Terapia De Família [Edição 18]
Noite de inverno em determinado bairro da cidade grande. O vento passa rápido, contando sem parar suas histórias de fantasmas. Ele deixa fria a pele de pessoas e palavras, arrepia suas mentes, afugenta-as das ruas.
Uma rajada mais forte arranca um pequeno cartaz de um poste de madeira meio inclinado. Ali está escrito:
X-8, AGORA COM TERAPIA DE FAMÍLIA.
PERGUNTAR NO BAR DO GARCIA
É um aviso misterioso. Mas não cai em olhos cegos: uma mão o pega no meio da sujeira da calçada e o mostra ao resto do grupo que parou na calçada. São cinco vultos que andam devagar, como se tivessem pouca alegria em viver. Todos olham o papel com atenção e fazem que sim com a cabeça.
Caminham mais uma quadra e entram no Bar do Garcia, que tresanda a gordura de hamburger de origem misteriosa. Tem um aspecto sujo, mas pelo menos não há moscas voando por ali. Quando a fritura começa, elas caem durinhas no chão.
Detêm-se junto ao comprido balcão. Garcia, gordo, barba por fazer, cara de poucos amigos, se dirige a eles e os encara, sem dizer nada, uma interrogação nos olhos porcinos.
Ele ostenta um pesado e seboso bastão de madeira de lei na mão, que é para deixar tudo bem claro. Se forem ladrões ou fiscais, não são bem-vindos ali.
Mas Garcia se sente melhor quando termina de ler o cartaz que o líder do grupo larga sobre o balcão, sem dizer nada. Leva uns minutos, é verdade, mas lê tudinho.
Hoje ele não está para muita conversa. Retira das profundezas de um bolso do avental manchado de café, cerveja e antigas e indizíveis gorduras, um lápis bem curto e de ponta bem romba, pega o cartaz de sobre o balcão e rosna:
– Nomes.
Cada um dos que se encostam ao balcão dá o seu nome, que ele desenha com muito trabalho nas costas do papel.
Ele se vira para um telefone preto, dos antigos de baquelita e fio encordoado, e faz uma ligação. O grupo não consegue ouvir nada, pois ele abafa a boca junto ao telefone com o pano que usa para secar os copos e a testa. Após uns grunhidos indistinguíveis, ele se vira e diz:
– Amanhã. Vinte horas em ponto. Naquele edifício em frente. Terceiro andar. Procurem a placa. O preço é… – e diz uma exorbitância.
As palavras falam entre si rapidamente e a que comanda assente com a cabeça para Garcia, que lança um curto grunhido ao telefone. Elas viram as costas e saem, no seu andar pesado.
Nesse momento, X-8, o detetive etimológico, desliga o seu telefone, vai à janela e olha para o outro lado da rua.
Garcia, que de sonso só tem a cara, já estava à porta do bar, de olho na janela do detetive. Quando ele enxerga X-8, faz um gesto esfregando a borda de uma mão sobre a palma da outra e relanceando um olhar para o bastão de madeira que está seguro pela axila.
Maravilhas da comunicação interpessoal não falada! Em dois ou três segundos, Garcia, que foi expulso do colégio antes de completar o segundo ano primário, disse, sem emitir um som:
– Ô meu, não se esqueça que temos um convênio em que eu recebo um percentual de cada palavra que envio para a tal de Terapia de Família que você inventou e que, se eu não for pago direitinho o meu cacete aqui presente vai fazer uma farra das grossas nessa sua cabeça pretensiosa! Tá bem avisado!
A saída airada de X-8 da janela expressou:
– Não sou pessoa de faltar a meus compromissos, mesmo que sejam com um porco sujo e inculto como você.
De volta ao seu escritório cuidadosamente desmazelado, X-8 olha o nome de cada membro da família que marcou consulta. São eles: Croquete; Croquis; Croque; Crocante; Escroque.
Muito bem. É o primeiro grupo familiar desde que ele teve a brilhante idéia. Afinal, ultimamente ele tem atendido mais de uma palavra de uma vez. Está na hora de fazer uma mousse com esses limões! Vamos agregar valor aos serviços e cobrar mais!
Na noite seguinte, uma cena familiar: as palavras estão sentadas sobre um incômodo banco de madeira e à sua frente se encontra o grande detetive.
As clientes só enxergam uma capa de gabardine cor de areia com a gola levantada e um chapéu marrom. O rosto da pessoa ali dentro está oculto nas sombras. Sombras, aliás, que predominam naquele escritório saído dos anos 50, empoeirado e descuidado como convém àquele tipo de profissional.
A voz dele é calma, fria, desprovida de sentimentos, quando começa a falar:
– Muito bem. Começando por Croquete: tal palavra vem do Francês croquette, derivada do verbo croquer, que significa “partir, romper fazendo ruído”. Como se vê, trata-se de uma palavra onomatopaica, ou seja, ela imita o ruído que a originou.
Quanto a Croqui, seu nome vem do Francês croquis, que também vem de croquer.
– Mas como foi que meu sentido passou de um tipo de bolinho de carne para “desenho rápido, esboço?” – perguntou a palavra, intrigada.
– Foi porque o sentido de “desenhar rapidamente” foi comparado a “comer rapidamente”. Coisa de franceses, que pensam muito em comida.
Continuando, Crocante ali evidentemente também vem de croquer. Todos sabem como é bom comer algo quentinho e com uma casca crocante.
Agora, Croque é uma palavra que tem um certo trabalho, não? – o detetive olhou com simpatia (mas, de fora, não deu para notar) para a palavra.
– Pois é. Tenho que me desdobrar para atender a mais de um sentido. Por sorte para mim, não sou exigida com muita freqüência, não.
– Isso mesmo. Um dos seus sentidos é o de “gancho, instrumento com curva na extremidade”. Os marinheiros sempre têm a bordo um croque para retirar alguma coisa dágua. Vem do Francês croc, que a recebeu do Norueguês Antigo krokr, “gancho, canto”.
– E meu outro significado, tem a mesma origem?
– Não. No sentido de “golpe dado na cabeça”, vem de “casco”, usado aqui no lugar de “crânio”.
O detetive se virou para Escroque, que estava meio de banda, aparentando certo nervosismo.
– E você, a sua origem é o Francês scroc, do Italiano scrocco, “artimanha, calote, exploração”, do verbo scroccare, “obter à custa alheia, enganar”.
– Quer dizer que ele não é nosso parente? – perguntou Croquete.
Imaginando o que poderia acontecer (não era à toa que se tinha dado muito bem em Psicologia das Palavras I e II na Faculdade), X-8 tentou desviar:
– Ora, não somos todos irmãos, no fundo? Não descende a humanidade inteira de um animal marinho que um dia resolveu andar pela praia para ver como era? Não vêm todas as palavras do primeiro grunhido que soou nas cavernas, quando um primata descobriu as suas cordas vocais, talvez ao tropeçar nelas?
Mudando de assunto, preciso acrescentar que vocês não trouxeram uns primos, como, por exemplo, crochê. O nome deste trabalho com linha vem do instrumento usado nele, uma haste com ganchinho na ponta, do mesmo krokr usado um dia pelos Vikings.
Existe outro parente de vocês que nem sei se está vivo, e que é croquet (aportuguesado para croqué), o esporte jogado por Alice quando foi ao País das Maravilhas. Normalmente ele é jogado com um bastão curvo – daí o nome – mas lá se jogava com flamingos e…
Mas as sementes da confusão já estavam lançadas e germinaram com extrema rapidez , apesar da tentativa de X-8 de distrair as clientes. Falou Crocante para Escroque:
– E você disse que era parente! Salafrário!
Acrescentou Croqui:
– Ele estava querendo que nós investíssemos toda a nossa grana ganha honestamente na tal “Arapuk”, a empresa que você ia instalar para fazer a fortuna da família, é?
Croque se levantou e avançou para a atemorizada palavra:- Agora você vai me sentir de perto! Aproveitando a sua posição no banco de madeira, Escroque fugiu às carreiras, levantando poeira e esparramando o lixo dos corredores para o lado.
– Calma, pessoal, calma! – pediu X-8. Essas coisas acontecem nas melhores famílias. Ninguém está a salvo – e acrescentou uma porção de clichês pertinentes.
Conversou um pouco mais com as palavras, acalmou-as, contou algumas piadas, ouviu pacientemente as queixas delas contra Escroque.
Quando percebeu que elas estavam mais tranqüilas, cobrou os seus honorários (a parte da foragida elas tiveram que pagar, pois segundo o detetive essa era a obrigação legal) e se despediu.
– Muito obrigado, voltem quando quiserem. Ou melhor, mandem as suas amigas. Pagando bem, sempre nos convém.
Cinematograficamente, antes que elas saíssem, ele perguntou:
– E aquele outro parente de vocês, o Croquezz, como vai?
As palavras o olharam e uma disse:
– O senhor conhece essa figura? Não é nosso parente, não, embora a gente o veja de vez em quando pelo bairro.
O coração de X-8 se acelerou. Finalmente ele obtinha uma pista fresca daquele bandido! Como quem não quer nada, indagou:
– Onde é que vocês o têm visto?
– Da última vez ele estava no Clube Cultural, puxando conversa com as palavras por lá. O senhor quer mandar algum recado?
– Não, não. É que eu estou em dívida com ele e quero fazer-lhe uma surpresa. Não lhe digam nada se o virem, não vão estragar nossa alegria!
– Certo, fique tranqüilo. Um pedido seu é uma ordem para nós, disse Croquete.
As palavras saíram. O detetive ficou sozinho, iluminado apenas pelo cartaz de fora da janela, encostado à parede. Fazia mil planos para capturar aquele criminoso.
Mas só vamos saber deles mais adiante.