Palavra horror

Horrível Criatura

X-8, o detetive particular que trata apenas de casos de palavras, está em seu escritório, na pior parte da cidade. O bairro é tão ruim que nem figura nos mapas.

Ele é um grande marqueteiro pessoal. Sabe que, além de competência, o público exige um algo mais de um produto. Por isso, ele começa a atender só à noite. Assim ele aproveita a luz do cartaz luminoso que fica logo por fora da sua janela.

Desta forma ele economiza na conta da energia elétrica e faz do seu escritório amplo e cuidadosamente desarrumado uma imagem perfeita de Roman Noir, com aquelas sombras se projetando fortes na parede e um falcão maltês de louça sobre a geladeira velha, barulhenta e descascada a um canto.

O grande investigador está sentado, preparado para tudo. Usa, como sempre, sua gabardine cor de palha e o chapéu de feltro marrom enfiado na cabeça. Mal aparecem a ponta do nariz e o brilho inquisitivo dos seus olhos.

Isso não impede de um bom número de suas clientes se sentirem apaixonadas por ele. Mas ele sabe que não pode se dar a esse luxo. A ética e a decência não permitem que ele se envolva com clientes. Além disso, que tipo de vida ele poderia oferecer a uma pacata companheira? Correrias constantes em pesquisas, andar por aquela zona terrível todas as noites… E ainda por cima elas iam querer ter filhos e um cachorrinho “poodle” branco. Essa não. Além do mais, deixar de desfrutar de toda essa liberdade que ele tem…

Está divagando assim quando a porta rangente do escritório se abre e entram silenciosa e furtivamente duas figuras. Ele levanta os olhos e, apesar dos seus anos de experiência, se espanta: Horrível Criatura! Ou melhor, as palavras Horrível e Criatura.

– Detetive X-8? Fomos encaminhadas por uma outra cliente sua…

X-8 lhes indica duas cadeiras. As palavras se sentam nervosas, olhando fascinadas para o ambiente estranho ao seu redor. Quem fala mais é Horrível.  Criatura quase só se limita a assentir com a cabeça.

Contam a história triste que forma a maioria dos casos de um detetive desta especialidade: desconhecem a sua origem e agora criaram coragem para tentar saber mais, mesmo que as notícias sejam péssimas.

X-8 já notou que palavras em geral têm problemas de auto-estima: freqüentemente fantasiam que têm origem desconhecida, temem ser bastardas, apenas invenções recentes e que não durarão muito, como as gírias passageiras que não conseguem se fixar num idioma.

O único que as acalma – e que muitas vezes as torna até meio arrogantes – é descobrir uma origem atestadamente antiga. Com isso elas se sentem melhor: se elas vêm de uma linhagem de séculos ou até milênios, certamente vão durar bastante mais, vão ser bastante requeridas. E é disso que elas ganham o seu sustento. Senão…

Dias antes, ele tinha visto a palavra supimpa pedindo esmola na rua. Figura deprimente, uma palavra que antes tinha estado nas bocas e páginas de toda uma época, agora esquálida, acinzentada, já perdendo os contornos, sinal de que pouco falta para ficar irreconhecível e desaparecer do idioma… Apesar da sua propalada dureza, o detetive guardava atrás da gabardine um coração sensível. Olhou triste para palavra e cruzou a rua olhando com súbito interesse para o céu escuro, evitando assim ter que lhe dar uma esmola.

Falando em dinheiro, ele olha a vestimenta das clientes à sua frente. Percebe que são palavras que têm bastante serviço. Poderão pagar bem.

Felizmente; com a sua bondade, ele sofria muito quando uma cliente não tinha condições de lhe pagar os honorários e ele percebia que aquela entrevista não ia render nada.

Naqueles casos, ele encaminhava as coitadas à Assistência Etimológica Municipal, onde o trabalho era muito mal feito. Lá eles tinham uma dúzia de folhetos com algumas etimologias ao acaso, e geralmente tentavam empurrar um deles para a palavra, insistindo em que elas eram relacionadas. Havia rumores até de suicídio de palavras devido a isso.

Mas ele não podia fazer nada. Tinha que ganhar a sua vida, e o preço do caviar estava pelas alturas.

Horrível e Criatura terminam suas queixas. Após umas frases lacônicas dele, elas lhe dão um adiantamento para cobrir o táxi que ele vai usar, as entradas para as bibliotecas (as palavras se entreolham, estranhando), as refeições em lugares sórdidos que elas nem imaginam que existem (“Romântico!” – pensa uma delas), o xerox, papel, caneta e outros materiais necessários para um serviço sujo e perigoso daqueles.

Ele é o primeiro a reconhecer que cobra caro (e ainda por cima, como se diz em Português bem claro, “em cash”). Em compensação, garante às clientes que, se ele for apanhado, morrerá antes de contar quem foi que o contratou.

Elas se entreolham de novo: não sabiam que estavam lidando com uma atividade de tamanhos riscos! Assanhadas com a atmosfera de filme antigo, com o perigo e com a calma frieza do profissional, elas topam o preço absurdo sem pestanejar. Estão simplesmente encantadas.

Percebendo isso, ele acrescenta que a tarefa é especialmente espinhosa neste momento: setenta por cento dos livros estão em greve (segundo o Sindicato deles; segundo o Governo, são apenas quinze por cento). Elas não sabem nada disso porque o assunto está abafado, para não causar pânico à população.

Mas ele conhece alguns livros que talvez possam ser subornados e convencidos a furar a greve. Aliás, se ele conseguir, a taxa de suborno ele cobra depois.

Serão necessárias várias semanas para dar a resposta, se é que ele vai conseguir. Se não for possível, ele não vai cobrar os honorários. Apenas vai ficar com o dinheiro das despesas, naturalmente.

– Eu ligo para vocês. Aguardem, mas fica claro mais uma vez: Não prometo nada.

A dupla sai, fascinada com a aventura que acaba de viver. Por vários dias, andarão de óculos escuros, olhando para trás, para ver se não estão sendo seguidas. Não dirão nada sério ao telefone, por medo de estarem grampeadas.

Após ver pela janela que as palavras se afastaram do prédio, X-8 apanha alguns livros na estante. Desta vez ele se superou com essa da greve dos livros! Bárbara!

Faz umas anotações abreviadas com uma caneta Parker 51, que ninguém suspeitaria que ele tivesse.

Sobre a sua escrivaninha há umas canetas Bic com carga pela metade, sem tampa, que ele usa na frente da clientela. Sabe que se espera dele uma cor local completa. Se ocorre de ele ter que usar um desses objetos para escrever algo, ele lava as mãos assim que pode, resmungando: -“Baixaria”.

O corajoso investigador puxa a sua máquina de escrever, manual e barulhenta, coloca um papel de jornal e começa a batucar:

HORRÍVEL –

Vem do Latim horrere, que quer dizer “ficar de cabelo em pé, arrepiar”. Como o medo é uma causa tão freqüente deste fenômeno, horrere acabou significando “assustar, encher de medo, fazer tremer”. Daí veio horror, claro.

Existe um grande número de palavras derivadas que têm o sentido de “aquilo que causa horror”: horrendo, horribilidade, horridez, hórrido, horrífero, horrífico, horrível, horrorífico, horrorizante, horroroso. Parece que há tanta causa de horror no mundo que tiveram que inventar várias palavras para dar conta da situação.

Mas todos se devem lembrar que horripilar, que vem do Latim horror mais pillum, “pelo, cabelo”, significa “ficar de cabelo em pé”, mesmo que a causa não seja o medo.

O Inglês usou por algum tempo a palavra horrid significando “cabeludo, hirsuto, arrepiado”, mas já a abandonou.

Aplicando esta palavra existe uma frase muito sonora: Horresco referens, “Arrepio-me só de contar”. Faz parte do Livro II da Eneida, onde Enéas descreve
as serpentes que saíram do mar para matar Laocoonte, o adivinho que se opunha à entrada do Cavalo de Tróia na cidade. É uma frase de muito efeito em meios cultos ao se descrever alguma coisa desagradável.

CRIATURA –

Do Latim creare, “produzir, criar”. E esta deve ter vindo de crescere, “crescer”.

Do particípio passado desse verbo, creatus, foram feitas as palavras criador, criatura, criado (esta última no sentido de “serviçal”).

Em Espanhol, criado tinha o sentido de “afilhado”. Seu diminutivo, criollo, começou a ser usado nas Índias Ocidentais para os filhos dos senhores brancos com negras ou nativas. Logo, a palavra crioulo designa um mestiço, e não uma pessoa de raça negra, como muitos pensam.

Já que falamos em crescere, é bom lembrar que crescente vem daí, como qualquer um vê. O que talvez nem todos saibam é que o croissant, o pãozinho tão apreciado, tem a mesma origem. Esta palavra é francesa e faz alusão, diz a História, à criação deste pão na forma do crescente, símbolo muçulmano, para comemorar a derrota dos turcos que cercavam Budapest em 1686.

Acréscimo e incremento são outros derivados.

X-8 guardou o papel numa gaveta, de onde só seria tirado dali a mais ou menos um mês, para ser entregue às clientes.

Semanas depois, após as palavras saírem, assanhadas, com o papel na mão, X-8 ficou olhando para a rua mal iluminada, pensando que valia a pena passar por todo aquele trabalhão para ver uma palavra se sentir feliz.

Puxou o maço de notas do bolso e o conferiu mais uma vez. O que seria do mundo das palavras sem ele?

Resposta:

Origem Da Palavra