Jogos [Edição 11]
Eu era adolescente e fazia tempo que entrava no gabinete do meu avô sem hesitar. Há muito eu tinha percebido como era sólido o nosso laço e me sentia seguro e acolhido ao visitá-lo.
Volta e meia eu passava por lá. abatido por alguma dor familiar ou da adolescência e, mesmo sem que entrássemos no assunto que me pesava, aquele contato me nutria e me dava condições para enfrentar a situação.
Algumas vezes me perguntei se ele saberia ou não o que se passava dentro de mim. Mais tarde descobri que ele sabia exatamente como eu estava e que sutilmente providenciava para lidar, mesmo de forma oculta, com o problema.
Mas desta vez eu estava sem maior peso na alma e queria aprender a jogar xadrez, principalmente para poder manejar aquelas bonitas peças em madeira polida que me fascinavam desde a infância. Olhando para elas, eu disse:
– Vô, quem foi que inventou este jogo tão intelectual? Deve ser bem moderno!
– Esse era um jogo de guerra e tem mais de mil e quatrocentos anos. Surgiu no norte da Índia. Era chamado de chaturanga em Sânscrito, uma palavra que era muitas vezes usada para designar “exército”. Olhe bem para as seis primeiras letras: se o “CH” soasse “K”, o que teríamos?
– Ora, katur.
– E se você trocasse as duas últimas letras, que palavra isso lhe recordaria?
– Katru – ué, quatro?
– Isso mesmo! Essa palavra originou o quattuor latino, que virou o nosso quatro. E anga era cada um dos componentes dos exércitos locais: infantaria, cavalaria, carros de combate e elefantes.
Esse jogo imitava as manobras de um exército. As peças que hoje chamamos de peões eram a infantaria, os soldados a pé, mais numerosos, menos potentes e que morriam como moscas.
– E imagino que estes cavalos tão bonitinhos eram a cavalaria, né?
– Impressionante a sua inteligência, meu rapaz. Você certamente receberá um prêmio Nobel antes dos vinte anos se continuar assim. Agora conte-me o resto.
– N-não, Vô, isso eu deixo para você.
– Bem; a torre representa os carros de guerra, pelo poder que eles tinham em combate. E o atual bispo, os elefantes. Seu nome em Espanhol é alfil, do Persa pil, “elefante”, através do Árabe al-fil.
– E de chaturanga passou a xadrez como?
– Na Pérsia esse nome passou a chatrang; os árabes o passaram a chatranj e o levaram para a Península Ibérica, onde ficou ajedrez em Espanhol e xadrez em Português.
Há uma expressão que é tão usada no idioma em geral que muitas pessoas nem sabem que provém do xadrez: é xeque-mate, quando a peça chamada rei está cercada e sem saída alguma. Quando o rei era cercado irremediavelmente, o exército ficava acéfalo e nem era preciso dar cabo dele, pois ele não podia mais expedir ordens. Os persas diziam shah mat, “o rei está morto”, o que originou o nosso xeque-mate.
– E a rainha, que o senhor diz que é tão poderosa no jogo?
– Na origem, esta peça era um conselheiro ou assessor, farz em Persa. Na Europa, foi latinizado em farzia, passou para o Francês como fierce e depois vierge, “virgem”. Provavelmente por influência da religião católica, onde a Virgem tem tanto poder, a peça passou a simbolizar uma rainha com grande mobilidade e capacidade no jogo.
– Puxa, Vô! Quanta coisa num tabuleiro só!
– E ainda há uma história bem interessante. Diz ela que foi um monge que inventou esse jogo, para distrair e aliviar da tristeza um poderoso rei cuja esposa tinha falecido. Quando o rei aprendeu as regras e se tornou um grande apreciador do jogo, chamou o monge e lhe ofereceu uma recompensa: ele podia fazer qualquer preço que o tesouro do rei atenderia.
O monge, achando que o rei estava precisando agora de um pouco de humildade, pediu apenas um simples grão de trigo pela primeira casa do tabuleiro, dois pela segunda, quatro pela terceira, oito pela quarta e assim por diante, dobrando sempre os grãos a cada casa. O conjunto deles seria a sua recompensa.
– Ora, Vô, um saco cheio de trigo dá e sobra para isso! Nem precisa contar. O monge era modesto mesmo.
– É, seu espertinho? Pois foi isso mesmo que o rei pensou. Mas o monge insistiu em receber o número exato de grãos, nem mais nem menos. Aí Sua Majestade chamou seus sábios e displicentemente os mandou fazer os cálculos. Eles pegaram a fórmula para a soma dos termos de uma progressão geométrica de razão 2 e a aplicaram para 64 termos.
– E de que tamanho ficou o saco de grãos?
– Dum tamanho maior que a Índia inteira, pois o total de grãos dava dezoito quintilhões, quatrocentos e quarenta e seis quatrilhões e muitocentos e mais grãos – uma quantidade completamente fora do alcance de qualquer rei.
Eu sabia que o velho não inventava, de modo que me dei por vencido.
– Está bem, Vô. E o rei, ficou mais humildezinho?
– Não faz diferença, já que a história não é verdadeira. Mas é um bonito exemplo de matemática, não?
– É verdade. E aquele outro jogo com um tabuleiro igual, Vô?
– Ah, que época. Quando eu era menino todos sabiam o que era o jogo de damas. Aliás, todos tinham seu joguinho de damas, de dominó, de varetas, etcétera.
– Agora a gente tem videogames muito mais interessantes e bonitos, ora! Quando é que vou poder lhe ensinar algum, Vô?
– Já que você quer, qualquer dia destes. E vamos ver se eu não viro campeão!
– Combinado, Vô. Mas fiquei curioso com o nome do jogo de damas. Era só para mulheres?
– Nada disso. Acontecia assim: no chatranj, quando o rokh – soldado – chegava na oitava casa, o fim do tabuleiro, virava farz. Esta é a imagem do soldado que, pelos seus méritos militares, avança muito na carreira e acaba promovido a um cargo de muita importância. Em linguagem de xadrez atual, quando o peão chega à oitava casa, vira uma rainha com todos os seus poderes.
– Fazia uma operação de mudança de sexo?
– Fique quieto ou eu lhe bato com o relho! Dessa noção de uma peça virando uma rainha, isto é, uma dama de alta extração, na oitava casa, é que veio o nome francês de jeu de dames, jogo de damas, para o jogo. Nesse jogo também acontece de, quando uma peça chega à extremidade do tabuleiro, virar uma dama com superpoderes.
– E por que eles são chamados jogos de tabuleiro, Vô?
– Porque em Latim tabularium era uma espécie de bandeja sobre a qual se colocavam à venda doces e outras comilanças, um derivado de tabula, “tábua, mesa”. Da semelhança de forma é que se fixou o nome.
– Legal! E dominó eu sei o que é. A gente até usava uns joguinhos parecidos no primário.
– Poucos sabem que jogar isso de verdade implica em cálculos que levam até a ter idéia das peças que o adversário tem na mão. Este jogo já é bem mais moderno, tendo menos de trezentos anos. Provavelmente foi inventado na Itália.
– Já sei de onde vem o nome! É porque o vencedor dominava o outro e…
– Quieto, seu chutador! Etimologia não é assim. Se você continuar desse jeito, seu futuro na área será negro. O que ocorria é que existia um traje religioso que constava de uma capa preta com capuz e que era chamado de domino pelos franceses. Essa palavra vinha do Latim dominus, “senhor”, uma forma respeitosa de chamar os religiosos.
Este nome começou a ser usado para os trajes semelhantes usados em festas de disfarce, com uma pequena máscara cobrindo a parte superior da face. E acabou nomeando o jogo em que se usam peças pretas com marcas brancas que lembram os olhos.
– E o jogo de cartas, Vô?
– Não é um, são numerosos. O nome das peças usadas nele vem do Francês carte, que veio do Latim charta, “escrito, papel, livro”. Mas originalmente esta palavra queria dizer “folha da planta de papiro” e veio do Grego khártes, sendo provavelmente de origem egípcia.
O ato de misturar as cartas para que a distribuição seja ao acaso antes do jogo se chama embaralhar, e parece vir de varalia, “confusão, desordem”, talvez de vara, “vara”, devido ao entrelaçamento das varas numa trama de vime.
Baralho acabou nomeando o conjunto de cartas de jogar.
– Uma conhecida dos meus pais parece que anda viciada em bingo. E este nome, de onde vem?
– Este jogo é mais moderno ainda; é do começo do século passado. Essa palavra vem da imitação do toque de uma campainha, bing! que se fazia quando eram completados os números desejados.
– E os dados? Chamam-se assim porque o dono do jogo os dá de presente?
– Chamam-se assim porque é uma palavra que veio do Oriente através do Árabe dad, “jogo”. Em Roma eram chamados de alea. Esta palavra ficou famosa quando Júlio César atravessou o rio Rubicon com seu exército – o que era proibido – e disse Alea jacta est!, “os dados estão lançados“, ou seja, “a jogada foi feita, não há mais volta”.
Há um uso muito importante derivado daí, que é a palavra aleatório, que quer dizer “ao acaso”.
Falando em algo que pode trazer sorte ou azar, estas palavras têm histórias interessantes.
Azar, por exemplo, vem do Árabe as-sahr, “a flor”. Numa das faces dos dados que eles usavam havia uma flor, e o nome dela passou a significar “acaso”. Em Espanhol, este significado se manteve, e azar quer dizer “acaso”. Por exemplo, a frase Daba tiros al azar quer dizer “dava tiros a esmo, ao acaso”.
Em Português, por uma dessas voltas que as palavras dão, passou a significar o acaso desfavorável, a má sorte.
E sorte, sors em Latim, por sua vez queria dizer “o destino de cada um, a porção que cabe a cada um na vida, boa ou má”. Também por essas voltas acabou significando, em Português, o acaso favorável, vantajoso para a pessoa.
Havia uma expressão “tirar sortes” que queria dizer “escolher ao acaso, sortear”.
– E os cassinos, Vô?
– Ah, essas maneiras de tirar dinheiro alheio têm a origem dos seu nome no Latim casa, “cabana, morada pobre, morada rural”. As casas melhores eram por eles chamadas domus. A palavra casa, no entanto, prevaleceu no Português sobre domus.
Como o jogo, em várias épocas, era praticado em lugares pouco chamativos, usou-se o diminutivo casino para tais lugares, o que virou o nosso cassino.
Aliás, jogo tem origem num daqueles deuses antigos: vem de Jove, um dos nomes de Júpiter. Como este tinha um temperamento disposto à alegria – embora às vezes com brincadeiras um tanto brutas – formou-se a partir dele a palavra jovial, “alegre, descontraído”. E a palavra jocus, em Latim, “atividade que causa diversão”.
Os ingleses têm, entre as cartas do baralho, o joker, “o engraçado, o piadista”, representando o Bobo da Corte. Naquelas épocas cruéis, muitas vezes era escolhida para esta função uma pessoa com deformidades físicas. É por esta razão que o nosso coringa é representado por um homenzinho corcunda com roupas estranhas.
– É no cassino que se joga roleta, não é?
– Sim. Esta palavra vem do Latim rotullum, “cilindro, peça para enrolar papiro”. Foi aplicado por causa do rolar da bola até chegar a uma casa numérica.
– Vô, qual desses jogos o senhor recomenda para que eu fique rico?
– Quer moleza, é, seu safado? Meu conselho é: fuja de todos, pois sempre há alguém lucrando por trás, mesmo na hipótese de não haver manipulação no jogo. Fique apenas com o xadrez.
– E como é que eu vou enriquecer com o xadrez?
– Não vai. Mas enriquecer não é só ganhar dinheiro. Se você aprender que mexer uma peça aqui vai ter conseqüências ali e se aprender a calcular as possibilidades antes de cada movimento, sua vida terá menos complicações.
Falando nisso, agora você tem que ir para casa estudar, sabia? Vamos deixar para jogar xadrez e os seus videogames noutro dia. Até à próxima.