CÂMERA [Edição 72]
Um dia perguntei para meu avô a diferença entre câmera e câmara. Ele me olhou e foi sentar na sua poltrona de couro; eu pensei “Oba!”, me ajeitei à sua frente e esperei a sua fala pausada:
– Uma palavra do Indo-Europeu, como tantas, deu muitos frutos nas línguas que derivaram dela. Ela é kam-, que significava “dobrar, torcer, arquear, encurvar”. Daí resultaram o Grego kamara e o Latim camera, “quarto com teto abobadado, recurvo”, comum em prédios antigos.
De camera veio camarada, “companheiro de quarto”, um costume em épocas em que os quartos abrigavam várias pessoas ao mesmo tempo, e indicativo de que aquele sujeito era de confiança. Dormir perto de alguém com um punhal afiado e intenções pouco santas em relação à saúde da gente é pouco prudente.
Hoje, chamar de câmara um quarto ou qualquer aposento de uma residência está
correto, mas é de pouco uso. Essa palavra é mais indicada para o recinto onde são feitas reuniões ou atividades deliberativas e mais ainda para o grupo de indivíduos que ali se reúnem, como um conselho, uma junta ou algo desse teor.
Agora, esse nome também pode ser usado para designar o que antes se chamava de “máquina de tirar retrato”.
– E o que é que tem que ver um quarto com uma máquina dessas, Vô?
– Se você contiver essa sua inquietação eu conto, seu impaciente. Ocorre o seguinte: os artistas europeus muitas vezes usavam uma espécie de caixa fechada com uma lente que projetava em seu interior as imagens de fora, como meio para desenhar com fidelidade antes de pintar por cima. Esse artefato se chamava em Latim camera
obscura, “quarto escuro”, pois lembrava um aposento escurecido.
– Quer dizer que esses tais artistas famosos ficavam era colando as imagens, é?
– Pois tudo indica que vários se serviam desse auxílio, especialmente para quadros de paisagens rurais e urbanas. Mas eles também recorriam a um sistema um pouco mais complicado, a camera lucida, o “quarto claro”, que usava prismas para projetar a imagem e dispensava a caixa escura.
– E aí? Chamo a tal máquina de retrato de câmera ou de câmara?
– Atualmente se usa mais a palavra que pegamos emprestada do Inglês, camera.
Mas qualquer uma pode ser usada, o que importa é que você tire fotos bonitas.
– Hum… e camelo, Vô? Veio daí também? É por causa da corcova redonda?
– Não, essa vem do Grego kámelos, do Fenício gamal, o nome do bicho. Mas, se você anda atrás de derivados de kam-, mesmo que distantes, posso citar cambaio. Essa palavra que designa “de pernas tortas, estropiado”, veio dessa sua nova conhecida.
O mesmo podemos dizer de cambalhota, que é “descrever curvas girando com o corpo”. E de cambota, “peça em arco, armação arredondada”. E que pode ser usada como sinônimo de cambaio também.
– Ih, Vô, algumas eu não conheço, acho que nem se usam mais!
– Devo reconhecer que não fazem parte do vocabulário da maioria na atualidade
– deu um suspiro – mas também, com essa falta de cultura…
Enfim, devemos fazer o que podemos. E o MEU neto não vai ser inculto, ou vou ter que usar uma vara para ajeitar isso!
Eu sabia perfeitamente que a ameaça era apenas retórica, mas fiz uma cara de aterrorizado. E ele fingiu que acreditou; a gente se gostava muito. Prosseguiu ele:
– Da mesma origem, contamos também com o verbo cambar, que quer dizer
“entortar, caminhar de pernas tortas, fazer com que algo se incline”.
E deste verbo veio o cambão ou cambo, uma vara recurvada na ponta para colher frutas na ponta dos galhos.
Fiz uma cara de inocente:
– Ué, mas as frutas não vêm do supermercado?
– Não provoque, rapazinho, que até eu sei que você não é tão burro como aparenta. Ainda me lembro de usar um cambão no sítio do meu avô. E não pergunte se o Brasil já tinha sido descoberto.
– Ah, tá, Vô…
– Temos também o termo náutico cambona, que descreve uma mudança repentina no curso de uma embarcação, uma curva pronunciada. E que se aplica também a um carro de bois, já que eles são mantidos juntos por um jugo ou canga. Palavra que, aliás, vem do Celta cambica, que vem de.. de…
– Kam! – disse eu, trunfante.
– Impressionante como este meu neto anda sabido ultimamente. E, se os bois estão muito cansados e começam a andar torto, ou seja, cambalear?
Sabendo que ele gostava de preparar armadilhas, hesitei.
– Fique tranqüilo, rapaz, a origem é a mesma.
E quando você vir seus pais usando uma peça de roupa para não saírem da cama com aquele jeito amarfanhado de repolho que a gente costuma ter ao acordar, o chambre, lembre-se dos homens em alguma caverna, há uns dez mil anos…
– O quê, Vô, eles usavam um chambre sobre as peles de urso?
– Nãão, seu desastrado, espere a gente terminar de falar! Eu estava dizendo que, nessa ocasião, você deve se lembrar que o nome dessa peça vem do Francês robe
de chambre, “roupa de quarto”, sendo que chambre vem de…
– Do Latim camara, do Indo-Europeu kam-! – gritei.
– Muito bem, você ainda vai ser um grande etimologista como este seu modesto avô.
Mas por hoje chega. Vamos brincar um pouco com o gato, que já dormiu bastante e precisa de exercício.