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Meu avô contou da grande festa da Inauguração do país. As nações costumam fazer comemorações pela sua descoberta, pela sua independência depois de uma luta feroz e heróica – enfim, por situações históricas bem definidas.
Mas em Santo Caramba a coisa não é assim. Para começar, não tiveram nenhuma luta de independência, já que nem Espanha nem Portugal, que estavam colonizando o continente, queriam saber daquela porcaria.
Descoberta, propriamente, não houve: o pessoal foi chegando e se estabelecendo primeiro com um ranchinho que vendia cachaças ferozes, depois com um galpão onde havia umas moças que também dançavam se o cliente quisesse, tudo de maneira caótica, desprovida de propósito ou planejamento.
Inclusive não se tem certeza de quem foi o primeiro El Presidente.
Para eliminar tamanho problema histórico, em 1820, por ordem do El Presidente do momento, fez-se um concurso público cujo Edital rezava assim:
Considerando:
1) Que, ao contrário de todos os nossos vizinhos, San Caramba não passou por gloriosas lutas de independência nem sofreu nas mãos de potências estrangeiras;
2) Que tal fato redunda em prejuízos para o nosso ensino primário, pois nossas crianças se ressentem de não poderem aprender belos fatos históricos nem ver quadros representando batalhas valentemente vencidas pelos nossos próceres;
3) Que só o exemplo do passado permitirá que nossos jovens se sacrifiquem no presente, quando o seu El Presidente achar necessário, pelo governo atual;
4) De ordem do bem-amado, nobre, gentil, generoso e demais epítetos laudatórios o El Presidente eterno enquanto durar, Don Floriau Ordóñez, lançamos por meio deste Edital o Concurso Público para Criação da História de San Caramba.
Essa História deverá descrever, com pormenores geográficos e datas precisas, a chegada dos nossos bravos colonizadores, a luta preventiva pela Independência do País travada pelos nossos bravos soldados e diversos extraordinários feitos de armas, quanto mais gloriosos melhor, com ilustrações de nossos antepassados sempre em belos uniformes e enfrentando forças maiores do que as deles, sem perder uma batalha que seja e dando abundantes exemplos de nobreza, cavalheirismo e destreza no manejo das armas.
Seguiam-se pormenores burocráticos e a assinatura do El Presidente, com todos os títulos que ele tinha resolvido que o povo lhe atribuiria se fosse perguntado.
Os concorrentes não eram muitos, já que era necessário saber escrever. O vencedor foi um culto e criativo fidalgo de antiga família local, cuja fortuna começara no tráfico de escravos, passando depois pelo de bebidas e armas, Don Pánfilo Jamón y Melón, casualmente primo e credor de Don Ordóñez.
A data da Inauguração foi definida e criaram-se as numerosas lutas que o corajoso Exército local manteve contra diversas nações opressoras que, invejosas da felicidade que ali reinava, atentaram contra a liberdade carambense, sendo escorraçadas pelos seus filhos, dispostos a morrer pela boa causa. De qualquer modo, considerava-se pacificamente que, se tivesse sido necessário, elas teriam ocorrido bem assim.
A data da Inauguração foi escolhida pelo El Presidente de então, casualmente coincidindo com a do seu aniversário.
Meu avô descreveu o desfile militar referente à data. Como adido de um grande país vizinho, ele foi convidado a assistir à solenidade de uma das sacadas do Palácio.
Este era uma bela estrutura colonial muito mal conservada, de paredes grossíssimas, com marcas de tiros em todas as fachadas. Dizem que há uma profusão de túneis secretos para sair de lá, pois muitos governos tomam essa providência logo que se instalam.
Uma banda militar começou a tocar La Charanga, o hino nacional carambense, com melodia de Loco Sepúlveda, grande compositor de guarañas paraguaias e letra de Adelita Sefuera Conotro, sua namorada e dona de uma casa noturna onde os grandes da nação iam se refrescar depois das árduas tarefas de governo.
Os uniformes eram todos históricos, muito bonitos.
Umas unidades militares usavam túnicas azuis com talabartes e calças brancas, outras túnicas curtas vermelhas, calças pretas e grandes boinas desabadas para um lado. Havia couraceiros com aquela rebrilhante armadura para o tórax e grandes espadas.
Desfilou em garboso passo uma estranha unidade de infantaria com chapelões de palha e objetos redondos pendurados de cintos cruzados sobre o peito.
Quando meu avô perguntou de que se tratava, explicaram que eram os Granadeiros. Como fazia muito tempo que não existiam granadas no Exército por falta de dinheiro, elas eram substituídas por romãs (“granada”, em Espanhol), que eram comidas depois do desfile.
Alguns soldados usavam chapéus altos com penas de rabo de condor, moda essa que era a responsável pela severa diminuição dessas aves no país. Outros portavam garbosamente chapéus com o mesmo formato dos da guarda do Palácio de Buckingham, mas de pele de jacaré.
A unidade de Guerra na Selva usava uniformes recobertos com brilhantes penas verdes de papagaios, o que não parecia uma grande idéia como camuflagem. Mas que era vistoso, lá isso era.
Quando foi anunciado o desfile da Cavalaria, meu avô prestou especial atenção à Arma a que pertencia. O que viu foi um grupo de soldados usando uniformes com calça preta, dólmã branco com alamares dourados e quépis pretos, montados sobre mulas, com os pés arrastando pelo chão, o que decididamente não contribuía para o garbo da unidade.
Havia uma boa razão para isso: os caminhos do país eram tão apertados pela estrutura de selva e montanhas que o uso de cavalos era quase impossível. Por isso, eles se viam restritos a ter Mularia em vez de Cavalaria.
Em certo momento, nosso tenente foi para a traseira do Palácio, à procura de um banheiro. Ao olhar distraidamente para o pátio, viu uma azáfama de homens, mulas, armas e uniformes.
Entendeu então a razão de aquele exército estar desfilando há tanto tempo: as unidades faziam a volta ao Palácio e trocavam de uniforme nas traseiras para se apresentarem como outras, diferentes.
E o pior é que ele não podia nem achar graça…
Bem, esse país era assim mesmo, que fazer?
Agora, quanto aos misteriosos objetos que eu vi com meu avô e que o levaram a me contar essas coisas todas: ele tinha um criado índio, Inodoro, que dizia pertencer ao núcleo Guarani mais puro que havia restado depois da devastação do homem branco.
Meu avô, como era seu costume, sempre tratou muito bem o criado. Um dia entrou na cozinha da casa que ele alugava e encontrou Inodoro conversando com outro indígena, muito velho.
O criado ficou todo atrapalhado, temeroso de que o patrão se desagradasse dessa liberdade. Explicou que aquele era o seu pai, Pepito Lichiguano, um homem sábio da tribo. Ele tinha ido à capital visitar o filho que tivera tamanho sucesso na vida que agora era criado de um estrangeiro.
Meu avô simpatizou com o porte digno do velho índio e colocou a casa à sua disposição. Instalou-o no quarto de hóspedes e tiveram muitas conversas durante os dias que durou aquela visita.
Ao partir, o velho índio foi se despedir do meu avô. Entregou-lhe um presente: os três cubinhos cor de marfim que eu tinha visto, e que ele dizia que eram ovos de galinha.
Naturalmente que ele percebeu a dúvida nos olhos do amável oficial estrangeiro e deu uma explicação.
Contou dum vale perdido, escondido pela neblina no mais profundo dos Andes. Era um lugar onde o sol jamais havia batido, com o ar sempre cinzento, onde os ruídos se transformavam em sombras de si mesmos, abafados pela névoa e pelas pedras ao redor.
Nesse lugar, e só ali, havia galinhas que tinham ficado diferentes com o passar do tempo. Talvez por influência visual das pedras de arestas pontiagudas do local, foram perdendo as formas arredondadas e ficaram parecidas com um quadro de propaganda de frangos feito por Picasso na fase cubista.
Naturalmente, os ovos que elas botavam eram cúbicos – “quadrados”, na linguagem do dia-a-dia. Devido a esse formato, os pintinhos também saíam com essa forma.
Aqueles exemplares eram bem velhos e tinham sido passados por um antigo cacique da tribo de Pepito a este, com a recomendação de serem dados, mais adiante, a uma pessoa de fora da família que tivesse bom coração. Finalmente, o velho tinha encontrado alguém assim e estava alegre de poder cumprir a promessa feita há tantos anos.
Mesmo achando difícil de acreditar naquilo, meu avô, sempre um gentleman, aceitou o presente e se mostrou muito agradecido.
Até agora tinha em seu poder o presente do índio e até agora cuidava dele com toda a atenção.
Perguntei se ele não tinha pensado em quebrar um dos “ovos” para ver se era verdade.
– E daí? Se forem ovos mesmo, continuarei tendo os ovos mais raros fora do tal vale, mas com um a menos; se não forem de verdade, vou ficar com cara de palhaço.
Vou-lhe contar uma coisa: existe, no mundo dos colecionadores de vinhos raros, uma garrafa de vinho francês muito antiga. Agora não me lembro que vinho é nem a sua idade, mas sei que tem mais de um século. Ela vem sendo comprada e vendida por milionários há muitos anos. Ninguém se atreve a abri-lo, pois simplesmente não se sabe se o conteúdo tem um sabor único no universo ou se está reduzido a vinagre podre. Eu estou mais ou menos na situação desses colecionadores: se eu for tirar a prova, posso perder algo de muito valor”.
Mas os tais ovos tiveram certos desdobramentos. Na viagem de volta ao Brasil, depois do fim da Segunda Guerra Mundial, quando a família da amada do meu avô já tinha providenciado o casamento dela com o tal filho de um rico industrial, o jovem tenente travou conhecimento com um americano de nome Carl Barks, que estava tirando férias em países exóticos, à procura de inspiração para seu trabalho.
Esse senhor era desenhista da Disney e foi o criador do nosso conhecido Tio Patinhas. Foi o responsável pelas melhores histórias com os Patos feitas até hoje. Meu avô, entre tantas conversas, lhe falou sobre os tais ovos e os mostrou a ele.
Pois o desenhista se inspirou nos estranhos objetos (que tentou comprar sem sucesso) para fazer o que muitos consideram a sua maior obra, desenhada em outubro de 1948, “Lost in the Andes”. Nela, o Pato Donald e seus três sobrinhos encontram o tal vale perdido, habitado por galinhas e gente quadrada e lá se veem em apertos.
Isso é apenas parte da história mais estranha que o meu avô já me contou. Há muito mais, e se quiserem eu repasso. Ainda não sei quanto disso é verdade, pois há aspectos difíceis de se acreditar nela.
Seja como for, saí contente porque ele me disse que só não os dava para mim porque a regra era que eles fossem passados a alguém de fora da família.