Space Shuttle [Edição 18]
Eu estava pelo fim do secundário naquele dia em que cheguei ao gabinete do meu avô. Espiei do lado de fora da porta e vi o velho esbelto, de olhos claros e barba branca curta, sentado à sua poltrona de couro, com um livro na mão, o olhar perdido no vazio.
– Ué, Vô, o senhor está sonhando de olhos abertos?
– Como anda, jovem? Veio incomodar mais um pouco?
Eu conhecia o humor dele e sabia lidar com isso:
– Vim só ver se o senhor está vivo ou se vai sair logo a minha herança.
– Se você contar com a herança para breve, é melhor não se endividar. Agora mesmo é que eu me recuso a morrer. Mudando de assunto, eu estava aqui me espantando sozinho com algo que acabo de aprender. Até é bom que você tenha aparecido, assim posso passar adiante a história.
– Oba, mais origens de palavras? – E fui me acomodando no banquinho que eu ocupava para ouvi-lo falar desde que era pequeno e tinha perdido o medo dele.
– Não exatamente. Descobri que um dos aspectos tecnológicos mais salientes desta nossa época teve origem há mais de dois mil anos. E eu, embora estando já em avançadíssima idade – olhou-me com ar severo – não perco nunca a capacidade de me maravilhar.
– Bem, estou esperando, Vô.
– Então vou-lhe contar o seguinte: os trens nos Estados Unidos têm uma bitola de quatro pés e oito e meia polegadas, o que dá uns cento e quarenta e três e meio centímetros.
– Puxa, que maravilha! Fantástico, extraordinário! Mas… o que é bitola?
– Bitola, seu engraçadinho, é “uma medida, um padrão, uma regra que define dimensões”. No caso que nos interessa, é a medida entre os lados internos da parte de cima dos trilhos de trem, onde as rodas se apóiam.
Ou seja, define a largura dos trilhos e, portanto, a da via férrea, acrescentando-se uma sobra lateral para os vagões e um espaço para segurança. A palavra não tem origem bem definida, mas parece vir do Anglo-Saxão wittol, “medida”.
– Muito bem, mas por que a medida é exatamente essa, uns números que são tão quebrados em qualquer sistema de medidas?
– Ahá, você notou isso. Muito bem. Justamente aí é que está o interessante. A bitola americana é assim porque os construtores das estradas de ferro americanas seguiram as medidas que eram usadas na Inglaterra. Isso responde à sua pergunta?
– Não, apenas a transfere para a Inglaterra.
– Ótimo. Às vezes até fico com a esperança que, com o tempo, você aprenda a raciocinar… Então eu explico que as primeiras ferrovias inglesas foram feitas pelos mesmos fabricantes que faziam os bondes e suas linhas, bem como as carruagens, com as mesmas ferramentas, os mesmos componentes e a mesma tecnologia.
– O senhor vai me dizer que os bondes, aquelas coisas que andavam em trilhos nas nossas cidades e de que o senhor gostava tanto, existiam já na época dos primeiros trens? E com que eletricidade?
– Na época dos primeiros trens, os bondes já existiam, sim senhor. Mas é claro que não eram elétricos, e sim movidos a tração animal. Eram puxados por cavalos e mulas e se deslocavam sobre trilhos porque a pavimentação era precária e também porque ela seria estragada por veículos pesados fazendo sempre os mesmos trajetos.
Aliás, falando nos trens iniciais, estes foram, por vários anos, usados apenas para puxar vagões em minas. Havia um certo medo em relação ao uso para passageiros. Um pouco mais adiante se pensava que o ser humano não resistiria a velocidades acima de sessenta quilômetros por hora!
– Que gente pessimista. Mas o senhor ainda não explicou a distância entre os trilhos. Acho que está é me enrolando!
– Tinha que ser essa a medida, pois era essa a distância entre os sulcos das ruas e estradas.
– Como assim?
– As primeiras estradas longas e bem planejadas da Inglaterra – aliás, da Europa – foram feitas pelos romanos. Eles eram ótimos nisso.
Ainda hoje, na Inglaterra, quando uma estrada é bem reta, muitas vezes é porque foi feita sobre o traçado de uma construída pelos romanos quando estiveram por lá.
Ora, o interesse do Império Romano não era propriamente estimular o turismo dentro da sua área. Eles não eram tão bonzinhos assim: “Visite Lugdunum! Conheça a Helvécia! Repouse na Nortúmbria!” Nada disso. O que eles queriam era poder deslocar as suas legiões rapidamente para onde elas fossem necessárias à manutenção dos interesses imperiais.
Logo, pelas estradas andavam a infantaria romana e os carros de guerra, além dos de mantimentos. Já que as rodas não eram de borracha e sim de madeira revestida de ferro, elas iam desgastando as estradas ao longo dos séculos de uso. Assim, elas ficaram sulcadas e os veículos de tração animal que vieram depois tiveram que ter as rodas adaptadas a esses sulcos.
– Mas qual é o grande problema se não forem da mesma largura?
– Experimente guiar uma carroça ou uma diligência que tenha as rodas de um lado enfiadas num sulco e as do outro em nível mais alto. As pessoas vão se amontoar, a carga vai se soltar, os ovos vão quebrar e você vai ser muito xingado.
Se você construir um veículo com eixos mais largos, ele não passará por outros na estrada. Se o fizer com eixo menor, ele vai passar todo o tempo capotando. Na prática, não havia jeito senão encaixar as rodas nos sulcos que existiam.
Ora, os veículos de guerra romanos tinham dois cavalos. A medida confortável e eficaz para dois cavalos andarem lado a lado determina o comprimento do eixo do veículo. E esses carros eram padronizados em toda a extensão do Império. E adivinhe qual era essa bitola?
– Não me diga que eram aqueles um metro e quarenta e três!
– Exatamente.
– Então os nosso trens são desta largura por causa das bigas romanas?
– Não só eles. Você naturalmente conhece o Õnibus Espacial, ou o Space Shuttle, como é chamado pelos donos, não?
– Claro, Vô, mas não me venha dizer que ele é movido a cavalo ou que tem alguma coisa a ver com os romanos!
– E se tiver muito a ver com os romanos, o que é que eu ganho?
– Aí eu lhe garanto uma nota acima de oito na minha prova de Física neste mês.
– Trato feito! – e apertamos as mãos.
– Antes que o senhor continue, Vô, desde quando “ônibus” se diz shuttle em Inglês?
– Não se diz. Na hora de traduzir para o Portugês, nossos jornalistas se atrapalharam com essa palavra, que quer dizer “lançadeira”, ou seja, um veículo que faz trajetos entre destinos próximos.
Um bom exemplo são os barcos em que as pessoas sobem para serem levadas a um navio de um tamanho que o impede de chegar ao local de embarque. São veículos que vêm e vão em trajeto curto transportando material e passageiros.
Shuttle vem do Norueguês Antigo sceotan, “atirar, lançar”. O nome em Português, “lançadeira”, é dado por analogia com a peça do tear que vai e vem, passando o fio.
Como esta palavra era pouco conhecida, pespegaram o nome “ônibus” no veículo que faz o transporte entre a Terra e uma estação espacial. Mas não foi esta a idéia dos seus criadores.
Voltando ao assunto: você sabe que esta nave tem dois propulsores. Eles são fabricados pela Thiokol no estado de Utah. Os engenheiros preferiam, no início do projeto, que eles fossem mais largos do que são, mas tiveram que enfrentar um problema que lhes reduziu as dimensões. É que eles têm que ser levados de trem para o local da montagem da nave.
A linha do trem atravessa alguns túneis no trajeto. A largura dos túneis é determinada pela largura dos vagões, que é determinada pela bitola dos trilhos, que…
– … É determinada pela distância que havia entre os rabos de dois cavalos romanos, há mais de dois mil anos! Essa sim, o senhor me ganhou, Vô! Bela história. Quando eu contar para os meus colegas eles vão ficar abestalhados.
– Então não fale, pague. Se você não tirar aquela nota em Física, vai ter que…
– Não precisa ameaçar. Está aqui no bolso a minha prova, olhe só: tirei 8,5.
– Você está me tapeando!
– Eu não disse que ainda ia fazer a prova. Disse que garantia a nota, e ela está aqui.
– Não sei, não. Você está me saindo espertinho demais. Está se aproveitando de um pobre ancião, passando-lhe a conversa e incomodando-o no seu descanso. Em todo o caso, vamos dar uma volta pela cozinha e ver que medidas podemos tomar por lá.