Um Arqui-inimigo [Edição 6]
No início de uma noite de verão, o céu ainda claro cede lentamente espaço às trevas. Nas quadras que circundam o escritório de X-8, as trevas estão sempre presentes ao rés do chão. O ousado investigador está matutando sobre isso, sentado em sua cadeira giratória, os pés sobre a mesa de trabalho.
Ao seu redor, a desordem que qualquer cliente espera de um lugar destes: móveis velhos, pintura das paredes descascando, teias de aranha cuidadosamente aplicadas em cantos bem escolhidos.
Alguém bate à porta.
X-8 gira a cadeira, ficando de costas para a porta, e manda entrar. Hoje está a fim de impressionar e resolveu colocar em ação um pequeno truque que bolou para esse efeito.
Ouve atrás de si a porta abrir, fechar e uma voz educada:
– Boa noite. Eu vim aqui para falar…
Mas ele interrompe, com a voz fria e desdenhosa que sabe que dez entre dez palavras suas clientes gostam de ouvir (é estranho como elas gostam de ser maltratadas!):
– Já sei. Veio para falar sobre a curiosidade que sente sobre as suas origens. Você se sente só e…
– Nada disso. Meu assunto é outro.
O detetive se vira e, surpreso, vê que não se trata de uma palavra, e sim de uma mulher em seus quarenta e tantos anos, porte digno, óculos pequenos, o cabelo castanho arrumado num severo coque na nuca, roupas escuras e sóbrias, com uma pasta de fino couro na mão.
– A senhora deve estar procurando… hesitou e, numa fração de segundo, tentou imaginar o que uma mulher distinta assim procurava num edifício horrível como o dele.
Certamente não seria Waldemar, o agiota, nem Orozimbo, o idiota. Não devia ser nada com as moças que mantinham pequenos apartamentos espalhados pelo edifício, tampouco com os rapazes idem idem. Beto, o contrabandista? Vladislau, o violinista bêbado que tentava tocar em festas mas acabava sempre expulso antes de começar? Ah, claro! Só podia ser isso:
– …Dona Alzira, a costureira? É no andar de cima, mas não recomendo. Uma vez mandei fazer uma camisa de manga longa com ela e ela fez de manga curta. Todas as três. Em todo caso, é ali no…
– Não. Quero falar com o Sr. X-8, disse a mulher, algo rispidamente.
– Esse sou eu, mas houve algum engano: eu só atendo palavras. Se a senhora quer mandar seguir o seu marido, posso indicar outra pessoa.
– Trata-se de um assunto que diz respeito a palavras. O senhor vai me ouvir ou não?
X-8, desmoralizado pelo seu truque falhado e pelos seus erros de avaliação, convidou-a a sentar. A mulher começou:
– Sou a diretora de um colégio particular para palavras – e disse o nome de um dos colégios mais caros da cidade. X-8 arregalou os olhos. Felizmente, estes estavam ocultos pelas sombras que o chapéu e a gola da gabardine lançavam. – e, há coisa de um mês, começamos a ter um problema sério com algumas palavras adolescentes, em torno dos quatorze anos.
Elas começaram a ter péssimo rendimento escolar e alterações de comportamento. Os pais dizem que elas não se alimentam direito, não tomam banho, têm pesadelos – enfim, uma situação das mais preocupantes. Então uma das mães sugeriu o seu nome para fazer uma investigação. Gostaríamos de saber se o senhor está disponível para investigar as causas disso. O nosso interesse é resolver tudo da maneira mais discreta possível, e me disseram que o senhor é um profissional muito sério.
– Disseram a verdade, Sra. Diretora – um lampejo de inspiração guiou o resto da frase – mas, infelizmente, estou preso a um contrato que prevê multa caso eu não complete certos trabalhos que estou em vias de entregar, e só terei tempo mais adiante.
– O colégio pagará a multa, não se preocupe. Gostaríamos que o senhor nos visitasse logo.
Com cifrões voejando por dentro da cabeça, impressionado com a credulidade da diretora e com a sua própria cara de pau, X-8 acertou a parte adiantada do pagamento e fez outras combinações.
No dia seguinte, ele compareceu ao colégio na hora previamente combinada. A diretora o levou a uma sala de aula, onde haviam sido reunidas as palavras problemáticas. Só ele e a diretora entraram.
O detetive ficou atônito com o que viu: todas as jovens palavras apresentavam distúrbios de conduta. Umas pulavam o tempo todo, sem sair do lugar; havia uma que agredia as outras com beliscões, outra que estava sentada sobre uma classe, chorando mansamente. Uma das jovens estava encolhida num canto, abraçada ao cesto de lixo, com o olhar perdido, enquanto outras rodopiavam gritando escandalosamente.
As palavras olharam aquele sujeito com roupas esquisitas, deslocadas naquele calor de dezembro. Ele, por sua vez, amaldiçoava o traje obrigatório da profissão, pois se sentia derreter. Mas um profissional é um profissional, pensou.
Bateu palmas e pediu que as palavras se sentassem. Mais por curiosidade do que por obediência, elas o atenderam. Ele resolveu seguir a sua intuição e escolheu uma delas, ao acaso:
– Você aí, Panetone. De onde você vem?
– Eu sei que a minha origem é panis Neptunis.
X-8, intrigado, perguntou:
– E como é isso?
– Antigamente, nas ilhas gregas, onde todo o mundo dançava de cuecas Zorba, sempre que um barco ia fazer uma viagem mais longa, fazia-se uma cerimônia. O capitão encomendava um pão doce com frutas cristalizadas, que devia ter o formato de um chapéu de mestre-cuca. Na hora de sair do porto, o capitão ia até a proa da embarcação, fazia uma oração e jogava o pão longe, como uma maneira de aplacar Netuno, o deus dos mares, para que ele concedesse bom tempo para os viajores.
Eta colégio bom – pensou X-8. Naquela idade, dizer “viajores” em vez de “viajantes” denotava um bom estudo. Percebeu que as palavras estavam um pouco menos agitadas e perguntou a Panetone:
– Quando é que você descobriu isso? E o que está achando?
– Faz pouco mais de um mês. Desde então tenho tido pesadelos em que me vejo afundando no mar, sem poder respirar, percebendo os tubarões se aproximarem, pois fiquei sabendo que Netuno sempre enviava esses peixes para ver se o material era bom ou não.
O detetive apontou para um verbo, Estugar:
– E você, o que me diz?
– Eu venho do nome da cidade prussiana de Stuttgart. A infantaria prussiana de Frederico o Grande, que costumava recrutar seus oficiais ali, costumava entrar em passo acelerado nas cidades atacadas, para matar toda a juventude do lugar, evitando assim que aquela cidade pudesse contribuir no futuro para formar um exército que lutasse contra eles.
Descreveram-me tão bem aqueles soldados com um fuzil de mecha às costas e espada na mão, os uniformes vistosos com botões dourados, as casas incendiadas ao fundo, a gritaria dos jovens… não paro de ouvir os gritos de Stuttgart! Stuttgart!, enquanto as suas botas de cano alto, aquelas com uma proteção à frente do joelho, ecoam nas pedras das ruas. Esses gritos mais tarde se transformaram, em Português, numa palavra que significa “apressar o passo”, ou seja, eu. – E começou a chupar o polegar.
Aquela espécie de terapia de grupo estava agindo sobre as palavras. Estavam mais calmas agora, para alívio de X-8 e encanto da diretora.
Sem ser chamada, Batata tomou a palavra:
– Já eu tenho uma história bem romântica: um marinheiro inglês naufragou numa ilha da América Central e ia ser transformado em ensopado pelos índios que o capturaram quando a filha do chefe da tribo se apaixonou por ele.
Aí ela intercedeu e prometeu fazer para todos uns famosos bolinhos de que a tribo inteira gostava. O cacique seu pai, que se derretia por ela, concordou. E ela, depois de se esfalfar fritando bolinhos para aquela indiada, levou o marinheiro para a sua oca.Foram felizes por um bom tempo, depois que ele se livrou do cheiro de alho e salsinha.
Dois anos depois, passou outro barco pela ilha e o marinheiro pediu carona. Ambos foram para a Inglaterra, onde ele montou um armazém especializado nuns tubérculos que eram extraídos dessa ilha, e que ele chamou de potata, porque esse era o nome da princesa. E daí acabou como Batata em nosso idioma, potato em Inglês.
– E você não acha bonita a sua história?
– Até acho, mas é igualzinha à do desenho da Pocahontas! Não é original! Passo o tempo todo me sentindo diminuída por causa disso! Mal consigo parar de chorar.
Sicofanta pediu para falar:
– Eu descobri que venho do Grego psikofantes, de psiké, “louco” – que nem em “psicopata” – e fantéin, “espremer, tirar o suco de algo”. Nas eras antigas, em Esparta, os loucos do asilo eram colocados a espremer frutas para o suco dos guerreiros que não gostassem de tomar café pela manhã.
E olhe que isto era já um grande avanço obtido pelo bom rei Hipócrates, pois até então os loucos eram largados no topo do Monte Olimpo para morrerem. Desde que eu aprendi isso, fico imaginando aqueles pobres doidos espartanos espremendo laranja atrás de laranja, cheios de medo, enquanto aqueles guerreiros façanhudos os olham torto de espada na mão e ficam apressando-os e exigindo mais e mais! E ainda por cima há uma marca de refrigerante que usa parte do meu nome e não me dá nem uma garrafinha de vez em quando.
Tentou entrar de cabeça no cesto de lixo.
Agora era a vez de um nome próprio geográfico, Canárias:
– Pois o meu nome vem direto daquelas ilhas no Oceano Atlântico, onde surgiram os canários, por mutação a partir daqueles dinossauros que vieram voando da África, os pterodáctilos.
Como eram ilhas não muito grandes, eles não precisavam daquelas asas enormes. Com o tempo e a evolução, foram ficando cada vez menores e adquiriram cores vivas, que era para poderem enxergar melhor uns aos outros e assim evitar problemas de tráfego aéreo. Aprenderam a voar cantando também por causa disso. Eu me horrorizei quando soube que muitos deles, por herança ancestral, tentavam voar de volta, mas por serem tão pequenos lhes faltavam as forças e eles morriam aos magotes no mar. Não consigo me livrar da imagem dos pobres bichinhos coloridos, cantando tão bonito e caindo na goela dos peixes ali embaixo! Só me alivio quando estou rodopiando e tonteando.
Mais um nome próprio, Luís, levantou a mão:
– E eu, que venho de lux, que é “luz” em Latim?
O detetive perguntou se isso não lhe parecia legal.
– Bem legal mesmo. Só que quem me ensinou isso contou que, assim como toda luz se apaga um dia, eu posso escurecer e deixar de existir a qualquer momento. Por isso eu ando fazendo todos os desaforos que consigo, já que acho que não vou viver muito mesmo!
Várias outras palavras expuseram as suas dores, todas desse tipo. X-8 as deixou falar à vontade. Agora não precisava dizer quase nada, pois as jovens ansiavam por se aliviar dos seus fardos.
Após a última falar, ele disse ao grupo:
– Muito bem. Pelo que vocês falaram, parece tudo começou há mais ou menos um mês. E de onde foi que vocês receberam essas informações?
As palavras hesitaram. O detetive aguardou com paciência, sem dizer nada. Panetone finalmente falou, olhando para o chão:
– Prá mim, foi o Pipoca 2 que disse.
As outras afirmaram o mesmo. X-8 pediu mais explicações e Estugar contou:
– Esse é o apelido que a gente deu ao novo pipoqueiro. O anterior, um velhinho gordinho e bonzinho, desapareceu de repente e surgiu esse no seu lugar. Aí… O senhor sabe, palavras da nossa idade gostam muito de pipoca doce…
As outras palavras pareceram subitamente encabuladas. O investigador a encorajou a prosseguir.
– E ele disse que daria pipoca doce grátis para cada uma, contanto que ela o ouvisse contar a origem dela… Parou, confusa.
– E como é esse pipoqueiro novo?
As palavras descreveram um sujeito com ar muito sério e inteligente, cabelo penteado para trás, óculos, voz calma, estatura média, calado e atencioso.
– Ele canta boleros?
– Como é que o senhor sabe? – perguntaram elas.
A diretora se manifestou:
– É hora do recreio. Ele deve estar com seu carrinho na calçada agora, junto ao portão lateral .
Com uma praga, X-8 se ergueu, pulou pela janela e saiu correndo naquela direção.
De dentro do grande pátio ele já avistou o canalha. O problema é que o canalha, por puro acaso, enxergou ao mesmo tempo aquela figura que corria, atrapalhada pela gabardine comprida.
As palavrinhas que estavam na calçada viram então uma cena espantosa: o pipoqueiro destravou as rodas do seu carrinho, subiu em cima dele e se deixou descer pela rua, que formava um declive muito acentuado, já que o colégio ficava na encosta de um morro. Quando X-8 chegou à calçada, o carrinho já levava uns bons trinta metros de vantagem, sua velocidade aumentando a cada segundo.
O detetive colocou a mão no bolso e sacou da arma: um elástico forte e clipes para papel. Chegou a apontar para o alvo móvel, mas sabia que não poderia arriscar as crianças inocentes fazendo disparos em via pública.
O pipoqueiro, em seu avental branco, precariamente agarrado ao teto do carrinho, fez cara de mofa, deu uma risada vilã e começou a gritar:
– Bonifrate, pascácio,apedeuta, filodoxo, estrepe, tabaréu, papanatas!!
Ao que X-8 gritou:
– Biltre, filisteu, pornófono, pústula, celerado, capiroto, platelminto!!
A voz se afastando retrucou:
– Grifanho, fariseu, nauseabundo, hipossuficiente, empiema, trapilíngüe!!
– Sacripanta, latrinário, morbíparo, mentireiro, pitecantropo, cacógeno, macróstomo!! – berrou o detetive.
Percebeu que o carrinho, agora tomado de grande velocidade, ia cruzar uma transversal à rua da ladeira. Por um instante, teve a esperança de que passasse ali um veículo e atropelasse o corruptor de menores, mas as suas preces não foram atendidas.
Pelo contrário: o carrinho chegou à parte plana da rua, subiu num grande monte de areia recém-descarregada para uma obra e parou. O pipoqueiro caiu mais adiante, esparramado. Mas se levantou de imediato, sacudiu-se, arrancou o avental e seguiu a passo rápido em direção à avenida transversal logo abaixo.
O detetive percebeu que não o conseguiria alcançar e entrou de volta.
Enquanto os professores e demais pessoas do colégio acalmavam as palavras que tinham visto aquela confusão e as encaminhavam de volta às salas de aula, X-8 voltava a se reunir com as palavras afetadas e a diretora:
– Pessoal, está tudo resolvido. Já sei o que foi que houve. Aquele sujeito é um criminoso psicopata que se compraz em fazer mal a palavras jovens como vocês. Nada do que ele disse é verdade; foi tudo cuidadosamente inventado para perturbar vocês. Não se preocupem, que mais cedo ou mais tarde ele será preso. Agora quero que vocês me ouçam muito bem: antes de mais nada, eu sou um detetive etimológico com diversos diplomas e qualificações. Conto com Fé Pública e o que vou lhes dizer agora tem caráter oficial.
As palavras estavam absolutamente fascinadas pelos fatos pouco escolares a que tinham assistido.
– Cadê Panetone? Ah, aí está. Panetone, o seu nome vem simplesmente do Italiano pane, que veio do Latim panis, “pão”.
Panetone é nada mais que um aumentativo. Há quem diga que foi um padeiro chamado Toni que bolou essa comida, mas não há confirmação. Pode parar de pensar em tubarões. Netuno não tem nada a ver com isso. É o chapéu de mestre-cuca menos ainda.
Panetone ficou pregada no lugar, visivelmente mais leve.
– E quanto a você, Estugar: em primeiro lugar, Stuttgart não é na Prússia, e sim no sudoeste da Alemanha; é a capital de Baden-Württemberg, junto ao rio Neckar. Em segundo, os soldados de Frederico II não eram mandados matar os jovens nem gritavam Stuttgart em batalha. Naquela época já não se usava o fuzil de mecha, e as botas que você descreveu são de cavalaria, não de infantaria, o que mostra a capacidade de mentir daquele vilão.
A sua verdadeira origem, até sinto dizer, não é de todo conhecida. A melhor hipótese, por ora, é que você derive do Latim instigare, “apressar, incitar”. Mas pode tirar essas imagens horríveis que aquele bandido lhe pôs na cabeça.
Batata, sempre meio assanhada, disse:
– É a minha vez? O senhor tem alguma notícia boa?
– Batata, Batata. Aquele papo evidentemente foi feito com base na historinha de Pocahontas, só para chatear você. O seu nome vem mesmo é de um dialeto Taino das Antilhas, onde o tubérculo daquela planta era chamado – imagine só! – batata.
– Eu tenho exatamente o nome da minha vovó remota? Mas que beleza! Vou dar uma festa para contar às minhas amigas!
Era a vez de Sicofanta, que esperava ansiosa.
– E você tem uma origem muito interessante. Consta que, na Grécia antiga, havia pessoas que eram nomeadas para cuidar que os figos (sykon) não fossem colhidos indevidamente, pois em certos pontos eles seriam propriedade do Estado. A elas cabia delatar os transgressores às autoridades, o que era feito “iluminando, dando a conhecer, trazendo a luz sobre um fato”, ou phaínein. Pode ter a certeza que psiké não é louco e fantéin simplesmente nunca existiu. Nenhum guerreiro recusava café, até porque este não existia na Europa ainda. Os loucos não eram espremedores de frutas. Tampouco seriam enviados ao Monte Olimpo, que ficava longe dali e já estava ocupado pelos deuses. E Esparta nunca teve um rei Hipócrates.
Virou-se para Canárias:
– Pobre menina, foi com você que aquele bandido pegou mais pesado. Deve ter visto que você era uma palavra de coração muito delicado.
O que você ouviu não passa de uma das invenções mais delirantes daquele crápula. Para começar, os pterodáctilos não eram dinossauros. Eles não voaram da África para as Canárias e muito menos viraram canários lá. Estes não são coloridos e canoros para evitar acidentes aéreos. Nunca tentaram voar para a África, e portanto não morreram fazendo isso. Aliás, nem sequer havia canários nessas ilhas. O nome delas vem de canis, “cão” em Latim, pois os primeiros navegadores europeus, ao chegarem lá, descobriram que havia muitos cães nas ilhas.
Canárias bateu palmas, deliciada.
– E você, Luís, tenha calma, que você não deriva de lux e não corre o risco de se apagar coisa nenhuma. A sua origem nem é latina, é germânica. Vem de hluot, “glória” e wig, “batalha”: “famoso na guerra, ilustre guerreiro”. O nome assim composto, Ludwig, passou a Ludovicus em Latim e depois a Luís.
E assim ele foi tranqüilizando uma a uma as jovens palavras, que foram embora aliviadas e felizes, após muitos agradecimentos.
A diretora convidou o detetive à sua sala, ofereceu-lhe um copo de água gelada que veio muito bem depois da correria e gritaria. X-8 começou a explicar:
– Conheço este miserável há muito tempo. Entramos juntos na Faculdade de Etimologia, e já de saída ele me prejudicou seriamente.
Ele me disse que o nosso professor mais ranzinza se impressionava muito se algum aluno sabia que a palavra currículo vinha do Latim curniculum, “pequeno chifre”, que eram uns pequenos pendentes de metal com a forma de um chifrinho que os legionários iam ganhando conforme a sua antigüidade e seus feitos militares e que penduravam dos seus capacetes.
Quando o mestre perguntou esse étimo, numa das primeiras aulas, eu me levantei e despejei essa besteira toda.
O professor então disse que a palavra vinha era de currus, “carro puxado por cavalo” ou o seu percurso, a sua “corrida”. Assim, currículo é o curso, o correr da vida estudantil ou profissional de uma pessoa.
Morto de vergonha, tive que ouvir o longo discurso que ele fez sobre as etimologias populares, os chutes e as invenções. Ele lançou também os prognósticos mais negros sobre o meu futuro profissional. Depois que ele saiu, tive que agüentar os dichotes e risadas de meus colegas. Levei anos de muito estudo e dedicação para me livrar daquela má fama e do apelido de Currículo que me pespegaram.
A diretora, mal conseguindo evitar o riso perante o ridículo que X-8 tinha passado, perguntou:
– Mas afinal, quem é ele? O que aconteceu depois?
– Um tal de Croquez ! É o três vezes maldito Croquez!!! Um indivíduo dos mais vis que este mundo gerou! Foi ele quem mais riu no fim daquela malfadada aula.
E no dia seguinte sumiu; abandonou a Faculdade. Desapareceu da minha vista até agora. Tive vagas notícias de que ele agora sobrevive escrevendo historinhas fantásticas e vendendo-as de mesa em mesa nos bares, mas nunca tive ocasião de o apanhar. Uma vez me trouxeram um xerox de uma história dele, com vários erros que corrigi antes de a rasgar a dentadas, mas foi só.
Agora eu sou um profissional de sucesso e ele, pelo visto, não deu em nada, mas isso não aplaca a minha ira. Ainda mais agora, que comprovei que ele definitivamente enveredou para o crime hediondo. Mas, Diretora, agora vou mobilizar todos os meus amigos do submundo para me ajudarem na caçada e vou encontrar esse criminoso, faça dia ou faça noite!
Pouco depois, X-8 saía do colégio, delirantemente aplaudido por todos. Estava ruborizado de prazer pelos elogios e aplausos. Ao mesmo tempo, sentia-se vermelho de raiva pelo crime de Croquez.
Pensamentos de alegria lhe passavam pela cabeça, metade por ter ajudado aquelas crianças que, afinal, eram o futuro do nosso idioma, e metade pelo gordo cheque que levava no bolso interno da gabardine. Ao mesmo tempo, ele pensava nas mais negras torturas que inflingiria a Croquez, quando o encontrasse.
Estava ansioso por voltar ao seu escritório e poder planejar as suas ações.
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