Palavra privacidade

MEMORANDO

 

De: X-8, abaixo assinado, brasileiro, de profissão Detetive, estado sólido, nascido num Hospital, morador no Ed. Éden, sala 304, bem em frente ao Bar do Garcia, bairro Inominado, cidade tal de tal estado.

 

Para: Ministério Público das Palavras, órgão ao qual compete a defesa dessas unidades da língua e que deve fazer tudo quanto está em suas mãos para evitar a elas, nossas fiéis servidoras, maus tratos de qualquer ordem, seja ela ortográfica, inadequação de conteúdo e outros, incluindo a pura e simples ignorância.

 

Assunto: vem reclamar de abuso sofrido por quatro palavras, que a seguir descreve.

 

 

Inicialmente, vem a público denunciar o que atualmente se faz com o sentido da pobre palavra incrível. Ela tem origem no Latim incredibilis, “aquilo que não pode ser acreditado”,  formada por in-, aqui com o sentido negativo, mais credibilis, “crível”, de credere, “crer, ter confiança”, provavelmente do Indo-Europeu kerd-dhe-“acreditar”, literalmente “colocar o coração em”.

Num aparte, chamamos a atenção para o fato de ela derivar de uma concepção de milhares de anos, extremamente expressiva e poética: “colocar o coração em” é uma condição para convencer-se da veracidade de alguma coisa.

E lembramos que essa palavra kerd- originou, entre outras, os substantivos cultos que usamos para lidar com o coração, como cardíaco e outros.

Assim, ela é uma representante da beleza da Etimologia, não merecendo  –  como nenhuma merece, aliás  –  sofrer o que lhe está acontecendo.

Ocorre, senhores magistrados do Ministério Público, que ela passou a significar, em vez daquilo para que foi feita, alguma coisa simplesmente “maravilhosa, sensacional, fabulosa”. Vejam que, nas propagandas, qualquer coisa a ser vendida recebe o epíteto de incrível, seja  a linda vestimenta da moçoila que vai sair com o namorado, a nota que o fulaninho estudioso tirou no exame, a velocidade que determinado carro atinge e muitas outras coisas.

 

 

A seguir, requer sejam tomadas providências em relação à palavra magérrimo. Ou magérrima, pois com ela se dá o estranho fenômeno de que ela seja quase que só aplicada aos seres do gênero feminino da espécie Homo sapiens sapiens.

Seu significado, nos últimos tempos, variou de designar um ser vivo em estado de subnutrição para elogiar uma mulher simplesmente dizendo que ela não está gorda  –  e mais, já foram relatados casos em que a palavra é dita simplesmente como um elogio genérico, completamente desligada da qualidade inicial que ela descreve.

Para cúmulo, somos obrigados a dizer que essa palavra, pobre vítima, na realidade, tem existência no mínimo discutível. Ela é uma alteração inculta do verdadeiro adjetivo, que é macérrima.

Sim, pois deriva do Latim macer, “magro”, sendo pronunciada magérrima apenas porque magra tem esse “G”.

Há dicionários que não a incluem; já outros a aceitam sem discussão.

Assim, além de solicitar sejam tomadas providências quanto ao significado dela, pedimos que ela seja trocada no idioma pátrio pela forma com que nasceu, proibindo-se que ela seja falada ou escrita.

 

 

Uma palavra que existe mas tem sido barbaramente espoliada de seu destino é diferencial. Observe-se que hoje em dia ela é sistematicamente usada com o sentido de “característica de destaque, coisa melhor do que outras comparáveis”.

Senão, veja-se a quantidade de afirmações de que “Nosso diferencial são os serviços”, “Este design é um diferencial”, “Oferecemos hospedagem com um
diferencial”.

Ora, Senhores, esta pobre criatura vem do Latim differens, particípio de differre, “colocar de lado, apontar desigualdades”, de dis-, “fora”, mais ferre, “levar, portar”. Ou seja, quando de seu nascimento ela apontava para fatos ou coisas divergentes, sem dar noção de que uma fosse superior a outra.

Essa palavra existe legitimamente em mecânica de automóveis, onde se usa para o conjunto de engrenagens que transmite às rodas o movimento do motor; é muito usada também em Matemática, onde designa uma  função linear.

Mas seu uso corrente é um acinte ao uso das palavras.

 

E, última mas igualmente importante, vem a pobre coitada da privacidade.

Ela se originou no Latim privatus, “pertencente a si mesmo, colocado à parte, fora do
coletivo ou grupo”, particípio passado de privare, “retirar de, separar”, de privus, “próprio, de si mesmo, individual”, que por sua vez vem de pri-, “antes, à frente de”. Aquele que está à frente dos outros está separado deles, está por sua conta.

Ela hoje é abundantemente usada como sinônimo de “íntimo”: “Invasão de
privacidade
”, “Tenho direito à minha privacidade”, “Isso é um abuso contra a privacidade” são frases que se espalham em nossos textos como gotas numa tempestade.

O que essas pessoas despreparadas querem dizer é intimidade; ela deriva do Latim intimus, um superlativo de in, “em, dentro”.

Veja-se que o que é íntimo não é o mesmo que o privado.
Aquela se refere a coisas relativas ao interior da pessoa, àquilo que ela não reparte com as outras, fora as naturais exceções feitas quanto às relações próximas.

E o privado é aquilo que a elas pertence e sobre o que elas têm ingerência. Um carro é propriedade privada de alguém, mas nada tem de íntimo, pois pode ser visto por qualquer um.

 

 

Destarte, mesmo sabendo que navegamos contra uma poderosa corrente movida pelas forças do escasso saber, vimos a este Ministério inicialmente solicitar providências em relação às citadas vítimas e informar que estamos preparando um avolumado dossiê citando outros horrores correntes em nosso idioma.

 

 

Sendo o que se apresentava para o momento, colhemos a ocasião para manifestar nosso apreço e distinta consideração.

 

 

X-8, Detetive Etimológico.

Resposta:

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