UM DESABAFO [Edição 69]

 

– Bom dia, Sr. dono deste simpático barzinho perto da minha casa onde eu compro meu pão diário mas onde minhas dívidas não são perdoadas, bom dia aos frequentadores aqui reunidos tanto para fazer suas comprinhas como para trocar informações sobre a vida alheia ou para consumir bebidas espirituosas.

Hoje acordei de muito mau humor, fato que atribuo ao meu  trabalho de lecionar Etimologia para um grupo de crianças extremamente difíceis de controlar, para dizer o mínimo.

É por isso que me sinto necessitada de lançar invectivas contra algumas coisas que vejo aqui.

Para os que não sabem, invectiva vem do Latim invectivus, “agressivo, inadequado”, do verbo invehere, “atacar com palavras”, originalmente “jogar-se, atirar-se contra”, de in-, “em”, mais vehere, “levar, transportar”, que originou também “veículo” e “veemente”.

Acabo de ser passada para trás na fila por aquela senhora acolá com cara de quem nem tinha reparado; gostaria de dizer a todos e principalmente a ela que a polidez que lhe faltou vem do Latim polire, “polir, tornar suave”, metaforicamente, “elegante, correto, respeitoso”. Seria lindo se ela conseguisse corresponder à origem dessa palavra por meio de atos.

Uma coisa que os senhores de olhar vago sentados nessas horrendas cadeiras de plástico fazem, enquanto bebericam suas cervejas, é falar em política.  Antes que pensem que essa palavra se relaciona com polidez, aviso que ela deriva do Grego politikos, “relativo ao cidadão ou ao Estado”, de polites, “cidadão”, derivado de polis, “cidade”.

Esta palavra veio do Indo-Europeu polh-, “espaço fechado, em geral em local elevado”, o que descreve o núcleo inicial de muitas cidades nas civilizações antigas.

Polícia é outra derivada, relaciona-se com ela pelo sentido de “cuidar das cidades”, onde a segurança  sempre foi uma preocupação.

Quanto àquelas senhoras ali que fornecem uma à outra os pormenores de todas as suas doenças, cada qual querendo ter sofrido mais do que a outra,  embora pareçam extremamente sadias, elas precisam saber que a Policlínica de que tanto falam não  vem do Grego poly- no sentido de “vários, muitos”, não.

Todos pensam que a palavra vem do fato de um local assim atender a muitas especialidades ou ter muitos médicos, mas a origem na realidade é o polis “cidade” de que já falamos. Tratava-se da “clínica da cidade” no início.

Falando em conduta nas cidades, podemos lembrar que esta palavra veio do Latim civitas, originalmente “condição ou direitos de cidadão”, de cives, “homem que vive em cidade”.

Daí veio civilização, como oposto a barbárie, do Grego barbaros, “estrangeiro, forasteiro” literalmente “aquele que fala de modo incomprensível”, de um som barbarbar que imitava um balbuceio.

Civilidade é um conjunto de formalidades, palavras e atos que os cidadãos adotam entre si para demonstrar mútuo respeito e consideração. Pelo que vejo, nem todos os presentes se dedicam com demasiado afinco a exercer uma condição tão bonita, seja por desinteresse, seja por escassez de neurônios mesmo.

Tendo falado em bárbaros e olhando certos atos que daqui distingo com meus olhos treinados em perceber os atos mais solertes dos meus aluninhos – como aquela senhora que está colocando o tomate mais bonito que encontrou disfarçadamente no bolso ou o dono do bar se enganando propositalmente no troco a devolver, ocorre-me à memória já tão abalada pelo desgaste cotidiano a palavra selvagem.

Ela vem do Latim selvaticus, uma alteração de silvaticus, “selvagem”, de silva, “floresta, bosque, selva”, local onde costumam morar seres que não tiveram qualquer informação sobre os modos de se comportar numa sociedade humana.

E sim, essa palavra originou o sobrenome tão conhecido, Silva. Muitos dos habitantes das aldeias antigas adotaram essa palavra como sobrenome, quando estes passaram a se fazer necessários, por morarem nas beiras do lugarejo, já perto da floresta.

Eu me referi aos bichos da floresta, que são chamados também de  brutos; eles podem não saber de nosso comportamento e é por isso que seu nome veio do Latim Brutus, “estúpido, grosseiro”.

Naturalmente isso não é de esperar de quem já freqüentou uma escola, como quero crer que ocorreu com todos os presentes.

Os animais, por sua natureza, se nos apresentam como ferozes, do Latim ferus, “selvagem, não-domesticado”. Mesmo assim, em geral eles se mostram menos destrutivos em seus lugares de domínio do que determinados bípedes implumes que se recusam a seguir o que sua lei determina.

Ah, prezados senhores e senhoras que me olham atônitos  –  palavra que vem do Latim atonitus, “atordoado pelo ruído do trovão” de tonitrus, “trovão”  – como é bom desabafar um pouco, tirar do peito nossa naturais revoltas e sentir-se leve como uma pluma!

Agradeço a todos por esta oportunidade e prometo voltar amanhã.

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