O impertérrito Detetive das Palavras, X-8, está sentado em seu local de trabalho, o empoeirado escritório do Ed. Éden, num bairro onde o Diabo não entra porque não tem coragem.
A porta se abre para a cliente desta noite entrar. Ele olha com atenção e vê que se trata de Fábula.
Prepara-se para impressionar esta palavra, que certamente é tímida como todas as outras e veio para saber de sua origem e se tem parentes vivos – enfim, o de sempre, que o investigador está sempre pronto para aguentar com toda a paciência, contanto que a cliente pague pelo seu trabalho.
Ela se acomoda à frente dele e, em vez de falar com um expectante e temeroso fio de voz, vai dizendo com clareza:
– Boa noite; como qualquer idiota pode ver, sou Fábula e não vim perguntar sobre minhas origens. Delas já sei; derivo do Latim fabula, “história, conto, narrativa”, literalmente “aquilo que é contado”, relacionado a fari, “falar”. Dei origem, por exemplo, a fabuloso, “legendário, incrível, fantástico”.
Na verdade, estou interessada em saber algo sobre minha acepção de “narrativa curta com personagens animais dotados de fala e sentimentos humanos, usada para transmitir preceitos morais”.
O detetive esperava por uma consulta como todas as outras, em que se comprometeria a entregar o histórico das origens da cliente e pronto. Mas ficou atrapalhado e balbuciou um inteligente “Ahnn…”
A cliente continuou, firme:
– Essas historinhas apresentavam uma grande quantidade de bichos como personagens. Pois eu quero saber a origem dos nomes deles, e agora mesmo, pois amanhã vou viajar para umas férias prolongadas e então não vou poder pagar.
X-8 embatucou. Não estava preparado para responder a muita coisa sem um estudo prévio. Nenhum etimologista está nessas condições, por mais que tente aparentar o contrário. Mas perder um pagamento assim, essa não! Respondeu friamente:
– Diga alguns desses nomes, por exemplo, para eu ir tendo ideia.
A decidida palavra responde:
– Pude ver que a maioria das fábulas não apresenta nomes como “elefante”, “jacaré”, “polvo”, “macaco-aranha” e que tais. Aliás, ia ser muito engraçada a fábula “O Ornitorrinco e o Tubarão-Martelo”.
O detetive, recompondo os pensamentos:
– Certo, eles não faziam muito parte da cultura européia, de onde as fábulas foram coletadas. Prezada cliente, posso lhe proporcionar as origens de vários nomes, mas primeiro permita-me passar à sala ao lado, onde guardo meus lenços de papel – rinite contraída após muito anos de pesquisa no meio dos livros, sabe?
Deslocou-se rapidamente para a sala do lado, que as clientes jamais viam. Ao contrário do resto do apartamento, ela era limpa, bem-cuidada e tinha um computador em ótimo estado. Ali ele começou a fungar alto e espirrar enquanto percorria rapidamente alguns sites e livros.
Voltou para a sala anterior, com um lenço de papel amassado na mão:
– Ah, essas doenças profissionais ainda vão me matar. Bem, se eu partir mais cedo, terá sido por uma causa nobre, como auxiliar minhas queridas palavras e…
Percebeu que a cliente não estava nem aí para seu discurso auto-laudatório e começou:
– Para começar, falaremos na origem do Leão, que não era nativo da Europa mas era bem conhecido por lá. Deriva do Latim Leo e do Grego Leon, talvez de origem semítica.
Depois temos a Raposa, que vem do Latim rapum, “cauda, rabo”, que nela é bem desenvolvida e peluda, dá para enxergar de longe.
Já o Lobo veio do Latim lupus, do Grego lykos. Esta deu origem à palavra licantropia, “metamorfose de ser humano em lobo”. O seu nome em Inglês, wolf, é bem diferente, mas tem a mesma origem que lupus.
Aquela cegonha que andou brigando com os sapos numa história se originou do Latim ciconia; os batráquios da história vieram de um desconhecido idioma ibérico, pois parecem existir apenas em Português, Espanhol e Basco.
Gato é do Latim cattus, que substituiu feles, “gato, gato selvagem”, em Roma.
O detetive olhou para Fábula:
– Não lhe parece que já vimos o bastante? Ou pelo menos o principal?
Ela simplesmente respondeu:
– Não.
O detetive se desculpou por mais uma crise de espirros que ele sentia estar vindo e foi para sala ao lado, onde efetuou mais uma pesquisa de urgência, entre fungadas altas e espirros.
Voltou, sempre com mil desculpas, sabe como é, este frio, a umidade… E retomou a fala:
– Claro que eu estava brincando quando perguntei se aquilo chegava para saciar a sua curiosidade, cara cliente. Tanto que vou lhe dizer mais:
Temos também o porco, em Latim porcus, que era um nome dado ao porco doméstico. Este atendia também pelo nome sus, que originou “suíno” em nossa língua. O javali era chamado de singularis porcus, “porco solitário”.
O galo era gallus em Latim e sua esposa, Dona Galinha, era chamada gallina.
Já o cordeiro, que se meteu em dificuldades com o lobo numa disputa sobre o direito às águas locais, vem de cordarius, de agnus chordus, o último filho a nascer da ovelha.
Por que este preconceito por época de nascimento, não sei. Se eu fosse o bichinho, contratava um advogado e processava meus pais.
Ah, informo que de agnus veio também uma palavra que só vi maus poetas usarem em Português, o anho. Convenhamos que usar isso num poema, só para rimar com “antanho”, “musaranho” ou algo assim.
Também temos…
Nesse momento a cliente se levantou:
– Agora é o senhor que vai ter que me desculpar, mas meu avião parte cedo amanhã e tenho que voltar logo para casa. Talvez mais adiante a gente possa retomar este interessante papo. Obrigada e até então.
O grande profissional se despediu dela e ficou se abanando. Uf, que sufoco! Se ele não fosse inteligente…