UM AVÔ DESASTRADO [Edição 99]

 

Quando eu era adolescente, perguntei para meu avô:

– Vô, é verdade o que o pessoal da família diz do senhor?

Ele não perdeu a pose:

– Todas as inverdades que disserem sobre mim são mentiras. Em todo caso, o que é que os línguas-de-trapo andam falando na frente de meus descendentes?

– O pessoal muitas vezes comenta que o senhor costumava ser muito desastrado, que derrubava coisas, que cometia muitas besteiras.

O gentil velho fez um ar de nobre indignado:

– Essa gente não sabe entender a harmonia dos meus gestos, a graça de minha movimentação e o fato de que por vezes os objetos não entendem os planos que eu tenho para eles.

Mas, já que estamos no assunto, vou-lhe contar umas origens de palavras relativas ao assunto.

Por exemplo, desastrado vem de desastre, o qual deriva do Italiano disastro, originalmente “má influência dos astros”. Depois passou a significar “acontecimento que causa mal ou destruição”. Iniciou a vida com o prefixo latino dis-, aqui com sentido pejorativo, mais astrum, “estrela”.

– Então é da época em que se acreditava na influência das estrelas na vida da gente?

– Infelizmente, essa época ainda não acabou. Eu mesmo estou pensando em lançar um livro sobre o assunto. Vou dizer que sou Engenheiro Astrônomo, fazer horóscopos e ficar rico.

– Verdade, Vô?

– Não. Mas, voltando às coisas sérias, há quem diga que eu sou destrambelhado. Esta se forma por des-, indicando oposição, mais trambelho ou trabelho, que designa uma peça de madeira usada para puxar fios e cordas. Se um cordame não tiver seu trambelho bem colocado, o trabalho não é feito adequadamente.

– E esse trabelho vem de…?

– Do Latim trabeculu, um diminutivo de trabs, “trave, viga”.

– Ouvi também dizerem que o senhor era canhestro.

– Pura inveja. Mas esta palavra é uma alteração de canhoto, a pessoa que usa principalmente a mão esquerda.

– E esta?

– De canho, “mão esquerda”. E esta, por estranho que pareça, viria do Latim canis, “cão”. Talvez porque ele não tenha a mesma habilidade manual do ser humano.

– É o caso do gato e da vaca também!

– Você está certo. Até agora não consegui descobrir qual a razão.

– Se a pessoa é canhota, é porque ela faz bem com a esquerda o que faria com a direita. Por que recebe a fama de desajeitada?

– O problema não é ela, são os objetos. Por exemplo, escrever com uma caneta de tinta líquida acaba gerando borrões no texto.

– E quem é que escreve com isso?

Eu volta e meia uso minha Parker 51, rapazinho, e sinto muito prazer com isso. Mas não se esqueça dos séculos que se passaram com os grandes autores usando penas de ganso. Outras coisas também atrapalham os canhotos, como o uso de tesouras. Há algum tempo existem tesouras especiais para eles. Imagine um cirurgião canhoto tendo que cortar fios com uma tesoura para destros.

– Ué, não sabia dessa!

– Depois vou-lhe fazer uma demonstração e você verá que o instrumento, quando usado na mão errada, tende a afastar as lâminas entre si, o que acaba mastigando as bordas do material sem cortar.

– Puxa, Vô, cada coisa que a gente aprende com o senhor!

– Infelizmente não cobro nada, o que me impede de enriquecer. Sou desajeitado para isso também, palavra que vem de nosso tão falado des-, mais jeito, do Latim jactus, particípio passado de jacere, “lançar, arremessar, atirar, jogar”.

E não se esqueça de que boa parte do que me atribuem é por causa do azar que muitas vezes acompanha meus movimentos. Azar vem do Árabe sahr, “flor”, pois uma das faces dos dados árabes tinha o desenho de uma florzinha. Como era um jogo definido pelo acaso  –  isso se o dado não estava viciado  –  a palavra derivada passou a significar primeiro “acaso”, independente de trazer consequências boas ou más. Em Espanhol este é o uso atual dela. Em Português é que seu significado se reduz a “sorte contrária, infortúnio”.

– E quando dizem que o senhor é estabanado, é porque vivia escorregando em cascas de banana?

– Até isso dizem de mim? Este mundo é pleno de injustiças. Essa palavra tem uma orgem interessante. Deriva de tavão, do Latim tabanus, um moscardo de picada muito dolorosa que também atende pelo nome de “mutuca”.

– O tavão derruba coisas?

– Não, descendente, o gado que é picado por ele fica agitado e tende a se comportar de forma desastrosa. O que, repito, nada tem a ver com a minha pessoa.

Mas isso me traz à memória outra palavra, estouvado, que provavelmente certas pessoas também apliquem à minha conduta no passado. Ela tem a mesma origem que “estabanado”.

– E trapalhão, caro antepassado?

– Vem de “trapo”, do Latim drappus, “pano rasgado, trapo”, provavelmente de origem gaulesa, pelo sentido de “amontoado informe, confusão”.

– Ah. E inábil?

– Vejo que meus familiares passam longo tempo se dedicando ao maligno esporte de falar mal de minha pessoa. Não importa, significa que eles pensam em mim. Quanto mais não seja para contaminar as mentes dos jovens com calúnias.

Pois inábil vem do Latim  in-, negativo, mais habilis, “fácil de manejar”, de  habere, “ter, segurar”. De minha parte, sustento que sou muito habilidoso, as coisas é que caem ao meu redor sozinhas por motivos ainda não definidos pela Ciência.

Mas agora chega de lidar com supostas más qualidades minhas. Vamos descansar um pouco.

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