Eu estava com meus nove anos e ainda não tinha aprendido direito que meu avô paterno gostava de receber perguntas. Cheguei-me a ele, entre os livros do seu gabinete, e disse:
– Vô, tenho uma dúvida!
– Ainda bem, pois quem não tem nenhuma é uma besta completa. Continue assim. Mas vamos ver qual é ela.
– No outro dia, o Pai andava brabo, queixando-se de que andava pelas “catatumbas da burocracia” e eu imaginei uma porção de túmulos com burros enterrados, é assim mesmo?
O velhote magro riu até se dobrar e verter lágrimas. Tirou um lenço do bolso, enxugou os olhos, limpou os óculos e me fez sentar na banqueta acolchoada, à frente da sua cadeira de balanço em couro macio. Eu ficava encantado quando o fazia rir, pois eu sabia que ele não fazia pouco de mim, ria era mesmo das minhas bobagens.
– Você me mata desse jeito. Limpe a sua cabecinha disso tudo, que eu vou explicar agora.
Em primeiro lugar, não é catatumba, é catacumba. Eu ri tanto pela troca que você fez nessa palavra quanto pela imagem dos burros mortos, com as pernas estaqueadas para cima, às dúzias, num subterrâneo… e começou de novo a rir. E eu junto.
Quando ele conseguiu parar, prosseguiu:
– Vamos lidar primeiro com a burocracia. Por estranho que pareça, essa palavra vem de uma outra que significava “fogo” em Grego: pyrós. Como o fogo costuma ser vermelho, essa palavra passou a designar também alguns objetos que puxavam para essa cor.
Aqui é que entram os seus burros: os latinos chamaram de asinum burrum, “asno avermelhado”, ao burro, que tinha o pelo castanho. Com o tempo, a primeira palavra desapareceu da expressão e ficou apenas o burrum para designar o simpático quadrúpede.
– Puxa, Vô, então os pobres burros não têm nada a ver com a tal burocracia !
– Têm tudo, até em mais de um sentido, menino. Calma, que lá vai: naquela época se fazia um tecido grosseiro de lã chamado bura, cujo nome derivava justamente desse burrum, no sentido de cor castanho-avermelhada.
Essa bura, sendo um tecido barato, serviu para muitas coisas. Uma delas foram os hábitos dos frades, que ainda hoje se chamam “burel” por isso.
– São bons ou maus, Vô? Minha mãe sempre diz que a gente deve evitar os maus hábitos.
De novo ele começou a rir:
– Se hoje eu estivesse mal-humorado, já estaria curado com as suas perguntas… Esta palavra vem do Latim habitus, e quer dizer tanto “maneira de proceder, de agir” como “roupa, atavio”. Na verdade, neste sentido hoje em dia só a usamos no sentido de “vestimentas religiosas”.
Mas estamos falando dos hábitos que, se não eram bons, pelo menos eram os indicados para os monges, as suas roupas. Existe uma música belíssima chamada Carmina Burana, que quer dizer “Canções do Burel”, ou “Canções de Frades”. As letras não são bem o que se pode esperar de religiosos, mas os desta história eram uns aproveitadores mesmo. Podiam usar o hábito – roupa – certo, mas quanto ao resto exerciam uma porção de maus hábitos.
Bom. Além destas roupas, a bura, mais tarde, serviu para fazer os panos que eram usados para proteger as escrivaninhas dos serviços públicos da poeira, dos insetos, etc. Na França, estes móveis acabaram pegando o nome do tecido que os cobria, donde os bureaux, em nosso idioma “birô” – sinônimo de escrivaninha e de organização com regras definidas.
E todo o processamento de documentos e papelório geral que era feito nesse móveis passou a ser chamado bureaucracie em 1818, na França: era o poder exercido por uma rotina rígida e estreita, a tal “burocracia” de que o seu pai fala.
– Falando nisso, há pouco tempo, o Pai chegou todo contente em casa dizendo que tinha “enchido a burra”. Fui olhar dentro do carro e não vi burra nenhuma, só sei que fomos jantar fora aquela noite.
– Hoje você está impossível. Cada imagem que a gente faz quando é pequeno… Mas está certo. Depois a gente cresce e deixa de ter idéias gostosas assim. O que o seu pai quis dizer é relacionado com o que estávamos falando.
Dessa bura eram feitos também sacos de diversos tamanhos e formatos; alguns serviam para colocar o dinheiro recebido nos negócios. Daí as “burras”. Alegro-me pelo seu pai e desejo que, no futuro, você também ande com as burras bem cheias.
Antes de terminar com os birôs: você a toda hora vê, nos filmes da TV, citarem o FBI americano. Ele é o Federal Bureau of Investigation, ou seja, o organismo, organização ou instituição federal de investigação. E não, eles não andam vestidos de monges nem encobertos por um pano marrom, não. Andam bem engravatadinhos, como você já viu.
Agora, quanto às catacumbas. Havia em Roma um cemitério chamado Coemitherium Catacumbae, o Cemitério de S. Sebastião, na Via Ápia. Até hoje não se sabe a origem da palavra “Catacumbas” aí, mas ela acabou sendo usada para designar “galeria subterrânea para colocar os mortos”. Quando os cristãos eram perseguidos, eles se reuniam muitas vezes nas catacumbas, já que a polícia não era muito chegada a entrar lá.
Os bárbaros, ao tomarem Roma, fizeram grande destruição em tudo, incluindo as catacumbas, e elas acabaram esquecidas. Só voltaram ao conhecimento público quando houve um deslizamento de terra em 1578 que fez ressurgir uma delas. Desde então elas são uma fonte valiosa de informações sobre a antigüidade.
– E as cataratas, eram a água jogada para limpar as catacumbas, Vô?
– Gostaria de saber o que foi que você andou tomando hoje. Cloridrato de asneiril? Hipossulfito de besteirol? Benzoato de graciolina? Seja como for, “catarata” vem do Grego kata-, “abaixo, para baixo, de volta, contra”, e rassein, “golpear, bater”.
É o que a água duma catarata tem o hábito de fazer todo o tempo. Mas antigamente os gregos aplicavam essa palavra à porta deslizante de uma fortaleza. Parece que, quando estas saíram de moda, a palavra pôde ser aplicada a coisas mais pacíficas.
Esta palavra também se aplica a uma doença que afeta o cristalino, que é aquela lente transparente à frente da pupila, e que é comparada a uma nuvem que surge na lente, impedindo a visão clara.
Há muitas palavras que começam com esse prefixo grego, como cataclisma, de kata- mais klyzein, “lavar, inundar”. Designa uma convulsão violenta da natureza, como um tsunami ou inundação por outra causa.
Falando em desgraças, temos também catástrofe. Esta vem de kata- e strophein, “virar”.
Significa um acontecimento que termina em desastre, como uma mudança completa de expectativas. Na verdade, teve a sua origem no teatro, no antigo drama grego; era o momento em que os acontecimentos se voltavam contra o personagem principal.
– Foram os gregos que inventaram o catamarã? Outro dia eu vi barco desses num documentário…
– Não, rapaz! Essa palavra tem uma origem completamente diferente. Ela vem do Tâmil katta-maram, e significa “madeira amarrada”, pois em sua concepção mais simples ele era apenas um tronco amarrado paralelamente a uma canoa para lhe dar estabilidade. Já lhe disse, a Etimologia é cheia de escolhos.
Temos também a catapulta, máquina de guerra antiga, de kata– e pallein, “atirar, jogar, disparar”. Esta servia para atirar grandes pedras contra o inimigo que estava entrincheirado atrás das suas muralhas. Muito criativo, o homem já há muito séculos aproveitava a sua artilharia para fazer guerra biológica e psicológica também, o que não se faz hoje em dia com os canhões modernos.
Arregalei os olhos:
– Como assim, Vô?
– Pois muitas vezes eles atiravam corpos de animais em decomposição contra as defe
sas inimigas, para juntar fedor, moscas e bichos repelentes que eles sabiam que iam acarretar doenças, embora a Microbiologia não tivesse ainda sido descoberta. Já imaginou, a sujeira de um boi podre espatifado numa rua da cidade?
– Mas e a guerra psicológica? Atiravam papiros com textos?
– Atiravam coisa bem pior. Muitas vezes eram cabeças ou corpos dos guerreiros da cidade que tivessem saído e sido apanhados. Blurg. Vamos mudar de assunto que eu ainda não lanchei.
A catatonia, por exemplo, é outra doença – ou melhor, sintoma – que vem de kata- mais o Latim tonus, “tensão muscular, tônus”. Nesta a pessoa tende a ficar sem se movimentar, como se o controle do tônus muscular tivesse desaparecido.
Havia antes o cataplasma, que a sua bisavó me aplicava quando eu era da sua idade. Era uma espécie de gosma aquecida que se colocava no peito do paciente, de kata- e plassein, “moldar” – a mesma palavra que originou “plástico”.
Ela aplicava isso em qualquer familiar que tivesse catarro, que vem de kata- e rheon, “fluir, correr, deslizar”. A gente acabava se curando. Pelo que eu sei aconteceria o mesmo se ela não fizesse esse tratamento. Mas não faz mal; a gente se sentia cuidado e importante, e isso sempre ajuda.
Antes de voltar aos kata-, este rheon me fez lembrar que existe uma ciência, a “Reologia”, que lida justamente com os aspectos de coisas que correm, como líquidos e géis. Uma da descobertas dela é que substâncias como o catchup, essa coisa vermelha que você põe no seu X-burger, tendem a aumentar muito a viscosidade quando deixadas em paz, tornando ao estado líquido de repente quando recebem um abalo. É por isso que muitas vezes a coisa não sai na primeira tentativa, você dá uma batida no fundo do frasco, vira-o e – chuá, um cataclisma de catchup, um desastre à mesa e pais muito incomodados.
Mas, dizia eu, minha avó tirava a receita do cataplasma, de outros remédios e de várias comidas deliciosas de um catálogo ao qual ela estava sempre acrescentando recortes e anotações. Esta palavra vem de kata- e legein, “colher, falar”, e significava “listar, enumerar”.
Quando vocês andam à noite no carro novo que o seu pai comprou quando “encheu a burra”, a luz se reflete em sinais e certas marcas no chão, não é? Pois aquilo ali, tão útil e aparentemente tão banal, tem um nome bem complicado. São os catadióptricos, de kata– e dioptra, “instrumento óptico” em Latim. São os populares olhos-de-gato.
Falando nisto, eu me lembro de uma história que sua bisavó me contou.
– Conta, conta Vô!
– É uma história de quando as pessoas, na Europa, passavam muito frio no inverno. Todas dependiam muito do aquecimento com lenha ou carvão. As épocas frias matavam os mais novos e os mais velhos, as faixas de idade em que se tem menor resistência. Uma vez havia um casal de velhinhos que estava sem nada para queimar na lareira. Sentaram à frente dela por hábito, ao anoitecer. Quando terminou de escurecer, eles notaram que ali, bem no fundo, havia duas pequenas brasas. Admiraram-se muito e aproveitaram para estender as mãos para elas e se aquecer. Acabaram dormindo um bom sono assim e ao acordarem, no dia seguinte, descobriram o mistério: eram os olhos do gato deles, que os mantiveram na ilusão do aquecimento.
A história é impossível, mas é verdade que muitas vezes uma esperança infundada ajuda a gente a se manter à tona.
– Já aconteceu isso com o senhor?
Seus olhos foram para muito longe no passado.
– Já, meu filho, várias vezes. Espero que você nunca precise disso, mas é um mecanismo importante que a gente tem.
Agora vá fazer coisa melhor do que conversar com um velho, antes que você tenha que me carregar para as catacumbas.