SIRCO [Edição 59]
X-8, o impertérrito, animoso, audaz, bravo, denodado, impávido, intimorato e demais adjetivos laudatórios por ele mesmo escolhidos – mas com toda a honestidade! – detetive das palavras, esta noite se permitiu comer um bauru no Restaurante do Garcia.
O Porco Garcia (apelido que só circulava entre poucos clientes e que jamais era citado na frente dele) tem seu restaurante bem na frente do Ed. Éden, onde se situa o escritório etimológico de X-8.
Aqui este se dedica a ensinar afanosamente a quaisquer palavras, mesmo algumas estrangeiras, as origens delas.
Desde que elas pagassem bem, claro. E elas pagavam com gosto, pois se há uma coisa que deixa uma palavra maluquinha é lhe acenarem com a sua origem.
Enfim, esta noite o detetive foi comer um bauru.
O conteúdo de bacon e maionese dos baurus do Porco Garcia o tornaria material proibido pelas autoridades sanitárias em qualquer outro lugar que não fosse aquele bairro.
Depois de saborear longamente tão insalubre delícia, nosso herói sentiu o de sempre: uma locomotiva dançando um animado pagode no interior do seu abdome.
Ele sabia que precisava caminhar um pouco para tentar digerir aquela refeição que teria mantido uma jiboia quieta por um mês.
Deliciado pelos sabores recém-desfrutados, sentindo culpa por não ter caráter suficiente para se manter longe daquela tentação, o detetive percorreu devagar as ruelas sujas, eternamente iluminadas pela lua cheia.
Foi quando ouviu barulho no fim de um beco, pouco adiante. Curioso, foi espiar.
Chegou até a sua entrada e viu uma faixa com letras irregulares estendida de lado a lado, no alto:
GRAN SIRCO ETIMOLÓJICO!
APRESENTAÇÕES ÚNICAS!
NÃO PERCA!
Intrigado com aquilo, o detetive entregou algumas moedas para o sujeito mal-encarado que fazia de porteiro atrás de um caixote de madeira desengonçado e seguiu até o fundo do beco.
A parede bem dos fundos estava totalmente tapada por um pano com coisas pintadas que pareciam ter a ver com flores e anjinhos esvoaçando, mas X-8 não pôde ter certeza, dada a duvidosa capacidade do pintor.
Um público de palavras e pessoas se sentava em bancos feitos com tábuas mal equilibradas sobre pilhas de tijolos.
Bem naquele momento começava o estranho espetáculo. Um sujeito com capa preta até os pés, cartola puída e longos bigodes negros mefistofélicos, com um ar maligno levemente prejudicado pelos óculos para miopia, apresentou-se, com voz retumbante, como sendo o Conde Potok, o último sobrevivente da família imperial russa, os Romanov.
Ele estaria fazendo uma gira intelectual ao mundo para pagar uma promessa, apresentando palavras e explicando as origens delas; em troca, a divindade o faria ser entronado como Imperador e Autocrata de Todas as Rússias, como lhe era devido por nascença.
Sem mais delongas, estalou um chicotinho e apareceu no palco improvisado uma palavra murcha, esquálida, Currículo. Enquanto ela dava uma volta desanimada no espaço exíguo, o Conde anunciou:
– Aqui temos, distinto público, uma palavra que vem direto da época das legiões romanas!
Inicialmente ela era curniculus, “pequeno chifre”, um pequeno pingente de metal concedido ao legionário que tivesse pegado o touro pelos chifres numa luta, isto é, enfrentado o inimigo com as mãos nuas, que ele pendurava orgulhosamente da borda de seu capacete. O curniculus, não o inimigo.
A palavra saiu por um lado e entrou outra, igualmente tristonha:
– Aqui está a conhecidíssima Cesariana. Ela data exatamente do dia do nascimento de Júlio César, o general romano. Por problemas de dilatação do colo uterino da parturiente, ele teve que nascer por uma incisão na barriga dela.
Assim que teve a criança nas mãos, o obstetra disse: “Esta operação, de agora em diante, receberá o nome deste nenê, já que ele vai ser muito famoso. Qual foi o nome que os papais escolheram para ele?”
O detetive, quieto na plateia, não arregalava mais os olhos por falta de espaço.
E assim seguiu a inacreditável apresentação etimológica.
Agora apareceu Miradouro, com a explicação de que se originara de um belvedere às margens do Rio Douro, em Portugal, de onde se “mirava o Douro”.
A seguir, surgiu Forró. Esta foi originada no Nordeste quando os americanos tiveram uma base militar ali, na Segunda Guerra Mundial. Em algumas ocasiões, eles faziam festas for all, isto é, “para todos”, não apenas para os militares estrangeiros.
E aí foi a vez de Testemunha, que surgiu devido ao hábito romano de, ao se fazer um juramento, colocar a mão nos testículos.
E então desfilou, muito constrangida, a palavra Enfezar, “que vem de fezes, demonstrando que quem está sujo com elas só pode estar muito incomodado, raivoso”, disse o Conde, pavoneando-se pelo palco, fazendo rodar a sua capa de tecido sintético, e estalando o chicote – que nem sempre produzia o estalo desejado, diminuindo consideravelmente o efeito esperado pelo Mestre de Cerimônias.
Aí veio Cronologia, cuja origem era o deus do tempo grego, Cronos, que tinha originado diversos termos eruditos relacionados ao tempo e sua medida.
O detetive não pôde se agüentar. Colocou-se em pé e berrou:
– Não é nada disso! Tudo o que esse sacripanta disse é mentira! Ele está explorando essas pobres palavras e dando falsas origens!
O público ficou estarrecido. O apresentador puxou a cartola um pouco para trás, num gesto indignado, e enrolou dramaticamente a capa nos ombros.
Ia abrir a boca para se manifestar, os olhos fuzilando, quando X-8 lançou uma torrente de explicações:
– Para começar, Currículo vem é do Latim curriculus, de currere, “correr, cumprir um percurso”. É um documento que descreve o percurso profissional de uma pessoa, a sua carreira.
E Cesariana vem do verbo latino caedere, “cortar”, que nos deu igualmente “incisão”. Nada tem a ver com o nome do nascituro.
Mesmo porque, naquela época, essa cirurgia só se fazia in extremis, ou seja, num caso perdido, apenas para salvar a vida de uma criança cuja mãe estivesse à morte. Se ela por acaso não tivesse morrido ainda, a infecção do corte certamente a levaria em pouco tempo. E Aurélia, a mãe de César, sobreviveu por bastante tempo ao nascimento dele.
Já Miradouro se formou a partir de mirare, “espantar-se, olhar demoradamente, olhar com muito interesse”, mais o sufixo –orius, formador de adjetivos.
Quanto a Forró, deriva do Francês faux-bourdon, um tipo de composição musical, que deu em nosso país “forrobodó” e depois “forró”.
Testemunha vem do Latim ter, “três”, mostrando que ela é uma terceira parte numa causa, nada tendo a ver com as querelantes. Ou assim devia ser, pelo menos.
A pobre Enfezar ali (a essa altura, as palavras da apresentação tinham saído de trás da cortina e olhavam, espantadas, aquela manifestação) vem é do Latim infensare, “ter hostilidade contra, encarniçar-se com, perseguir”. Nada tem a ver com fezes, palavra que deriva de faex.
Para terminar, Cronologia vem do Grego khrono, “tempo”; nada tem a ver com o deus Kronos, que aliás não era deus do tempo coisíssima nenhuma. Os gregos nem sequer tinham em seu panteão um deus para o tempo.
O “kh” inicial indica nossa transliteração da letra grega “chi”, que tem o som de “ch” alemão, tornando essas palavras tão distintas entre si quanto “rolo” e “bolo” em nosso idioma.
Em conclusão, EU DENUNCIO! Denuncio este conde de araque como um escravagista de palavras e mentiroso, que está desencaminhando as palavras de menor idade aqui presentes e enganando o público pagante, sabe-se lá com que intenções malignas por trás!
Os presentes, que sabiam que X-8 era o maior intelectual do bairro – o único, aliás – ergueram-se dispostos a fazer um linchamento, atividade que o pessoal das redondezas achava particularmente divertida.
Armaram-se com paus, pedras, garrafas plásticas vazias e avançaram para o palco.
O Conde deu um passo atrás, fez um ar feroz e ripostou:
– Nada disso! Se pensam que me intimidam, saibam que não vão conseguir! Sou um nobre, altivo e bravo!
E tranquilamente digo: prefiro fugir a morrer! – e se escafedeu por uma abertura que tinha preparada por trás das cortinas e que o levava a uma moto que tinha preparada no beco de trás para o caso de algo dar errado.
Não pôde ser alcançado de modo algum pelos circunstantes indignados. À distância se ouviu morrer o ruído da moto e as gargalhadas do fugitivo.
De qualquer jeito, as palavras do “Sirco” foram resgatadas e carinhosamente acolhidas no bairro.
X-8 teve seu dia de herói. Muitas e muitas vezes, anos depois, ele contaria de sua coragem épica, acrescentando uma liberdadezinha literária aqui e outra ali…