Acampamentos [Edição 15]
Eu tinha quatorze anos e estava assanhadíssimo. Queria dar logo a notícia ao meu avô.
Cheguei ao seu gabinete, entrei e o vi sentado à sua poltrona de couro, fazendo consertos com agulha e linha forte num guardachuva.
– Vô, posso entrar?
– Se não for para incomodar… sua expressão desmentia a resposta mal-encarada – Você parece agitado, seus olhos estão que nem um par de faróis. Que é que há?
– É que vou acampar com uns colegas agora nas férias do meio do ano! Estou louco para ir!
– Ora, ora. Então o meu pequeno citadino vai ficar telúrico e andar pelos matos, hein?
– É. Quase todo o mundo que eu conheço já foi e eu nunca tive ocasião. O senhor sabe que os meus pais não são chegados, daí que nunca fui antes.
– Muito bem. Há quem goste e quem não goste; as pessoas nunca vão chegar a um acordo quanto a isso. Eu, particularmente, sou da mesma opinião de um escritor que eu admiro muito e que disse que não ia acampar porque era injusto a humanidade ter levado milênios para deixar de fazer as necessidades no mato e agora voltar a fazer isso.
Mas há quem não se incomode, e na sua idade é uma experiência que a gente precisa ter mesmo.
Sente-se aqui e vamos ver se você aprende alguma coisa para contar aos outros enquanto estão reunidos ao redor da fogueira, à noite, sendo comidos pelos mosquitos.
Acomodei-me na banqueta.
– Naturalmente vocês vão dormir numa barraca. Espero que tenham uma e que saibam montá-la.
– Sim, o pai de um dos meus amigos vai junto e é um grande acampador.
– Agora fico mais tranqüiilo. Deixe-me dizer que o nome do abrigo temporário que vocês vão usar vem de barro, pois as primeiras construções deste tipo eram feitas com barro e galhos. A palavra barro, por sua vez, vem de uma palavra Ibérica barr-, “lodo, lama”. Outra derivada daí que nós temos é a palavra barranco.
– Como foi aquela vez que o senhor escorregou e caiu sentado no barro com um prato de comida emborcado em cima, Vô?
– Isso tudo são intrigas da sua avó e do seu pai quando era pequeno. Uma pessoa com o meu absoluto controle físico não pode, por definição, passar por uma situação ridícula dessas. É pura inveja da parte deles – fez sua melhor cara de dignidade ofendida.
Mas não me atrapalhe com essas besteiras. Deixe-me lembrar que você tem que levar algo que lhe sirva de colchão. Esta palavra é um aumentativo de colcha – outra coisa que você não pode esquecer de levar. E colcha vem de do Francês Antigo colche, do verbo colchier, que por sua vez veio do Latim collocare, “colocar”.
– O que é que se colocava? A pessoa na colcha ou a colcha na pessoa?
– Escolha você, gracioso. Sei é que agora a pessoa se coloca no colchão e coloca a colcha por cima.
Você pode usar também um cobertor para evitar o frio. Essa palavra também vem de Roma, do verbo cooperire, que queria dizer “tapar, cobrir”.
E, para folgar durante o dia, se puder, leve uma rede. Esta é mais uma palavra que vem do Latim, onde era rete.
– O pessoal em Roma colocava suas redes entre as colunas dos templos para descansar, Vô?
– Você está impossível hoje. Tamanho assanhamento está perturbando essa sua cabeça ventosa.
Naquela época ainda não se tinha inventado a rede de dormir, mas havia vários outros tipos. Uma delas era um enfeite para conter os cabelos das damas. Outra era a que os pescadores usavam para retirar os peixes da água. Ainda outra era a que os reciários usavam nas suas lutas contra os gladiadores.
– Oba, luta!
– Claro, “oba, luta!”, mas na hora de fazer algo criativo ou trabalhoso, não querem saber.
– Os mais velhos da sua geração também resmungavam contra os jovens, Vô?
– Também. Mas, no caso, eles não tinham razão e vamos mudar de assunto. Os reciários (em Latim, retiarii) eram aqueles sujeitos que usavam uma rede, um tridente, um capacete e uma proteção no braço esquerdo.
– E qual dos dois o senhor queria ser, Vô?
– Nenhum. Preferiria estar longe dos circos, procurando as ninfas pelos campos. Onde, aliás, qualquer pessoa tem que se precaver contra moscas e mosquitos. Ambas essas palavras derivam do Latim musca, “mosca”. Mosquito é um diminutivo de mosca formado no Espanhol. A notícia mais remota dessa palavra é que talvez tenha vindo do Indo-Europeu mu-, um som imitativo do zumbir dos insetos.
– Uma vez o Pai estava faceiro, dizendo que “tinha acertado na mosca”. Fiquei achando que ele tinha muito boa pontaria, ainda mais que elas não costumam ficar paradas. Ou será que ele usou uma lata de inseticida?
– “Acertar na mosca” é uma expressão que significa “atingir o alvo bem no centro”. Como o centro exato dele é um círculo pequeno, ele foi comparado a uma mosca. Claro que há um certo exagero nisso. Os ingleses o chamam de bull’s eye, “o olho do touro”, pela forma e tamanho, o que descreve melhor a verdade.
– Eu me lembro direitinho daquela constelação da Mosca, Vô.
– Isso, a que eu lhe mostrei daquela vez na praia. É um conjunto de quatro estrelas pequenas bem aos pés do Cruzeiro do Sul. Talvez você possa mostrá-la aos seus amigos no acampamento. Não se esqueça de que, nesta época do meio do ano, o Cruzeiro está quase deitado com o pé para a esquerda, no começo da noite.
E falando em insetos, cuidem-se para não montar a barraca sobre um formigueiro, que as donas não aceitam desculpas depois. Formiga vem do Latim formica, que se relaciona com o Grego myrmex.
– E as formigas fabricam Fórmica?
– Mais uma dessas e eu vou pedir ao pai dos seus amigos que não o traga de volta. Essa marca de material de revestimento vem da empresa que começou a fabricá-lo, uma tal Formica Insulation. E parece que o nome foi escolhido porque o formol ou o ácido fórmico entravam na composição do material.
Uma vez eu ganhei um concurso que desafiava alguém a dizer qual a palavra que se usaria para “genocídio de formigas”, isto é, uma matança generalizada da espécie. Eu falei em mirmicídio, que está certíssimo, e até hoje o malandro não me pagou o prêmio.
– E qual era ele?
– Bem, é verdade que era uma viagem para um lugar aonde eu não iria nem pintado de ouro, só que ele nem fez menção de pagar… Mas vamos ver outra coisa que pode incomodar se os senhores acampadores não estiverem bem preparados: fome. Esta palavra tão curta vem do Latim famis. Deve ser evitado o seu surgimento através de um bom planejamento do que se vai levar para comer.
– Daí foi que a Mãe falou uma vez numa famigerada ex-namorada do Pai? Ela sentia muita fome?
– Chiii… Esses são terrenos perigosos, mesmo que o seu pai nunca mais tenha visto aquela moça. Não, famigerada vem de fama, “reputação, fama” e de gerere, aqui com o sentido de “levar”. A rigor, a palavra designa quem tem uma reputação, mas o sentido em nossa língua se fixou na má reputação.
Lembrem-se de ter também à mão um bom suprimento de água limpa e fresca, para evitarem a sede, palavra que vem de sitim. Esta deu duas palavras com o mesmo significado: sedento e sequioso. Esta última é de uso mais culto.
E não se esqueça de levar os seus talheres, para não ter que matar a fome de maneira muito selvagem. A palavra talheres parece vir do Italiano tagliare, “cortar”, pois são os instrumentos que se usa para cortar
a comida em pedaços que caibam na boca do vivente.
Entre eles encontramos a faca, cuja etimologia não está bem definida. Uma das várias hipóteses é que venha do Latim falx, “foice”.
Colher vem do Latim cochlearis, que vem de cochlea, “caramujo”, pela semelhança de um fragmento de casca deste bicho com a colher. E garfo vem do Árabe garf, “punhado, mancheia”.
A comida vocês vão preparar nas panelas, cujo nome vem do Latim panella, diminutivo de panna, “frigideira”. Vai ser servida nos pratos, do Latim platus, do Grego platys, “amplo, chato”. Acabo de me lembrar que o nome científico do ornitorrinco é Platypous, “pé chato”, de platys mais pous, “pé”.
E não deixem de cuidar do fogo, cujo nome vem de focus, que antigamente designava, nos lares romanos, a lareira ou lugar onde ele era feito. Esta palavra acabou desbancando a que era usada especificamente para fogo, ignis, que acabou ficando com uso restriro a palavras cultas ou técnicas, como ignífugo e outras.
Mas acho que basta por hoje; sua cabecinha quer é se assentar em outros acampamentos que não este. Espere um pouco.
Levantou-se e abriu uma das portas de um armário alto e escuro. Subiu um banquinho e tirou de lá um pacote grande. Deu uma olhada rápida dentro dele e o passou para mim:
– Tome. Acho que isto vai ser útil.
Puxei o conteúdo: uma mochila grande, de lona, com todo o jeito de material militar! Clássica, charmosíssima, desbotada (melhor ainda) mas em excelente estado! Quase caí sentado.
– O-o senhor vai me emprestar sua mochila, Vô?
– Não, seu tolo. Vou dar. Acampar é uma das coisas que eu não vou fazer mais mesmo, e eu estava guardando esta para quando você entrasse nessa fase.
– Mas, Vô! Puxa! O senhor usou esta aqui na Primeira Grande Guerra, com máscara de gás no rosto, capote e um fuzil Lee-Enfield daqueles, com baioneta e tudo?
– Não cheguei a isso, mas se eu tivesse uma baioneta aqui eu sei qual língua eu iria cortar com ela, seu desaforado!
Coloquei-a nas costas. O velho me ensinou a prendê-la. Olhei para ele e tive vontade de fazer uma coisa.
Fiz, e não me arrependi nunca: pulei e lhe dei um abraço longo e forte, que ele retribuiu com um calor que eu sentiria ainda no acampamento.
Saí pulando pelo corredor e o peso da mochila parecia me deixar ainda mais leve.