Palavra apparatus sculptoris

Estrelas

 

Eu devia estar com quatorze anos e tinha ido visitar meus avós lá pelo fim de uma tarde de verão. Eles me convidaram para jantar e claro que eu aceitei. Depois da janta, quando estava escurecendo, fui com o Avô ao pátio, para sentar um pouco e digerir as delícias que tínhamos honrado há pouco.

Ernesto, o Gato, nos acompanhou, querendo brincar. Acomodamo-nos em cadeiras, com o felino correndo e pulando ao nosso redor e olhamos para o céu.

– Olhe lá a lua, Vô! Está enorme, espetacular!

– Hoje é lua cheia. Ela nasce quando o sol está se pondo. Também gosto muito de lua; a sua luz tem uma mágica única. Pena que não dá para ver bem as estrelas quando ela está presente.

– Por quê?

– Devido à luminosidade dela, que contrai as pupilas da gente e faz desaparecerem muitas estrelas. Não fosse isso, íamos hoje poder falar sobre elas e as constelações.

– Eu me lembro bem das vezes em que os senhor as apontou para mim, Vô. Mas uma coisa de que nunca falamos foi na origem dos nomes delas e das estrelas. Sempre achei muito estranhas algumas dessas palavras.

– Muito bem; isso quer dizer que o seu ouvido está afinado para os sons mais comuns dos idiomas ocidentais, o que não é pouco para a sua idade. O que acontece é que muitos desses nomes têm origem árabe, por isso lhe soam tão diferentes.

Os árabes foram grandes astrônomos; deram valiosas contribuições a esta ciência, que é a mais antiga de todas.

– Eles gostavam muito do assunto, então?

– Por um lado, o céu limpo da época e do lugar facilitava as observações. Mais do que isso, a Astronomia tinha um papel fundamental na vida diária deles.

A partir do domínio do Islamismo, ela era indispensável para marcar o momento preciso em que o muezzin, o sacerdote, ia chamar o povo às orações da torre do minarete.

Era também indispensável para determinar a Qiblah, que é o caminho mais curto entre o crente e Meca, a cidade sagrada, para onde todos devem se voltar ao rezar. Essa necessidade também influenciava no posicionamento das mesquitas.

Sem a Astronomia, não seria possível marcar as fases da lua nem os meses do calendário árabe, que é lunar.

Atualmente, por exemplo, existem programas de computador e mapas feitos pelos governos de países árabes, que disponibilizam essas informações, permitindo aos fiéis uma grande precisão geográfica e temporal.

– Eu aprendi na escola que o crente sempre se voltava para o leste nas suas orações. Parecia simples.

– Pois lhe ensinaram errado. Voltam-se para leste apenas os que estão em determinada posição. Os de outras partes do planeta podem ter que se voltar para qualquer um dos pontos cardeais.

– Puxa, então eles precisavam de um sistema de orientação muito bom mesmo.

– É verdade. Por isso foi que eles deixaram tamanha marca nesta ciência. Mas vamos ver de quais estrelas com nomes árabes que eu me lembro agora. Ah, sim: olhe ali, já dá para ver aquela constelação, que é…?

– Fácil, Vô! É Órion, o Caçador, aquele gigante que anda pelo céu.

– Isso mesmo. Mas não fique tão orgulhoso por saber essa. Você teve um graande professor.

– Se eu não fosse um graande aluno, você não conseguiria me ensinar nada, Vô.

– E está me saindo um graande respondedor também. Feche o bico, senão não lhe conto que aquela estrela ali, correspondendo ao ombro esquerdo do gigante, se chama Betelgeuse, que vem do Árabe Ibt al Jauzah, “a axila do que fica no meio”.

– E por que “no meio”?

– Deeve ser porque essa constelação fica entre a do Touro e do Cão Maior.

– Estou numa séria dúvida astronômica, Vô. De que tamanho será o desodorante para essa axila?

O velho me atirou um graveto que tinha na mão. O gato pulou atrás dele e quase me atropelou.

– Aquiete-se, seu engraçado, e olhe para aquela outra ali, que se situa no que seria o joelho da figura: é Rigel, em Árabe Ryl Jauzah al Yusra, “a perna esquerda do que está no meio”.

– E aquela ali, no ombro direito, é “a axila direita do…”

– Não, seu chutador. Aquela tem um nome latino mesmo. É Bellatrix, “a guerreira”, de bellus, “guerra”, a palavra que originou bélico, beligerante, belicoso, em nosso idioma.

– Aquelas que formam o cinto do gigante eu sei, são as Três Marias. Mas me lembro que o senhor me falou uns outros nomes.

– Sim. São Alnilam, de An-Nidham, “a pérola”; Mintaka, de Al-Mintakah, “o cinto”, e Alnitak, de An-Nitak, também “o cinto”.

– De onde foi que eles conseguiram nomes para todas as estrelas? Devem ter gasto todo o dicionário!

– Bem, para início de conversa, eles não nomearam todas as estrelas, como você acaba de ver com Bellatrix. Além do mais, eles evidentemente deram nome àquelas que eram visíveis a olho nu. E que são um número menor do em geral se imagina.

Quando a Astronomia se armou, isto é, quando ela começou a usar instrumentos, já havia passado o fastígio da contribuição árabe a ela. Agora eles estão a par dos outros países no assunto, mas os astros há tempo que recebem números catalográficos. Você tem razão; não haveria palavras suficientes para todos os astros.

Se bem que, se você quiser dar um presente para uma namorada, há uns espertos aí que dão o nome que você quiser para uma estrela e o registram, de modo que você fica sendo o seu nomeador.

– Verdade? Será que aquela grandona ali é muito cara?

– Ah, o amor e a juventude dão assuntos inesgotáveis. Por um momento os seus olhos brilharam como duas grandes estrelas.

Devo avisar que as estrelas que eles vendem só são visíveis com telescópios. As grandonas já estão com nomes tradicionais fixos, de modo que você deve presentear sua namorada é com a sua atenção e o seu carinho. Valem muito mais do que uma estrela invisível e custam mais barato.

Então, a Uranografia – os nomes dados aos astros, do Grego Ouranós, “céu” e graphein, “escrever”, abrange mesmo são as estrelas que eram observáveis desde as épocas remotas.

Mas ainda assim ficaram nomes muito interessantes. Um deles é Algol, uma estrela cujo brilho varia visivelmente em poucos dias. Seu nome vem de Ras-al-Ghoul, ” cabeça do ghoul”, que era uma espécie de demônio que se alimentava de cadáveres retirados das covas. Em geral ela é citada como ” cabeça do vampiro”, mas ele não correspondia ao vampiro que imaginamos.

– Assustador, hein?

– Muito. Temos também Aldebaran, de Al Dabaran, “a que segue”, pois essa estrela surge nos céus depois que a constelação das Plêiades se ergueu. Também há Capella, do Latim “a cabrinha”, uma homenagem à Cabra Amaltéia, que alimentou Zeus, o Pai dos Deuses.

E aquela que você estava querendo dar para a sua namorada é Sírius, nada menos que a estrela mais brilhante dos céus deste planeta. O nome dela vem do Grego Seirios, “o que queima”, “a ardente”. Outro nome dela é Canícula, “o cãozinho”, diminutivo da palavra latina canis, “cão”. Não se sabe exatamente o porquê, mas a associação dela com o cão começou no Egito. O seu hieróglifo era um cão.

Como, no hemisfério norte, o nascer dessa estrela ocorre em épocas quentes, Canícula acabou sendo uma palavra sinônima de “grande calor”. Por isso, os ingleses chamam uma série de dias de grande calor de dog days.

Falando nisso, ali temos o outro cão do céu, a estrela Prócion. Menor que Sirius, ela ainda é bem grandinha, olhe lá. O nome dela vem do Grego pro-,
“antes” e kyon, “cão”, pois ela precede Sirius no nascimento. É “a que vem antes do Cão”.

E mais ali adiante temos Canopus, Kanobos em Grego, cujo nome parece vir de uma cidade do Egito, Kahi Nub, “terra Dourada”.

– Quantos dias o senhor falaria sobre os nomes das estrelas, Vô?

– Muitos, acho eu. Ou melhor, noites. Uma vez se fez a hipótese de que as estrelas eram furos na abóbada do céu, por onde os anjos espiavam a Terra. Seria mais divertido se fosse verdade.

– E sobre os nomes das constelações?

– Ah, essas dão mais algumas noites! Ainda mais se a gente for contar as histórias associadas a elas.

– Os formatos das constelações nunca me conveneceram muito, Vô. Elas sempre foram assim ou antigamente representavam melhor os seus nomes e depois mudaram?

– Você tem razão. Fora umas poucas, como o Escorpião, Coroa Boreal, Triângulo Austral, elas realmente não lembram os objetos ou seres que lhes dão nome.

O que acontece é que escolher um grupo de estrelas e imaginar ao redor delas uma figura era um método para ensinar referências para pessoas que, muitas vezes, não eram afeitas ao estudo, como pastores e lavradores.

Aquelas eram épocas em que as representações gráficas adequadas para carregar eram difíceis; o melhor era contar uma boa história e fazer as pessoas levarem dentro de si as orientações.

Como se vê, funcionou muito bem, pois até hoje estamos comentando o que as pessoas falavam há milhares de anos.

– O senhor quer dizer que, se a humanidade recém agora fosse olhar as estrelas e definir as constelações, iria surgir a constelação do Automóvel, do Joystick, do Alienígena…

– … Do Hamburger, da Lingérie, do Disco Rígido, do Submarino… É verdade.

– As constelações têm uns nomes esquisitos também, né?

– Sim. Além das mais conhecidas, como as do Zodíaco e outras, há, por exemplo, a Antlia Pneumatica, “a máquina pneumática”, nome dado em homenagem ao inventor desse aparelho, Otto von Guericke. Existe também Typografia, “a máquina de impressão”.

Houve um astrônomo francês, La Caille, que parece que gostava muito das artes plásticas, pois ele nomeou assim algumas constelações: Apparatus Sculptoris, “o atelier do escultor”; Caela Sculptoris, “o buril do escultor”; Equuleus Pictoris, “o cavalete do pintor”.

Nomear constelações também serviu para puxar o saco dos poderosos. Uma delas foi chamada de Sceptrum Brandemburgicum, “cetro de Brandemburgo”, em homenagem a Frederico I, que pertencia a essa família real.

Outra recebeu o nome de Cor Caroli, “o coração de Carlos II” da Inglaterra.

Mas… a lua nos trouxe ao pátio e agora já está alta no céu. Para você não adianta mais, mas eu tenho que me dedicar ao meu sono de beleza diário, rapaz. Toca para casa agora.

Noutra noite a gente volta aos campos do céu. Até lá!

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