Como acontece todos os dias, é noite no bairro onde X-8 mora e trabalha. A maioria das pessoas prefere sair nessa ocasião, que assim se enxerga menos a sujeira.
Nossa câmera literária se desloca, num elegante vôo, sobre as ruas escuras, com poucas lâmpadas em funcionamento. Desce em picada sobre a quadra da Pizzaria do Porco.
Para quem não sabe, este é o estabelecimento do Porco Garcia, irmão do Garcia do Bar. Ambos são grandes, gordos, sujos, mal-encarados e com a barba por fazer. Seus negócios são estranhamente semelhantes aos donos.
Mas as pizzas do Porco são famosas no bairro. Aquele cheiro de queijo torradinho, as iguarias que vêm como cobertura…
Felizmente a Secretaria da Saúde não reconhece a existência do bairro, de forma que seus fiscais não podem interferir nos sabores inesquecíveis das pizzas.
De qualquer forma, é a única pizzaria do bairro. Outros já tentaram se estabelecer ali. No entanto, depois de Porco Garcia lhes fazer uma amável visita acompanhado do seu bastão e explicar as dificuldades e riscos do negócio na região, ninguém se arriscou a abrir casa por lá.
No caso de umas poucas pessoas não habituadas a sutilezas, as explicações de Porco Garcia exigiram um tempo longo e muitas sessões de fisioterapia para se consolidar.
Mas isso não vem ao caso. O que importa é que, com os modernos recursos da eletrônica virtual e espiã, nosso plano visual descortina um trio saindo do citado estabelecimento alimentar.
Uma das pessoas é uma figura totalmente envolvida por uma capa de gabardine cor-de-palha muito grande, com um chapéu marrom bem enfiado na cabeça.
Basta essa descrição para que todos saibam que se trata do Defensor das Palavras, o Grão-Guru da Etimologia, o Detetive X-8, aquele que tudo sabe sobre as origens das palavras.
Mas quem é casal que está com ele?
Vejamos: a moça é alta, bastante larga e profunda. Veste calças pretas, justas como uma pintura spray, uma camisetona ampla que desce até quase os joelhos, usa um par de sandálias de borracha cor-de-rosa com plataforma enorme.
Seus dedos das mãos e dos pés estão cheios de jóias de alumínio e vidro de muitos quilates. Seus cabelos longos e impossivelmente negros apresentam uma profusão de objetinhos coloridos com formas infantis, presos por molinhas, elásticos e outras criações estranhas da engenhosidade humana.
Essa descrição se aplica a quase todas as jovens do bairro. Por isso, desde já vamos explicando que esta é Mistinguete Garcia, a filha do dono da pizzaria.
Ao lado dela, vai um rapaz magro, alto, com o rosto cheio de espinhas e um olhar que lembra o vácuo do espaço exterior. Usa tênis sem cadarço, tão acolchoados que parecem um edredon enrolado nos pés. Suas calças são cheias de bolsos e terminam a meia-canela. Isso, combinado com a camiseta folgada cujas mangas descem abaixo do cotovelo, lhe dá a estranha aparência de um anão gigantesco.
Mais uma vez, descrevemos a maioria dos rapazes que circulam pelo bairro; precisamos dizer que este é Paulo Geraldo (“Pejota para os amigos”, diz ele, amavelmente, ao ser apresentado), que casou à força com Mistinguete Garcia numa festa concorridíssima. Forçoso é confessar que ele até agora não entendeu muito bem o acontecido.
Seu nível de inteligência tem o dom de não deixar ninguém acabrunhado, nem mesmo uma alface, caso esta fizesse um teste de QI. É por isso que muita gente do bairro gosta de passar uns momentos com ele. Faz bem para o ego.
No entanto, não debochem. Ele está em pleno processo de intelectualização. Percebe vagamente que X-8 é uma pessoa que sabe muitas coisas e está resolvido a passar o máximo de tempo junto dele, para ver se fica sabido também. Aliás, para ele é um avanço enorme perceber que há o que perceber no mundo ao seu redor.
X-8, que prefere companhias com um grau maior de conhecimentos, está passeando com eles porque o Porco Garcia lhe fez uma proposta irrecusável esta noite, na hora de levar a conta à mesa do detetive.
Ofereceu uma certa quantidade de refeições grátis ao detetive para que ele batesse uns papos com a filha e o genro.
A idéia era que o nível intelectual deles melhorasse o suficiente para eles poderem tocar o negócio, caso ele morresse algum dia.
Mistinguete não tinha conseguido passar da tabuada do seis; o rapaz, confrontado com um problema de primário em qualquer matéria, fazia uma cara de incompreensão cósmica que necessitaria um Da Vinci para reproduzir. Ou uma boa câmera fotográfica.
X-8, já com a carteira na mão, meditou rapidamente sobre a proposta. Pesou em seu raciocínio o cabo do porrete de madeira de lei muito alisado pelo uso que se projetava do bolso da calça de abrigo do Porco Garcia. Resolveu pelo mais seguro, topando a parada.
Mas insistiu numa cláusula: não podia dar qualquer garantia de resultados.
Garcia concordou e foi chamar o casal, que estava olhando TV no quartinho onde moravam sobre o depósito dos fundos.
Foi assim que as coisas se passaram para que agora estejamos olhando a lenta caminhada dos três pelas calçadas sujas do bairro.
– Côsa romântica né seu X-8 passear assim a gente falando sobre coisas legais né? Eu acho tipo assim muito legal – disse Mistinguete, que não era muito afeita à colocação de vírgulas nem na linguagem falada.
Pejota acrescentou:
– Eu queria saber de onde veio tanta coisa natural legal no mundo, que nem… que nem… – seu pensamento se fixou na primeira coisa que viu na calçada à sua frente – …aquele anjinho de rato morto ali.
– Aquilo se chama morcego e, embora pareça um rato com asas, não é. Seu nome veio do Latim mus, “rato” mais cecus, “cego”. Antigamente se achava que eram mesmo ratos de asas e que eles não enxergavam bem. Aliás, nisto eles acertaram.
– Ai, que romântico! – disse a moça – e aquela baratinha que está passando por ali?
– Seu nome vem do Latim blatta, usado para denominar mais de uma espécie de bicho rastejante, do Grego blaptein, “estragar”.
Mistinguete falou:
– Ué, “estragar” por que? Lá na cozinha do pai…
O detetive, com a barriga cheia de pizza feita justamente “na cozinha do pai”, mudou depressa de assunto:
– Olhem lá, que rato grande que passou junto à cerca! Sabiam que o nome dele vem do Latim rattus, mas não é ligado ao verbo rodere, “roer”? Na verdade, não há certeza da origem, acredita-se que seja palavra não-românica, que veio do Leste europeu com as migrações de povos…
– Tá, mas na cozinha… – teimou a rapariga. O vulto na capa atalhou, rápido, apontando para o alto com a mão enluvada:
– E olhem quantos insetos estão reunidos ao redor da lâmpada daquele poste. Olhem que beleza! Como eles voam bonito, não? Essa palavra vem do Latim insectum, “cortado, dividido”, pois é assim que eles se apresentam, com os segmentos do corpo bem marcados por estreitamentos. Essa palavra é o particípio passado de insectare, “cortar em”, formado por in-, “em”, mais secare, “secar”.
E, sem deixar tempo para que a mente da moça retomasse o assunto que se configurava tão mal, seguiu:
– Falando em romantismo, vejam só a sujeira que se acumula nas calçadas. Tal palavra vem do Latim succidus, “gorduroso, úmido, melequento”, de sucus, “seiva, suco, bebida”…
Pejota interrompeu:
– Pois é, o Seu Garcia, pai desta aqui, quando faz um bom suco, todo o mundo pergunta o que é que ele bota a mais para dar um gostinho especial e ele diz que é segredo. Mas eu já espiei ele fazendo e ele não bota nada de mais. Ele até raspa de vez em quando por dentro o copo do liquidificador, quando a gosma fica muito grossa e endurece…
Ansiado, X-8 aponta de súbito para o céu:
– A lua! Um eclipse! As estrelas! As cegonhas!
– Ué, Seu X-8, tá nublado e não se enxerga nada lá em cima!
– Não, eu quis dizer que essas coisas estão lá, mas não dá para ver agora. Você foi muito inteligente ao perceber isso, Pejota!
O rapaz se encheu de orgulho.Ser chamado de inteligente pela pessoa mais inteligente do bairro! Com essa adrenalina a estimular a custo os seus neurônios pouco habituados ao trabalho, ele fez uma pergunta.
E ela, para alívio de X-8, não lidava com os acontecimentos obscuros da cozinha de onde tinha saído a refeição que ele agora tinha no estômago:
– E beco, de onde vem, Seu Detetive?
– Em Português antigo era viecu, um diminutivo de via, “estrada, rua, caminho”.
Mistinguete não ia ficar atrás:
– Olhalí as lesmas na parede! De onde vem o nomezinho delas que são tão engraçadinhas?
– Em Roma eram chamadas limax, as engraçadinhas – ao perceber que o casal estava num momento de pouca inspiração e temendo que eles voltassem ao assunto da cozinha, X-8 começou a falar sem parar:
– E quanta imundície artisticamente disposta nas calçadas! Essa palavra vem do Latim imundus, “sujo”, formado por in-, partícula negativa, mais mundus, “limpo”. Curiosamente, esta palavra também acumulava o significado de “mundo” mesmo e de “jóia”.
Nossos esgotos estão sempre com problemas porque a Prefeitura não se atreve a mandar gente para limpar. Essa palavra vem do Latim gutta, “gota”, dando a idéia de líquido a escorrer, como se espera que aconteça com os esgotos.
Eu falei em limpar e me lembrei que essa palavra vem do Latim limpidus, “transparente, claro, límpido”.
E ora, vejam só, não é que estamos chegando aqui no Edifício Éden, onde eu moro? Bem, pessoal, foi um grande prazer passear com vocês, a gente tem que fazer isso mais seguido, gosto muito da juventude, mas minha mãezinha velhinha está me esperando e pode ficar preocupada se eu demorar, de modo que até logo e qualquer dias desses a gente se vê de novo, tchauzinho, hein? Lembranças para o P… para o Seu Garcia, não se esqueçam!
E subiu correndo as escadas, deixando o romântico casal voltar para casa enlevado nas nuvens da intelectualidade.