Palavra pigmeu

Pigmeu

É noite no pior bairro da cidade. Se fosse dia, não seria muito diferente. Através dos miasmas e da atmosfera ameaçadora das ruas desertas pode-se ver uma caixa de papelão, que um dia conteve um televisor, emborcada sobre a calçada. Até aí nada de mais, entre tanto lixo. O esquisito é o seu comportamento, pois ela se desloca sozinha pelo chão. Ela avança um pouco, pára, avança mais; às vezes bate num poste ou numa lata de lixo virada, emitindo um resmungo abafado. Arrastando-se desse jeito, ela chega até um edifício velho. A caixa misteriosa entra pela porta e se esgueira para dentro do corredor escuro. Vai até o fundo dele. Se alguém estivesse olhando, veria que ela se levanta um pouco e que dali sai um pequeno vulto. Este sobe rapidamente as escadas, tratando de não tropeçar nos jornais velhos, garrafas plásticas vazias e cascas de banana que por ali se amontoam. Alguns andares acima, X-8, o Detetive Etimológico, está destemidamente sentado à sua enorme escrivaninha. Como sempre, está com uma gabardine (onde se viu detetive de verdade sem gabardine?) e chapéu. No escritório meio escuro não se pode enxergar o seu rosto. Hoje ele está muito contente, orgulhoso até: revisando os seus registros percebeu que, em seus anos de trabalho etimológico, nunca perdeu um caso.Até agora, todas as palavras que o haviam consultado tinham saído satisfeitas, o mesmo acontecendo com a conta corrente dele. Só ele sabe a coragem que é necessária para enfrentar os livros, fazer cuidadosas pesquisas, conferir várias vezes em dicionários de diferentes idiomas, preparar um documento verídico, fazer toda uma atmosfera para comprazer a clientela… Sim senhor, não é para qualquer um! Em seu devaneio, ele quase cai da cadeira quando a porta se abre subitamente e se fecha com estrondo, permitindo a entrada do que parece, à primeira vista, um rato grande. O recém-chegado olha ao redor e se aproxima de um banquinho desconjuntado. Pega-o com esforço e o coloca sobre a cadeira dos clientes, em frente à escrivaninha. Trepa na cadeira, sobe no banco e se senta de frente para X-8. Só então é que este vê exatamente quem foi que entrou: Pigmeu. – O senhor é o famoso consultor etimológico? – perguntou este, com uma vozinha fina. – Famoso consultor, não. Sou o famoso detetive etimológico, responde X-8, que sempre tinha tido uma queda pela aventura e pela investigação, além de uma autoestima estratosférica. Só não estava agora num alto cargo da Polícia porque havia sido recusado por ter pés chatos. Ou por ser um chato, isso não havia ficado bem claro na época. – Pois umas clientes suas… – Já sei, gostaram dos meus serviços e lhe deram o meu nome e endereço. Isso não é novidade. – disse X-8 friamente. Ele sabia que a clientela adorava ser tratada rudemente por um sujeito enigmático vestindo gabardine. – Sim. Puxa, o que me disseram é verdade. O senhor sabe tudo! Então, deixe-me explicar: sendo Pigmeu, sempre que me citam é num contexto de pouco respeito, de exotismo, de insignificância. Eu gostaria de saber se tenho origens decentes ou se é melhor amarrar um pedaço de tijolo no pescoço e me jogar num balde dágua de uma vez. O que é que o senhor pode fazer por mim? Com a sua longa experiência, X-8 percebeu imediatamente que estava lidando com um caso de risco. Palavras deprimidas facilmente podem fazer besteira. E isso ele não podia deixar acontecer; se a pobre criatura se suicidasse, ia ser um desastre para as suas estatísticas. E talvez ele nem chegasse a ser pago. Mas, quando palavras correm perigo, ele sabe como agir. – Posso fazer muito. Excepcionalmente, dada a sua simpatia, abrirei uma brecha na minha agenda e lhe fornecerei uma resposta rapidamente. Aguarde com fé e tranqüilidade. Parece-me praticamente certo que você terá notícias que a farão sentir-se melhor. Volte aqui em três dias. Tome aqui um folheto dos meus serviços. Na última página está a minha tabela de honorários. Observe bem que o seu caso se enquadra na tabela de Serviços Urgentes, aquela ali em vermelho. Ao ver que a palavra arregalava os olhos enquanto lia os preços, X-8 acrescentou: – Naturalmente, se a senhora quiser contratar um profissional menos qualificado, que é capaz de levar um tempão para lhe passar uma empulhação qualquer sem certificação, ao contrário de mim… – N-não, vá em frente. Eu tenho uma poupança que estava fazendo para o estudo dos meus filhos e… Agradecido por ter encontrado alguém tão previdente e garantidos os seus polpudos lucros, X-8 voltou ao seu jeito durão: – Então volte no dia marcado, sem dizer a ninguém aonde vai. E, por favor, venha sem armas. – baixou mais ainda o chapéu sobre os olhos. Como ficou sem enxergar nada, manteve-se imóvel, para não fazer bobagem. Pigmeu agradeceu e foi embora, sentindo-se um pouco melhor porque alguém tinha achado que ela era capaz de andar armada por aí. X-8 esperou a porta bater, ergueu um pouco o chapéu para confirmar que estava sozinho e foi consultar seus livros. Mexeu, remexeu, fez anotações com uma excelente caneta-tinteiro num belo papel creme. Em particular, ele só usava material muito bom para escrever, mesmo para os rascunhos. Sobre a escrivaninha, no entanto, à vista da clientela, havia maços de folhas de ofício em papel de jornal, canetas Bic sem tampa e lápis pretos com ponta rombuda, meio roídos. Ele tinha o maior nojo daquele material, mas sabia que era aquilo que se esperava de um detetive que trabalhava num lugar assim. Feitas as pesquisas, revisou as anotações, colocou uma folha de papel barato na máquina de escrever antiga e barulhenta e redigiu: Pigmeu – Do Grego pygmaios, “punho”. Pygúsios era a palavra que se usava para designar uma medida de comprimento, definida como a distância entre o cotovelo e a ponta do dedo médio. Esta medida variava conforme a região, mas se situava a partir dos 45 centímetros. Em Português, a medida se chama côvado. No Brasil, valia 68 centímetros, o que faz pensar que que o dono desse antebraço devia ter sido muito grande. Os pigmeus eram conhecidos já no mundo antigo, através de contatos da Grécia com o Egito, que por sua vez se ligava a outras culturas e povos da África. Dizia-se que eles mediam um côvado de altura (um evidente exagero), donde o nome que lhes foi dado. Viajantes gregos descreviam o povo pigmeu e suas lutas constantes contra as cegonhas, que migravam da Europa para a terra deles no inverno. Pygmaios passou para o Latim como pugnus, também com o significado de “punho”. Pugnar em nosso idioma vem de pugnare, “lutar”; significa batalhar ardentemente por aquilo em que se acredita, mesmo sem ter que usar os punhos. Uma palavra derivada desta é propugnar, com o sentido de “espalhar, tentar cooptar com veemência”, quase como na base da porrada. Pugilista é a pessoa que se dedica, por esporte ou profissão, à luta com os punhos. Punhal é uma arma branca que se segura com o punho para atacar. Vem do Francês poignard, de poing, “punho”, derivada do já citado pugnus. Atualmente, na França, a expressão armes de poing designa “armas de fogo curtas”, como revólveres e pistolas. Impugnar vem do Latim in, “contra”, e pugnare. Significa “lutar contra” e é a ação que em Direito se toma quando existe desconformidade com uma sentença ou laudo. X-8 tirou o papel da máquina, com um gesto rápido que fez aquele “rrriiip” que tanto lhe agradava. Olhou o papel: ajeitadinho demais. Deu-lhe umas discretas amassadas, esfregou-o um pouco no chão. Satisfeito, guardou-o num envelope pardo grande. Três noites depois, Pigmeu estava à frente do grande detetive. Desta vez, a palavra tinha-se enfiado numa sacola de supermercado. Nervosa, tinha-se esquecido de fazer buracos para os olhos. Devido a isso, bateu em vários móveis no caminho da escrivaninha. X-8 pensou que o trajeto pelas ruas até chegar ali devia ter sido muito atrapalhado. Mas, enfim, se era para falar com ele, valia a pena. – Depois de me pagar, leia aqui na minha frente, disse o detetive. Pigmeu leu o papel meio amassado à luz do cartaz luminoso, que entrava aos borbotões pela janela. Impossível cena mais clássica: a pequena palavra sentada sobre o banco que X-8 tivera o cuidado de colocar sobre a cadeira, no escritório cuidadosamente mal arrumado e empoeirado, o homem de capa imóvel à sua frente, as sombras nas paredes… Para isto valia a pena trabalhar! Que ambiente! Pigmeu terminou de ler e falou, com alegria: – Veja só, tenho um passado relacionado com lutas! E ainda por cima, minha história é muito antiga, com citações dos gregos clássicos e tudo! Puxa vida, nunca pensei… Pegou a sacola de supermercado para sair e de repente se imobilizou; estufou o peito, embolou a sacola e a jogou sobre a escrivaninha, com gesto brusco e provocador. Relanceou um olhar desafiador para X-8. O detetive se encolheu visivelmente perante aquela atitude. Pigmeu pulou para o chão e se dirigiu à porta sem dizer nada. A palavra saiu, batendo a porta atrás de si, atrevidamente. Afastou-se de cabeça erguida, pisando forte com os pequeninos pés, chutando o lixo que encontrava pelo caminho em vez de se desviar dele. Agora ela sabia o seu valor! A vida ia ser diferente daqui por diante! Ia fazer um curso de caratê, ninguém mais ia fazer pouco caso dela! Seguiu pelas ruas sujas, rumo à sua casa, louca para comprar briga. X-8 olhava da sua janela. Sentiu-se muito maduro por ter fingido se assustar, dominando a tendência de dar um peteleco naquela figurinha insignificante, bestinha atrevida. Aquilo havia sido um reforço naquele ego tão sofrido que talvez durasse toda a vida. Mais uma vida salva… Realmente, competência compensa, pensou, enquanto imaginava distraidamente a que hora ia passar no banco no dia seguinte para depositar os seus bem-havidos ganhos.

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