Vai Às Favas [Edição 42]
É uma noite normal de terça-feira nas vizinhanças do Edifício Éden. Tudo como sempre: a sujeira pelo chão; os ratos e baratas fartos de tanto comer o material que os amáveis moradores disponibilizam, numa carinhosa demonstração de interesse ecológico; a lua cheia tornando ainda mais preta e branca a paisagem, os transeuntes olhando desconfiados para todos os lados.
Portanto, é uma noite em que os negócios transcorrem como esperado.
O Bar do Garcia exala seu cheiro de bacon frito na gordura do mês passado. As moças que trabalham em diversos apartamentos dos arredores exalam seus perfumes franco-paraguaios.
E X-8, nosso corajoso detetive das palavras, está recebendo uma palavra-cliente, Favela, que havia marcado hora uma semana antes.
Ela entra, emocionada, no escritório cuidadosamente empoeirado e desarrumado. Então era ali que as suas amigas tinham descoberto de onde vinham, alguma remontando suas origens até mesmo ao Indo-Europeu! Entre as palavras a maior moda era consultar com o detetive para descobrir as suas origens.
Ele sabia disso, e cobrava os olhos da cara pelas suas pesquisas.
O escritório era mesmo igualzinho aos daqueles detetives bêbados e violentos dos filmes americanos da década de 50.
E também tinha, atrás de uma escrivaninha que parecia feita para substituir um porta-aviões, um legítimo detetive usando gabardine e chapéu desabado para a frente. Um homem feroz de olhos de aço e boca formando uma linha apertada, fria, nariz quebrado em alguma das inúmeras lutas em que se tinha metido para descobrir a origem de alguma palavra.
Pelo menos assim imaginava a cliente, já que não dava para ver nada do rosto do personagem, que falava muito pouco.
Antes de mais nada, ele estendeu a mão enluvada para receber os seus honorários. Só depois de contar o dinheiro foi que entregou à cliente um papel meio amassado, escrito numa máquina de escrever antiga, charmoso pelo seu aspecto de décadas atrás.
– Leia – disse o detetive.
A palavra se acomodou numa cadeira e começou a ler em voz alta o papel pelo qual tinha pago bem caro:
FAVELA –
Esta palavra, na acepção de “conjunto de casas de construção improvisada, sem regularização por parte das autoridades municipais”, está em uso no Português do Brasil desde pelo menos 1909.
Sua origem é a Guerra dos Canudos, travada de 1893 a 1897 no Sertão da Bahia.
Terminada essa contenda, militares que haviam participado dela tiveram permissão para se assentarem no Morro da Providência, no Rio de Janeiro.
E colocaram nesse lugar o nome de Favela, pois assim haviam chamado o lugar onde acampavam durante a Guerra, devido ao grande número de plantas desse tipo que ali existia.
Existe um enorme número de plantas com esse nome, que deriva do Latim faba, “legume”.
Estas eram importantes na alimentação dos romanos, tanto que uma das suas gens (grupo de famílias) era a gens Fabia, de onde veio o nome próprio Fabius, que originou o atual Fábio.
Antes que se faça alguma confusão, devemos dizer que o conjunto de cavidades de cera onde as abelhas fazem seus estoques de mel, os favos, nada têm a ver com favas. Sua origem é o Latim favus, “favo de mel”.
E já que estamos falando no assunto, existia em Roma um vento morno do oeste, o Favônio, do qual ninguém fala hoje.
Como ele era considerado um vento benéfico, dele veio o nosso verbo favonear, “proteger, favorecer”, que é também uma palavra muito pouco usada.
Por outro lado, favor deriva do Latim favere, “ajudar, proteger, ser favorável a”.
Terminada a leitura, X-8 se ergueu, dando a entender que a sessão estava encerrada. A consulente colocou o papel num envelope pardo e saiu pela porta rangente, agradecendo profusamente ao grande profissional, que nada respondeu. Ele tinha uma imagem fria e distante a manter, afinal.
Para comemorar mais uma ação bem-sucedida, ele preparou um copo “on the rocks” de suco de morango e se acomodou junto à janela, olhando para o bairro misterioso que dali descortinava.