Hospital
O homem baixo, atarracado, usando uma gabardine com a gola levantada e um chapéu caído para a frente, entra num edifício velho. Este se situa na parte mais decaída da cidade, onde os próprios bandidos têm medo de entrar.
O homem é muito suspeito, tanto pela roupa como pelos olhares disfarçados que lança em volta de si.
Sobe pelo elevador velho e sacolejante, anda pelo corredor sujo do terceiro andar. Olha ao redor antes de pegar um chaveiro de pé de coelho e abrir uma porta. Nela está pregada uma placa de latão reluzente onde se lê apenas um intrigante “X-8”.
Entra num escritório com aspecto pobre, sujo e desalinhado. Escrivaninha, algumas cadeiras, uma horrorosa pia num canto, uma geladeira velha, tapetes puídos, arquivos metálicos… O único que destoa é a enorme estante cheia de livros em impecável estado e excelente ordem.
Ali dentro tudo é em preto e branco e iluminado de lado, conforme compete a toda história policial antiga. A fonte de luz é o cartaz luminoso do lado de fora da janela, que permite uma grande economia de energia elétrica.
O homem se olha ao espelho e confere a sua imagem: a gabardine e o chapéu mal deixam entrever a ponta do nariz grande. Satisfeito com o que viu, pensando vagamente em fazer uma plástica nasal, ele se senta à sua mesa.
Sabe que logo começarão a chegar os clientes. Sabe que eles se escondem nos becos entre as baratas, à espera de ver aquela figura incomum entrar no edifício.
Batem ?à porta.
– Está destrancada. Entre! – Grita ele, colocando apressadamente os pés sobre a mesa e tratando de mostrar um ar de menosprezo pelo mundo inteiro e particularmente por qualquer um que entre ali.
A maçaneta gira, a porta se sacode: obviamente não estava destrancada. Com um resmungo, ele se levanta e a abre, voltando logo para trás da sua escrivaninha antiga. A imagem de desprezo se foi pelos ares.
Quem entrou foi a palavra “Hospital”. Sentou-se na cadeira que lhe foi apontada com um gesto de cabeça e começou logo a falar:
– “Seu X-8, seu nome me foi sussurrado por uma palavra amiga que me disse que só o senhor poderia fazer um serviço que preciso. É o seguinte: não aguento mais! Tenho pensado nas minhas origens e estou quase enlouquecendo. Não consigo mais dormir direito. Andei ouvindo dizer que tenho muitos parentes aqui pela cidade, mas não sei quais são eles. Se eles existirem, por favor, coloque-me em contato com eles! Esta minha solidão me mata! Quero a sensação de pertencer, de…”
– “Saco, pensa X-8. Cada uma delas acha que só ela sente isso. Já ouvi esta conversa centenas de vezes”. E corta, em tom brusco:
– “Muito bem, Hospital. Vou ver o que posso fazer pelo seu caso. Mas vou ser claro ao dizer que não posso prometer nada. Para chegar a alguma conclusão, preciso percorrer muitos registros de origem, fazer extensas e custosas pesquisas, cuidar para que não me vendam falsificações, correr perigos de que ninguém desconfia. Meus honorários são elevados, e ainda cobro transporte e comida. Se está bem para você assim…”
A palavra, de olhos úmidos, assente com a cabeça. Pode-se ver que ela faria tudo para ver resolvida aquela dúvida atroz. X-8 continua:
– “Dê-me seu telefone. Não me chame, eu chamo você. É impossível dizer quanto tempo vou levar. Se tudo correr bem, se eu me livrar das emboscadas e dos pratos de restaurantes baratos, em menos de um mês talvez eu tenha alguma coisa para você. Vou aceitar agora as diárias” – e estende a mão.
Feito o pagamento (dinheiro vivo), a palavra sai, enxugando os olhos, esperançosa, e se perde pelas ruas.
Assim que ela sai, X-8 vai até uma estante, puxa dois ou três livros e os olha rapidamente. Ele já sabia as respostas, mas como bom etimologista que é, faz uma confirmação – não vá ele se esquecer de algum pormenor.
Após dez minutos de leitura, ele se senta e começa a redigir numa máaquina de escrever antiga. Poderia fazer isso no excelente computador que ele tem escondido no banheiro, mas sabe que quem o consulta espera um papel mal batido, em tipos cheios de falhas. Finda a tarefa, retira a folha e a revisa:
HOSPITAL –
Vem de hospes, Latim, que tanto significava “hóspede” como “hospedeiro“. No Latim medieval, hospitale queria dizer “de um hóspede, relativo a ele”, e gerou o Francês hospital (hoje hôpital). Inicialmente, este era apenas um local onde os hóspedes eram recebidos.
Em torno do Século XV, no entanto, o seu sentido começou a mudar, sendo esse nome aplicado a um lugar onde eram recolhidos os velhos, doentes e pobres.
O sentido que agora é usado, de “lugar onde são tratadas pessoas doentes”, se firmou apenas no Século XVI.
A noção inicial de “receber hóspedes” se manteve em palavras correlatas, como “hospitalidade“, “hospitaleiro“.
A palavra “hospício” também tem a mesma origem; vem do Latim hospitium.
“Hotel” também veio daí. No Francês antigo, usava-se hospital, como já dito. Mas uma forma mais curta, hostel, se desenvolveu. Inicialmente ela era usada com o sentido de “residência grande” e depois com o de “lugar que aluga dependências”, tal como ainda se usa.
Os americanos, muito práticos, juntaram as palavras “motor” e “hotel” e cunharam, em 1925, o “motel“; este é um hotel onde os hóspedes podem estacionar seus veículos na frente dos quartos.
Um mês e pouco depois, toca o telefone da palavra Hospital. Soa uma voz seca do outro lado:
– “X-8. Amanhã. Vinte horas. Venha sozinha e sem armas”.
No dia seguinte, à hora combinada, a palavra, trêmula, termina de ler o papel que X-8 lhe alcançou sem dizer nada. Lágrimas de emoção correm pelo rosto dela, que trata de agradecer ao impávido detetive.
Ele, frio como gelo, apenas aponta para uma tabela de escorchantes honorários que pende da parede. Hospital paga e sai, prometendo lhe enviar mais clientes e fazendo planos para se apresentar aos parentes.
X-8 fica sozinho, sentado à escrivaninha. Pés para cima, olhar perdido. A luz que entra forma contrastes fortes: o que está iluminado fica muito claro, as sombras são escuras e insondáveis.
X-8 tem a sensação ligeiramente vazia de mais um caso resolvido, de mais um cliente satisfeito. Este é o momento de acender um cigarro, de ver a fumaça subir em volutas preguiçosas para o teto, de relaxar…
Pega o maço de cigarros, bate-o contra um dedo, tira um e o coloca nos lábios. Ele detesta cigarros. Nunca conseguiu aprender a fumar, mas uma longa tradição de hist[orias de detetives tem que ser honrada. Fica ali, pensativo, com o cigarro sem acender nos lábios.
Amanhã ele vai telefonar para uma outra palavra que o tinha consultado, desesperada, um mês antes.