APELIDOS
O Detetive das Palavras X-8 esta noite terminou cedo as suas consultas etimológicas e resolveu tomar um sorvete no bar do Garcia, bem em frente ao seu escritório.
A noite é quente, e usar um capote de gabardine o tempo todo para não revelar a identidade é sufocante. Ele anseia por sentir um bom sorvete deslizar garganta abaixo.
Entra no bar e é olhado com a habitual frieza pelo Garcia. Mas sabe que não é nada pessoal, o dono é assim com todos.
X-8 chega ao balcão de alumínio sujo, olha os sabores de sorvete anunciados e aponta para os que deseja.
Garcia hoje está loquaz: faz que sim com a cabeça.
O detetive puxa do bolso interno da capa um envelope plástico com um objeto dentro e o passa ao proprietário do bar.
É a sua concha de sorvete pessoal. Ele não se arrisca a receber um sorvete que seja servido com a concha local, que possivelmente nunca tenha sido lavada.
Há uns tempos, ele contou a Garcia que recebera a concha de sua querida avó que, no leito de morte, havia legado o único bem que lhe restava para o neto querido que estava na Faculdade. E disse que é capaz de morrer de fome se um dia não puder comer um sorvete que não tenha passado por aquele objeto, que é como uma relíquia para ele.
Garcia, que não fora servido com demasiada abundância pela Natureza em matéria de inteligência, aceitou aquilo como mais uma loucura daquele sujeito esquisito que vivia às custas das palavras. Afinal, o cara era um cliente bom que nunca recusava pagar a quantia certa e não passava cédulas falsas.
Sentado à mesa bamba com tampo de mármore enegrecido em parte pelo tempo e em parte pelo monumental desprezo da casa pela higiene, X-8 desfrutava o sorvete. Tinha recebido de volta a concha dentro do saquinho. O acordo era que ele mesmo se encarregaria de lavá-la, o que ficava de acordo com a preguiça de Garcia e com a prudência do detetive.
Sua atenção foi chamada por um grupo de palavras que festejava seus significados comuns numa mesa ao lado das janelas empoeiradas.
Uma delas, alcunha, dizia às outras que ela pertencia a uma antiga família portuguesa, os Cunha.
Outra, antonomásia, dizia que tinha sido formada pelos nomes de seus pais, Antônio e Anastásia.
Seu sangue de expert em origem das palavras ferveu.
Ele se dirigiu à mesa das palavras e se apresentou como o conhecido consultor etimológico que era. Várias delas já o conheciam de nome ou de vista, de modo que o convidaram para puxar seu sorvete e se acomodar com elas.
Ele fez isso e, sentando-se, falou:
– Prezadas palavras, a realidade me obriga a falar algo sobre as suas origens, já que não pude deixar de perceber que algumas das presentes se encontram mal informadas.
Por exemplo, alcunha não deriva de Cunha e sim do Árabe al-kunya, “sobrenome, apelido”.
E antonomásia… Vamos primeiro dizer algo sobre seu significado, pois seu uso normalmente se restringe ao linguajar culto. Você expressa a troca do nome de uma pessoa ou outra coisa por outro nome que sintetize uma qualidade, que seja eufêmico ou irônico, por exemplo.
Assim, pode-se chamar um sujeito de Calabar, o traidor do movimento de Tiradentes. Ou de Jó, para expressar alguém com a paciência do personagem da Biíblia. Enfim, acaba podendo ter o uso de um apelido.
Dito isto, sua origem é o Grego antonomasía, derivado de antonomázein, “chamar alguém por um novo nome”, de anti, “contra”, mais onyma, “nome”.
Falando em apelido, que ali se regala com um refrigerante bem gelado, sua origem é o Latim apellare, “chamar alguém, abordar, convocar”, de ad-, “a, para”, mais pellere, “bater, levar a”. Trata-se provavelmente da extensão de uma metáfora náutica que significava “levar uma embarcação a determinado destino”.
Já cognome vem do Latim cognomen, “apelido, terceiro nome de uma pessoa pelos costumes romanos”. Vem de com, “junto”, mais nomen, “nome”, do Grego onyma ou onoma, “palavra usada para identificar uma pessoa”.
Ao seu lado vemos cognomento, um sinônimo de mesma origem. Dá para ver que a sua saúde não é das melhores, pois vários dicionários não a apresentam, minha cara palavra. Sugiro contratar alguém para lançar uma campanha de relações públicas.
Aqui lhe passo meu cartão; meu escritório fica aqui em frente, sinta-se livre para conversar comigo qualquer dia. O valor de minha hora de trabalho está escrito aí.
Outra que tem pouco uso atualmente com o sentido de “apelido” é nossa amiga agnome, ali na ponta da mesa. Sua origem é o Latim ad-, mais nomen. Em Roma, usava-se um quarto nome às vezes para caracterizar melhor uma pessoa, já que eles tinham poucos nomes próprios.
Um exemplo é o imperador Calígula, de tão má lembrança; essa palavra é o diminutivo de caliga, “bota militar”, do calçado que ele usava quando era menino e ia com seu pai às campanhas, envergando o uniforme completo de um soldado romano. Umas crianças vão com o papai à pracinha, outras iam à guerra.
Como disse, apodo? Não, não! Sua origem não é o Grego a-, “sem”, mais pous, “pé”, não! Isso que você viu em algum livro é a origem do termo ápodo, “sem pé”, usado em Zoologia. Preste mais atenção nos acentos.
Você vem do Latim apputare, de ad-, mais puttare, “supor, pensar, calcular, deduzir”.
Ao seu lado vemos apodadura, também de mesmo significado, de mesma origem e de uso quase desconhecido nestes dias.
E epíteto, aqui, vem do Latim epitheton, do Grego epitheton, “algo adicionado a”, de epi-, “sobre”, mais o verbo tithenai, “colocar”. Trata-se de “colocar” um nome novo sobre o verdadeiro.
Para terminar, eis prosônimo. Veio do Grego pros-, “ao lado, junto, perto”, mais onyma.
Bem, pessoal, dou-me por satisfeito por ter-lhes ensinado alguma coisa de forma tão espontânea. Sabedor que vocês, como palavras finas que são, não deixariam de retribuir de alguma forma ao meu humilde esforço, sugiro que paguem a minha conta ao Garcia, que já nos olha torto ali porque é hora de fechar, e me darei por satisfeito.
Uma boa noite a todas!