqui, “nascer”.
Em Inglês o Natal é conhecido por Christmas, da antiga expressão Cristes maesse, “missa de Cristo”, que no início era a única celebração que havia. Naquela época as crianças ainda não pensavam em ganhar videogames e tablets.
Como a cultura americana predomina em minha parte do planeta, já me perguntaram várias vezes por que se vê escrito Xmas em muitos letreiros nos filmes. Essa grafia começou a ser usada no século XVI na Inglaterra e se fez a partir da letra inicial de Cristo em Grego, que se escreve como um X. Mas atualmente muito a associam ao uso em propaganda e não lhes agrada muito vê-la, não.
Já que falamos nessas palavras em Inglês, acrescento que o seu nome nesse idioma é Santa Claus, o que o senhor naturalmente já sabe. Mas a maioria ignora que ele veio do Holandês dialetal sante klaas, de sinter niklaas, “São Nicolau”, bispo da Ásia Menor e patrono das crianças.
Ali fora percebi que se encontra estacionado seu trenó de último modelo, conversível, com todo o material eletrônico imaginável e um pouco mais. Junto a ele se encontram as renas mastigando pacificamente a forragem que lhes foi gentilmente dada. Claro que se elas não a recebessem, iriam chamar o seu sindicato, não iam trabalhar e certas pessoas que auxiliam o complexo industrial-comercial iam correr o perigo de perder o trabalho, mas não falemos nisso.
Falemos apenas de que as renas entraram no seu mito em 1826, a partir de um livrinho infantil norteamericano que descrevia o seu interessante modo de transporte movido a quadrúpedes voadores. As renas eram conhecidas como animais habituados ao frio que habitavam as regiões das proximidades do Círculo Polar. Ártico, evidentemente.
E que são bonitinhas, são.
Ah, o nome delas vem do Francês renne, do Sueco ren, que é como eles as chamam por lá.
E trenó vem do Francês traîneau, “veículo para andar sobre a neve”, de traîner, “puxar, arrastar”, do Latim traginare, uma alteração de trahere.
Hoje em dia, com tantas pessoas vivendo em apartamentos, fica difícil imaginar o senhor descendo por uma chaminé. Mas houve época em que estas não faltavam nas residências europeias, pois a lareira era uma necessidade premente no inverno.
Essa palavra vem do Francês cheminée, “lareira”, do Latim tardio camera caminata, “aposento com uma lareira”, de camera, “quarto com teto abobadado, recurvo” mais caminus, “fogo, forno”, do Grego kaminos, “fornalha”.
Depois de se espremer pela chaminé, diz a tradição que o senhor deixa presentes para todos nas meias deixadas ao lado da lareira para esse efeito.
E essa palavra tão simpática vem do Latim praesens, “imediato, à disposição, presente”, de praeesse, “estar à mão, estar à frente”, de prae, “antes, à frente”, mais esse, “ser, estar”. Quando se dá um presente, ele é colocado à frente da pessoa.
O costume das meias vem da lenda do bispo São Nicolau, que era uma pessoa muito generosa. Isso agora é raro, mas na época de sua vida, no século terceiro AD, decerto era mais comum.
Diz-se que ele colaborou com um homem bom e pobre que não tinha como casar suas três filhas deixando moedas nas meias que elas colocavam a secar ao lado da lareira. Isso acabou gerando um bom dinheiro para a indústria de fabricação dessas peças de roupa.
Mas, meu caro senhor Bom Velhinho, não foi para lhe ensinar Etimologia que eu vim, não. Se eu tomei um voo direto para cá na Companhia Asas da Imaginação foi para lhe trazer uma lista de crianças que decididamente não merecem a sua visita este ano.
São meus aluninhos, que por esta época felizmente estão me deixando em paz e infernizando outras plagas.
Olhe aqui no meu papel: esta, por exemplo, adora subir em minha mesa da sala de aula para dançar. Esta outra sempre me aparece com umas palavras de etimologia desconhecida. A seguinte está sempre fofoqueando, trazendo histórias inadequadas que exigem minha intervenção para que as mentes impressionáveis dos infantes não sejam prejudicadas.
Este aqui rabisca o tempo inteiro, sem parar, num caderninho, apesar de não saber escrever ainda. O outro passa toda a aula dormindo.
Esta de nomezinho curto é impossível. Onde ela chega se forma automaticamente uma agitação das mais deletérias. E esta outra é tão, mas tão bem comportada que dá vontade de esganá-la. Os dois seguintes são dados a pensamentos impróprios até para maiores. E assim por diante, até o fim da lista de presença.
Veja, eles não merecem a sua visita.
Mas… pensando bem, a primeira ali é apenas uma criança e até fica engraçadinha dançando. A outra deve pesquisar bastante para trazer palavras de origem incerta, isso não é mau. A das fofocas deve ser influenciada por familiares e não tem culpa.
O escriba está apenas se preparando para um dia ser escritor. O que dorme mostra que está confortável na aulinha.
A mais elétrica de todos é apenas cheia de vitalidade infantil.
Os dois taradinhos devem estar muito sujeitos aos estímulos que atualmente abundam em todos os meios.
Quer saber, Papai Noel? Deixa pra lá, faça suas visitas normalmente e esqueça a denúncia que vim fazer. No fundo, deve ter sido por sentir a falta deles durante as férias.
Até mais e um bom trabalho para o senhor.
Enrolando-se de novo em seus abrigos, a professora saiu em passos apressados, deixando o dono da casa sem saber se tinha tido um pesadelo acordado ou se tudo era culpa do trabalho excessivo.