Eu estava no começo da adolescência. Tinha ido à casa dos meus avós paternos e cheguei à porta do gabinete do meu avô. Ela estava aberta; vi o velho limpando uma estante de livros com um pano.
Entrei e cumprimentei-o. Ele me deu um abraço com o calor de sempre. Só muito mais tarde foi que percebi como aquele abraço era importante para mim. Na ocasião que descrevo, eu já estava crescidinho e bobo o suficiente para querer menos contato.
Ele perguntou:
– Que é que há de novo?
– Sabe, Vô, aquela revista de 1930 que o senhor me emprestou? Há ali um artigo que anuncia que vai contar uma anedota dum rei de Portugal, mas só conta um fato ocorrido numa batalha e pronto. Era interessante, mas não tinha graça alguma. As piadas antigamente eram sem graça?
– E o que é que você esperava? – perguntou ele, com um sorriso nos olhos, prenunciando que tinha algo para ensinar pela frente.
– Ué, uma piada de português, ora…
Ele começou a rir e se sentou na sua cadeira de balanço. Como sempre, puxei o banco estofado em couro e me acomodei à sua frente.
– Esta palavra é das que têm uma história muito interessante. Lá pelo ano quinhentos e pouco depois de Cristo, havia em Constantinopla – esta cidade você conhece, não é? – e me olhou com ar severo.
– Sei; era a antiga Bizâncio, atual Istambul, capital da Turquia – respondi, alegre por ser tão sabido.
O olhar de satisfação dele desmentiu o pouco caso de suas palavras:
– É, até que às vezes você sabe alguma coisinha… Pois bem, naquela época havia um historiador da corte do imperador Justiniano, chamado Procópio. Ele deixou três obras escritas. Uma era sobre guerras, outra elogiava as obras do imperador.
A terceira ele chamou, em Grego, de Anekdota. Esta palavra é formada por an, “não”, mais ekdota, junção de ek, “fora”, e uma forma do verbo didonai, “dar”. Isso significa “o que não é dado”, com o sentido de “o que não é publicado, o que não é trazido ao conhecimento geral”.
E boa razão tinha o velho Procópio: ali ele contava histórias das mais cabeludas sobre Justiniano, várias outras personalidades da corte e a imperadora Teodora (entre outras coisas, revelou que ela era filha de um artista de circo e que tinha sido prostituta).
Como nosso historiador tinha o maior interesse em manter a cabeça sobre os ombros, não foi bobo de publicar esse livro. Ele veio a público só depois da morte do autor, fazendo grande sucesso, pois a humanidade sempre gostou de fofocas.
A partir daí a palavra anedota acabou tendo, em vários idiomas da Europa, o significado de “pequena narrativa de fatos interessantes de um personagem conhecido”. Este sentido se mantém ainda em Francês, Inglês e Espanhol.
Por algum motivo, em Português surgiu a conotação de “fato divertido”, primeiro, e depois “narrativa curta para fazer rir”. Entre nós, atualmente, anedota é sinônimo de “piada” para a maioria das pessoas.
– Puxa, Vô, agora sei porque o senhor riu… Eu tinha dito uma besteira daquelas!
– Viu só? Mas, antes que me escape algo que você disse, sabe de onde vem o nome Bizâncio?
– Não, mas acho que logo vou ficar sabendo…
– Isso mesmo. Gosto quando as pessoas não fogem do aprendizado. Pois se conta que essa cidade foi fundada por um grego chamado Bizas.
Bizas viveu numa época para nós muito estranha; as pessoas não estavam tão fixadas aos lugares como hoje. Lá pelas tantas, ele resolveu se mudar e fundar uma cidade, o que não era nada excepcional então. Era uma atividade até encorajada por várias Cidades-Estado gregas.
E, como todo grego da época, ele não dava um passo importante sem consultar o oráculo de Apolo. E isso, você sabe o que é? – E me dirigiu de novo um olhar reprovador, como professor que não espera nada de um aluno relapso.
– Sim! O senhor já me falou sobre ele. Havia templos onde uma sacerdotisa se chapava, engrolava umas besteiras que só quem entendia eram os sacerdotes, e estes traduziam a resposta para os fregueses, procurando sempre passar uma mensagem que servisse para tudo, e cobrando uma bela grana para isso.
– Hum. Há esperanças de vida culta, mesmo na época atual. Em essência está certo, embora eu tenha certeza de que não falei em “chapar”, “freguês” nem “grana”. E continuou:
– Como ele perguntou onde deveria fundar a cidade, o oráculo disse que devia ser “em frente ao lugar dos cegos”. Bizas saiu dali intrigado, matutando, mas foi em frente, preparou a nave e seguiu com a sua turma.
Após muito navegar, chegou a um lugar maravilhoso, com terra fértil, junto a uma baía segura, com acesso por terra estreito e fácil de defender. Pareceu-lhe que uma cidade ficaria muito bem ali, e não entendeu por que os sujeitos que viviam do outro lado do braço de mar – havia uma povoação que se enxergava dali – não tinham escolhido esse ponto, que era muito melhor.
Será que eram cegos, que não percebiam que aquele lugar era ótimo? E imediatamente percebeu a mensagem do oráculo.Foi correndo se acomodar e fundar a cidade ali. Pelo menos é o que a lenda conta sobre a fundação de Bizâncio, mais tarde Constantinopla, mais tarde Istambul.
– Bem que eu gostaria de um oráculo assim antes de fazer as provas do colégio!
– Ia ser bem feito. Você ia achar muito mais difícil tentar interpretar o oráculo do que estudar, seu preguiçoso. E agora toca para casa estudar, senão os seus colegas vão rir das suas notas baixas.
– Mas, Vô, isso era no seu tempo e no do Pai! Agora a gente ri é de quem tira notas boas!
– É verdade. Sempre achei que isso não passava de anedota, mas os tempos mudaram mesmo. Então vamos negociar: você vai para casa estudar e, em troca, eu não lhe arranco o couro a pauladas.
Por via das dúvidas, despedi-me dele e fui para casa fazer meus temas.