X-8 se encontra novamente no asilo das palavras. Por alguma estranha razão literária, cada vez que ele vai lá é de noite e a lua é cheia.
Claro, esta é a melhor maneira de se aproveitar o visual da grande e antiga casa de madeira.
Ela tem telhados em ângulos agudos, torres, janelas muito altas, enfeites em madeira cuidadosamente recortada por todos os cantos, feitos numa época em que não havia pressa para terminar uma obra, o que se queria é que ela ficasse bem feita.
As manchas de prata que a lua joga sobre a cena contrastam brutalmente com o negror das sombras, ajudando a ocultar o mau estado em que se encontrava a casa: a pintura descascada, telhas faltando, vidros quebrados aqui e ali, jardim totalmente abandonado, tomado por plantas ferozes.
Mas o que é que não fica bonito e romântico ao luar? Seja como for, nosso detetive agora está no interior da citada casa, falando com o Diretor-Presidente Chairman Executivo (sonoro título, dado por ele mesmo) do Asilo das Palavras, Pastor Ataliba.
Este é um sujeito baixinho, expansivo, com forte sotaque espanhol. Seus cabelos são de um negro tão negro que chega a ser suspeito. Tem um bigode fininho da mesma cor e um chamativo canino superior esquerdo de ouro.
Sua noção de se vestir bem é usar traje e gravata, mas para por aí. Como resultado, ele ostenta uma camisa com colarinho amassado e não muito higiênico, uma gravata frouxa com flores abrangendo o espectro inteiro, que chega apenas ao começo da próspera barriga, um traje xadrez e sapatos que desconhecem limpeza, que dirá graxa.
Mas ele é simpático e envolvente. Ele está explicando a X-8 que se instalou ali para poder ajudar palavras em dificuldades, que tira dinheiro do próprio bolso para isso porque ele se encontra em missão de apostolado; seu desejo é poder trazer algum alívio às palavras, que tanto nos auxiliam o tempo todo e para as quais não há previsão de aposentadoria nem justo descanso.
Não pôde se instalar em lugar melhor da cidade porque os custos não eram compatíveis com o seu magro bolso, e inclusive se o amigo pudesse contribuir com alguma coisa para auxiliar as palavras carentes…
X-8, notório pão-duro, fingiu não ouvir esta última parte.
O que não fez diferença, pois o pedido era apenas força do hábito. Pastor Ataliba, na verdade, recebia gostosas contribuições de várias ONGs, esses organismos maravilhosos montados no dinheiro a eles repassados por pessoas desejosas de melhorar o mundo sem terem muito trabalho.
Havia se instalado ali, naturalmente, porque neste bairro os aluguéis eram baixíssimos, os empregados não exigiam registro em carteira, nenhum tipo de fiscalização se atrevia a entrar.
Pastor Ataliba era uma pessoa de grande eficiência pessoal. Havia dando uma sensacional melhorada no asilo. Era de se ver como ficava linda a casa, reformadíssima e limpa, pintadinha, com um jardim muito cuidado ao redor, onde passeavam palavras felizes em recuperação, sendo cuidadas por enfermeiras de touca e capinha nos ombros, à Florence Nightingale.
Pelo menos nas fotos que enviava aos órgãos que o ajudavam, com a ajuda dos programas de edição de imagens que ele tinha se esforçado em aprender.
Nenhuma das ONGs que o apoiavam sabia que não era a única. Enfim, nosso Pastor achava que, depois de tanto trabalho ao computador, ele fazia por merecer cada centavo que lhe pingava na conta corrente.
Mas isso não é importante. O que conta para nossa história é que o Pastor está tentando convencer X-8 a tratar de graça algumas palavras que ali estão.
Mas neste momento o detetive não está em sua melhor forma. Ele apresenta importante grau de distensão abdominal, resultado de certas indulgências a que ele se entregou na Pizzaria do Porco, pouco antes.
A incômoda situação pede que ele se retire logo para o seu apartamento/escritório, onde ele tem remédios para estas situações que ele jura, de cada vez, que não ocorrerão mais. Mas, embora ele seja tão especial, ainda é humano, a carne é fraca, seu estômago é delicado e a higiene da cozinha da Pizzaria do Porco é deficiente.
Ora, direis, o que faz então o nosso personagem a trabalhar em más condições de saúde? Ele não teve escolha; no caminho de volta entra a janta e sua residência, foi gentilmente levado pelo braço ao Asilo que brilhava ao luar, num desvio curto.
A pessoa que o convenceu de modo tão definitivo foi Monkenstrausen, o Auxiliar de Serviços Gerais e Pau-Para-Toda-Obra do Asilo das Palavras. Era um sujeito enorme com uma cabeça minúscula. Ainda assim, sobrava espaço nesta para guardar nesta o que se poderia chamar de inteligência.
Seu argumento irretorquível foi pagar o detetive pelo braço com a força de um rinoceronte no cio e o levar, dizendo: – “O senhor vem”.
O que não era um pedido, nem sequer uma ordem. Era uma constatação, a simples previsão do futuro imediato.
No Asilo, X-8 foi colocado em contato com o Pastor Ataliba; ouviu-o com a possível paciência e pediu para ver logo a palavra que requeria seus cuidados.
Contente, Ataliba pediu para que Monkenstrausen e Marly, a enfermeira redondinha que tomava conta das palavras quando não estava fazendo as unhas, levassem o famoso detetive ao quarto da palavra em crise.
Depois de andarem pelos labirínticos corredores com piso de madeira estalante, chegaram a um quarto onde, numa cadeira de palhinha igual à que van Gogh pintou naquele famoso quadro, estava sentada uma palavra que se balançava, olhos perdidos no vazio interior, obviamente em grande sofrimento mental.
Isso fez o profissional dentro de X-8 sobressair. Esqueceu-se do seu mal-estar, sentou-se na outra cadeira e ficou observando os gestos e a fala da pobre palavra. Naquele momento, ela dizia, em voz estrangulada:
– Trêfego, o pícaro prosélito, pálido, lívido, esquálido, na América, à romântica ópera, rápido e trêmulo, viu o ótimo cálice argênteo com esplêndida pátina e líquido tépido. De súbito, rápido, usou péssima característica, ínfimo cálculo, cômputo esdrúxulo, estúpida e rígida…
– Com isso basta – disse o profícuo profissional.
Voltou-se para Marly, que como sempre cuidava das unhas e para Monkenstrausen, que como sempre não estava entendendo nada:
– Este é mais um caso da Síndrome de Si Mesmo, que tem acometido cada vez mais as palavras em nosso mundo moderno, tão cheio de tensões. Elas acabam entrando como que em curto-circuito e perdem a sua capacidade funcional, sempre com perda de memória e alguns outros sintomas. Felizmente isso é reversível com um pequeno tratamento de choque – voltou-se para a palavra balbuciante e falou com voz firme e pausada:
– Olá, Proparoxítono. Sei que este é o seu nome porque você estava usando em sua conversa predominantemente palavras deste tipo. Lembra-se agora de quem você é? Seu nome foi criado a partir do Grego pro-, “antes de”, mais para-, “além de”, mais oxytonos, “som agudo, estridente”, que em Gramática se aplicou ao acento colocado na última sílaba. Percebeu?
A palavra olhou ao redor com espanto e perguntou o que estava fazendo ali.
X-8 deixou-a aos cuidados dos bravos funcionários e saiu apressado para casa. Já que não havia lucrado nada com aquele caso, pensava em elaborar um trabalho intitulado “Terapia de Pequeno Choque para Casos de Síndrome de Si Mesmo Não-Complicados: Uma Experiência Pessoal” e apresentá-lo no próximo Congresso de Detetivismo Etimológico.