Encanador
X-8 está numa situação de pesadelo. Encontra-se sobre a sua escrivaninha, cujo tampo flutua pouco acima da superfície da água. Olha ao redor e vê que o nível do líquido sobe rapidamente e já está a meia altura da parede.
Ao redor, flutuam objetos desencontrados: folhas de papel, copos descartáveis, o chapéu reserva, aquele da peninha verde, cadeiras, o banco que havia comprado de uma churrascaria que ia fechar, livros…
Livros! Diversos dicionários de Etimologia, um Thesaurus, um raro dicionário de etimololgia francesa que ele havia ganho, dicionários de nomes próprios, de sobrenomes, guias de Heráldica…
Ele se estendeu, fazendo com que a escrivaninha quase adernasse, e pegou todos os livros que pôde. Colocou-os a seu lado. Estavam irremediavelmente encharcados.
Preocupava-se mais com eles do que com a sua precária situação, horripilado, quando a porta do escritório se rompeu. Ele agradeceu aos céus porque agora a água ia se escoar e o mais agudo do perigo cessaria.
Mas não; a água estava no mesmo nível ao longo do corredor mal-iluminado, por onde a grande mesa foi deslizando. A correnteza foi ficando forte. O pobre detetive logo percebeu por que: a massa d’água descia pelas escadas, levando consigo o lixo depositado nos degraus e corredores.
Aos berros, agarrado com todas as forças à beirada do tampo, ele desceu por aquela rampa aquática até o térreo. O corredor ali estava cheio d’água até uns dois palmos abaixo da soleira da porta. X-8 se achatou contra o tampo da mesa, passando à justa pela porta antiga e alta; deslizou para a rua, onde com certeza…
Mas não! A rua também estava inundada, com pelo menos dois metros de água suja.
O náufrago olhou ao redor, para pedir ajuda, e viu um quadro macabro: entre garrafas PET e lixo do mais variado, o que incluía diversos hambúrgueres, boiava o corpo do gordo Garcia, o dono do bar ali em frente.
Sua barriga sobressaía como uma ilha formada por um morro. O detetive teve a surrealista idéia de que fazia falta uma palmeira plantada bem no umbigo do defunto.
Num surto de desespero, contraiu-se para bradar o nome do seu conhecido. A escrivaninha, notoriamente instável na água, se inclinou mais e mais, em câmera lenta (ele pensou: “Bem que aquela minha amiga tinha dito para eu aprender a nadar!”), e ele caiu…
…no chão duro do seu quarto. Ergueu-se, espavorido, sacudindo todos os braços e pernas de que dispunha, quando percebeu que estava no seco. Estava no seu quarto, com seu pijama amarelo com desenhos de caras de gatinhos em vermelho e azul.
A luz dos cartazes da rua iluminava o aposento. Ele se sentou na beira da cama:
– Arre, que sonho pavoroso!
Não pôde se conter; correu até a sala de atendimento e precisou tocar em seus queridos livros, todos tão secos e inteiros como sempre. O alívio o percorreu como se fosse mousse de chocolate geladinha deslizando garganta abaixo.
Ele sabia a causa do sonho ruim: era a infiltração que ele tinha percebido no dia anterior, vindo do apartamento desocupado do andar de cima.
– Pode ser um sonho profético. Quem tem livros não pode se descuidar – pensou ele.
Voltou para a cama, depois de verificar que apenas desciam alguns filetes de água lentamente por uma das paredes e de olhar para fora e ver que o seu bairro continuava tão seco e imundo como sempre. E que o Bar do Garcia estava firme do outro lado da rua.
Depois de um sono agitado, acordou cedo e foi falar com Arkady Polikarpov, que era o proprietário do Edifício Éden e de grande número de prédios em todo o bairro, para pedir consertos de urgência.
Após percorrer algumas quadras entre terrenos baldios, moradas em mau estado e pequenos prédios sujos, entrou na casa meio desmantelada que era conhecida como “A Imobiliária” por todos, embora não houvesse ali placa nenhuma e não existisse firma constituída.
Falou com a morena gordinha que estava fazendo as unhas, ao lado da loira gordinha oxigenada muito concentrada, que fazia penosamente palavras cruzadas nível “ultra-fácil”, como apregoava a capa da revistinha.
Distraidamente, pensou em investigar a estranha ligação entre pessoas que fazem palavras cruzadas com esse nível de dificuldade e as canetas Bic.
Dali a dez minutos a moça que o atendia, que não ergueu um só momento os olhos da tarefa de ajeitar as unhas longas, terminou de entender de que se tratava. Apenas resmungou:
– Reclamações fundo do corredor a direita – com uma completa falta de entonação, de pausas e de sinal de crase.
X-8 foi para o fundo do corredor, à direita. Entrou numa pequena sala de espera, onde já estavam mais dois inquilinos que precisavam de algo de parte do proprietário.
Essa salinha era separada de uma outra, ao fundo, por uma porta guardada por dois sujeitos enormes, cujas barrigas em si constituíam armas de grosso calibre.
Usavam o cabelo cortado rente, usavam trajes muito pretos, camisas pouco brancas, óculos escuros e uma inequívoca atitude de desagrado. Tinham as mãos cruzadas à frente das barrigas. Sua imobilidade parecia mais ameaçadora do que uma carga de cavalaria chefiada por Átila, o Huno.
Dali a alguns minutos, quando a porta se abriu, X-8 notou que ela era acolchoada por dentro.
Por ela saiu um outro cliente, em passo trôpego, uma mão na altura dos rins, o rosto acinzentado como um cadáver prestes a ser inumado, gemendo baixinho. Suas roupas estavam em farrapos, seu rosto apresentava marcas roxas.
Surgiram de dentro da sala os dois irmãos gêmeos dos vigias da porta, vestidos do mesmíssimo jeito, dirigiram-se a um dos inquilinos que já estavam esperando, seguraram-no pelos braços e o levantaram como se ele fosse recheado de penas. Cruzaram a porta e ela se fechou com um ruído fofo atrás deles.
Subitamente, X-8 se lembrou de que precisava muito passar no seu dentista para ver se não era necessário tratar com urgência algum canal sem anestesia.
Saiu da “Imobiliária” com pressa suficiente para evitar ser chamado, mas com lentidão bastante para manter a dignidade.
Caminhou pelas ruas, cabisbaixo, resmungando, percebendo que o melhor a fazer era contratar ele mesmo um profissional. Melhor gastar com isso do que com hospital! Mas que não era justo, não era.
Estava assim quando viu passar a bicicleta do “Boletim do Bairro”, o jornaleco que aparecia de vez em quando, com anúncios e artigos laudatórios para quem quer que pagasse. Montava-a o distribuidor de propagandas de porta em porta do jornal.
Que, aliás, era também o repórter, redator, proprietário, diretor e encarregado de marketing do jornal.
Era um sujeito miúdo, de movimentos vivazes, olhos brilhantes, boné xadrez na cabeça, nariz arrebitado.
Seu nome era Olifante Pacheco, mais conhecido como “O Elefante do Boletim”. Ao ver o detetive, que já lhe havia pago por uma reportagem, dirigiu-se a ele e ofereceu um dos folhetos de propaganda.
O detetive agrdeceu e perguntou se havia ali algum anúncio de encanador.
– Encanador? – disse o bravo jornalista, pegando de volta rapidamente o folheto – eu mesmo sou um ótimo encanador, disse ele.
– Mas você não é jornalista, essas coisas?
– Sou dublê de jornalista e factotum. Entrego broas caseiras que eu mesmo faço, revendo materiais, qualquer coisa que eu tenha aprendido e mesmo algumas outras. Qual o seu problema?
X-8 contou. Olifante ficou de passar em casa para pegar as ferramentas e ir ao escritório detetivesco imediatamente.
Dali a meia hora, X-8 mostrava o problema a Olifante. Este olhou, bateu aqui e ali, furungou e descobriu que se tratava de um cano rachado logo acima do gesso do teto. Desceu até o térreo, desligou o registro geral sem avisar ninguém e voltou. Quebrou um pedaço do gesso e tratou de substituir o pedaço de cano. Não era uma situação difícil, e X-8 se sentiu aliviado.
Enquanto isso, o encanador ia conversando com o detetive:
– Diga-me uma coisa, o senhor que já leu até livros: eu sempre quis saber o que quer dizer o meu nome, Olifante. Meu pai insistiu em me chamar assim por causa de uma palavra que ele leu em algum lugar e gostou. Depois ele se esqueceu não só do que era como onde tinha lido, só se lembrava que era interessante.
O detetive respondeu:
– Olifante é uma trombeta originalmente feita de presa de elefante, usada na Idade Média. A palavra vem do Francês éléphant, do Latim elephantus, “elefante”. Em Grego, elephas queria dizer “marfim” e acabou nomeando o produtor do belo material.
– Se quer dizer “trombeta”, meu velho até acertou, já que gosto de fazer propaganda mesmo, de trombetear. As circunstâncias da macroeconomia mundial, aliadas ao fraco desempenho do dólar face à produção do Extremo Oriente, em parceria com o capitalismo selvagem e a ameaça terrorista que eleva o preço do barril de petróleo é que me obrigam a fazer estes bicos, por enquanto. Mas ainda hei de ter um grande jornal e vender muitos anúncios!
O detetive, sempre alerta para certas oportunidades, disse, como quem não quer nada:
– Pois é quem diria que essa sua atividade de agora se liga ao açúcar…
– Opa, como é isso? – disse Olifante, retirando um pedaço da cano metálico meio podre e recebendo no rosto um pequeno jato dágua.
– Ora, você está lidando com canos; essa palavra veio do Latim canna, “junco, cana”, do Grego kanna, “junco, paliçada de canas”. Mais distante ainda no tempo, temos o Assírio qanu, “junco, cana, cano”.
A noção é da semelhança de forma entre o talo dessas plantas e um cano. Como da cana se fazia açúcar, um encanador tem essa relação com tal substância, etimologicamente.
Olifante ficou fascinado. O brilho do seu olhar demonstrou ao detetive que ele estava no papo. X-8 continuou:
– Em Inglês, por exemplo, cano se diz pipe. Essa palavra vem do Latim pipare, “gorjear, trinar como um passarinho”, uma palavra onomatopaica.
– Ué, e qual a relação?
– É que apitos, assobios e pequenas flautas eram feitos com canas, com caniços. Como se vê, esses canos todos começaram entre os juncos que cresciam à beira de algum rio do Oriente.
– Puxa! Falando nisso, e joelho, como este aqui, que é um pedaço de cano que faz ângulo?
– A comparação é evidente, pelo formato. A palavra vem do Latim geniculum, diminutivo de genu, “articulação em geral, joelho”.
– Bárbaro! E torneira, de onde vem?
– Essa vem de “torno”. E este vem do Latim tornus, “máquina que faz movimentos circulares”, de tornus, como se chamava um aparelho desses em Roma, do verbo tornare, “fazer girar um torno”. Em Grego era tornos o nome de tal aparelho, derivado do Indo-Europeu ter-, “esfregar, torcer, virar”.
– Veja só, eu lidando com uma palavra que tem tudo isso de antiguidade nas costas e sem nem perceber! Mas olha, seu X-8, está prontinho o serviço.
O senhor tem aí uma emenda feita no capricho para uma das mais distintas personalidades do bairro, senão a mais distinta, e se não dizemos de vez a mais de todas, é porque, nesta plêiade de pessoas que compõem nossa comunidade não seria de prudência cometer alguma injustiça ou esquecimento, de vez que muitos são mal-humorados, usam porretes e…
– Certo, certo, agradeço muito, mas quanto custou o trabalho?
– Olha, seu X-8, até fico sem jeito de cobrar da sua pessoa, mas sabe como é, o uísque das crianças e tal… Ademais, a gente que é um profissional e se preparou muito não pode deixar de cobrar, senão pega mal com os colegas, né? – e deu o valor do conserto, acrescentando que no momento não podia dar recibo porque tinha havido um problema com a gráfica e isso iria demorar um pouco, etc. e tal.
– Muito bem – X-8 foi à sua escrivaninha, fez umas contas e preencheu um pedaço de papel, que entregou para Olifante.
– C-como assim? O senhor é que está me cobrando? – disse o pobre faz-tudo.
– Sim. Você mesmo disse que um profissional não deve deixar de cobrar. Estou cobrando um preço bem em conta pelas etimologias que você me pediu para ensinar, já feito o desconto do que eu lhe devo.
– Eu pedi?
– Você não se lembra das perguntas que me fez há pouco? Pois eu as respondi de acordo com os princípios de ética que jurei ao me formar na Faculdade de Etimologia. Se eu deixar de cobrar, vou ter problemas com o meu Sindicato, e adivinhe só quem é que eu vou processar depois?
Dali a longos minutos de negociação, Olifante saiu do Ed. Éden sem um tostão no bolso, mas satisfeito porque o famoso detetive havia perdoado a dívida em troca de perdão da cobrança do trabalho de encanador. E Olifante ainda iria ficar com três por cento dos honorários pagos por cada palavra que ele encaminhasse para saber as suas origens com X-8.
– Dia de sorte. A gente tem que saber aproveitar as oportunidades! – pensaram ao mesmo tempo, Olifante e X-8.