Palavra bicicleta

Dois

Eu tinha lá meus dez anos e estava visitando meu avô no seu fascinante gabinete entupido de livros quando fiz uma das perguntas mais tolas que já cometi:

– Vô, o senhor sempre fala na origem das palavras, mas deve haver algumas tão simples que nem origem têm, né?

O velho cavalheiro de barba branca e curta me olhou com um ar que não conseguia esconder a diversão:

– Como qual, por exemplo?

– Ora, sei lá – olhei para baixo e vi os meus pés – por exemplo, dois. Isso mesmo, esse nome deve ter sido sempre assim, desde os tempos das cavernas, de tão banal e usado que é. Dois pés, duas mãos,…

– Duas besteiras… – disse ele, fazendo um gesto para eu me acomodar à sua frente – essa palavra nasceu, cresceu e se desenvolveu como todas as outras, não seja tão simplista.

Olhe só, essa nossa palavra vem do Latim duos, “dois” mesmo, que veio do Indo-Europeu duwo, de mesmo significado.

É verdade que ela até mudou pouco, mas posso dizer que ela não ficou na simplicidade que você pensa; ela gerou um grande número de outras palavras. Por exemplo, a dúvida que o levou a me fazer esta pergunta.

– Ué, isso vem de dois?

– Sem dúvida – disse o engraçadinho – ela e suas correlatas, como duvidar, dúbio, dubitativo, vêm do Latim dubitare, “não ter certeza, hesitar”, de dubius, “aquele que hesita entre duas possibilidades” de duos.

– Puxa…

– Quando você vê um filme dublado na TV, está lidando com uma palavra que vem do Latim duplus, “duas vezes, o dobro”, de…

Duos, já sei.

– Excelente, se você continuar assim talvez haja alguma esperança no seu futuro que não seja esfregar o chão – e continuou depressa, antes que eu protestasse:

– E quando você dobra a roupa ou uma aposta, também está usando um derivado de duplus.

Mas devo lhe dizer que há outra raiz que expressa a mesma idéia e é de grande uso, o bi-.

– Que nem a minha bicicleta?

– Isso mesmo. Essa palavra vem do Latim bi-, do Grego di, “dois, duas vezes”. É usadíssima para expressar alguma coisa que tem duas possibilidades, duas funções, alguma quantidade em dobro. Tem uso relativamente recente, de poucos séculos, e basicamente na linguagem culta. Física e Química estão cheias.

Fora dessas áreas, temos, bígamo, “o que é casado duas vezes”, bicampeão, “campeão duas vezes”, …

Biblioteca, bico – disse eu, triunfante, ansioso por mais elogios.

– Bico calado, é o que você merece ouvir, seu chutador! A primeira dessas palavras vem do Grego byblion, “papel, rolo com escrita”, originalmente o diminutivo de byblos, “papiro”, o nome do porto de onde era exportado esse material.

E a outra vem do Latim beccus, “bico de ave”, de origem gaulesa.

E se você não se aquietar não vou lhe contar que o músculo de seu braço, o bíceps, vem de bi-, mais caput, “cabeça”, pois assim eram chamadas as partes do músculo, que se insere em dois pontos diferentes dos ossos.

– Ah é, meu avô inventor, e como é que caput virou ceps? Essa não! – falei só para provocar, pois sabia que ele era sempre correto no que dizia.

– Pobre infante, enorme é a tua inocência, tanto quanto a tua ignorância! – disse ele, em tom dramático de quem recita – pois fique sabendo que esse -ceps é a forma combinante de caput, ou seja, a roupa que a palavra usa para formar um derivado.

Por exemplo decepar vem de de-, “fora, afastado” e caput, e é o que me dá vontade de fazer com certas pessoas que vêm me incomodar…

– Se você fizer isso vai sujar de sangue todo o seu tapete, Vô.

– Tem razão, fica caro mandar lavar. Por isso vou poupá-lo. E até vou acrescentar que dúzia vem do Latim duodecim, “doze”…

– Que vem de duos!

– Exato. O mesmo acontece com o dobre a finados, que agora as pessoas não conhecem, mas que era o nome de toques duplos do sino da igreja para anunciar um enterro.

E com dobrado, uma marcha tocada em ritmo rápido, muito usada por nossas bandas militares.

E com duplicar, “multiplicar por dois, dobrar”, de duos mais plicare, “dobrar um papel ou tecido”.

Muito bem, e agora dobre o tamanho dos seus passos para ir para casa e estudar, que senão a coisa vai ficar preta.

Resposta:

Veículos 2

Eu estava conversando com meu avô em seu gabinete forrado de livros, quando ele recebeu um telefonema de seu mecânico. Depois que encerraram, ele se voltou para mim:

– Da outra vez eu lhe falei sobre as origens dos nomes de veículos, lembra-se?

– Sim, e eu me lembrei disso enquanto o senhor falava com o Carlos, o seu mecânico.

– Pois vamos ver alguma coisa mais sobre o assunto. Lembro-me de ter citado veículos terrestres e aquáticos, puxados a cavalo e a motor… Já sei. Não falei na bicicleta, aquela em que você levou tão reverendos tombos. Essa palavra vem do Latim bi-, “dois”, mais o Grego kyklos, “redondo, circular”, já que tem duas rodas.

– Ahá, Vô, o senhor agora vai me convencer que gregos e romanos tinham bicicletas? E que iam à guerra montados nelas, gládio na mão e gritando?

– Pare com esse desenrolar de história, que você parece a sua avó quando resolve inventar coisas. Essa é uma palavra que foi criada em 1868 para nomear o veículo, que já existia então mas era chamado de velocípede. Muitas palavras que vêm de idiomas mais antigos foram criadas para designar algo que não existia antes.

– E triciclo vem de tri, “três”, mais esse kyklos aí?

– Puxa, este meu neto me surpreende! É bem mais esperto do que parece…

– Ah, tá… E o patinete que ganhei quando entrei no colégio?

– Vem de patim, que veio do Francês patin, o nome de um calçado de base larga ao qual se podia acrescentar uma lâmina para poder deslizar no gelo. E esse nome veio de patte, “pata”.

Mas, saindo um pouco do plano, podemos falar em balões, o modo mais antigo de fazer uma viagem aérea. O nome deles veio do Italiano pallone, aumentativo de palla, “bola”, já que o formato dos primeiros era esférico.

– E o planador?

– Veio de planar, que veio do Latim planus, “liso, sem relevo, achatado”. Para poder deslizar razoavelmente pelo ar, um objeto deve ser aparentemente plano.

– E quem fala nisso, se lembra de…

– Avião!

– Impressionante como anda esperto o meu neto! Deve ser algum gen meu nessa sua cabeça. Pois é, avião. Tal palavra vem do Francês avion, derivado do Latim avis “ave, pássaro”, já que a idéia é que ambos voem.

Outra coisa que anda pelo ar é o helicóptero. Deriva do Grego helix, “espiral”, mais pteron, “asa”, pois na verdade esse veículo se vale de uma asa que descreve um movimento em espiral no ar.

– Outra coisa que sobe é o elevador, Vô. Qual a origem?

– De elevar, naturalmente, do Latim elevare, “erguer”, formado por ex-, “fora”, mais levare, “tornar leve, fazer subir”, de levis, “leve, de pouco peso”.

– Falando em peso, Vô, e o tanque de guerra?

– Esse nome é interessante. Esse veículo desenhado para ultrapassar trincheiras recebeu esse nome – tank – dos ingleses em 1915, como um disfarce.

Era para os planos deles, se descobertos pelo inimigo, fazerem pensar que se tratava de uma espécie de trator para transportar água para o front. Tank deriva de uma palavra que veio da Índia trazida pelos portugueses, tankh, “reservatório de água, cisterna”.

– Legal, Vô! Mas e o trator?

– Essa palavra vem do Latim tractor, “aquele que puxa”, do verbo trahere, “puxar, arrastar”. Passou a se aplicar a esse tipo de veículo de trabalho em 1901.

Mas a palavra já se usava antes para um aparelho com duas rodas metálicas, uma charlatanice para curar reumatismo de 1798. Veja só que essas espertezas não são próprias apenas de nossa época.

E agora vamos descansar, que ninguém é de ferro.

Resposta:

Passeando Na Pracinha

 

– Ai, meus santos, valei-me! De quem foi a idéia de fazermos um passeio na praça? Artur, largue essas lesmas! Robertinho, saia de dentro do chafariz! Joãozinho e Sidneizinho, larguem a Maria Tereza e a Helozinha! Val, cale a boquinha! Mariazinha, não se meta com o que os outros estão fazendo!

Se arrependimento matasse eu já era múmia!

Isto me irrita, Santa Rita! Isto nunca me aconteceu, São Judas Tadeu! Protegei minha fé, Santo André! Aonde isto leva, Santa Genoveva? É um horror, Santo Alaor! Eu quero dar um grito, Santo Agapito! Que isto chegue logo ao fim, São Serafim!

Zorzinho, desça já dessa árvore. Eu sei que você está apenas escrevendo, mas se cair e se machucar eu é que sou a responsável. E os outros, parem de gritar que vão acordar o Soneca ali, que é o único que não está incomodando, bendita seja a sua preguiça

Crianças, crianças, vamos sentar e abrir os nosso lanchinhos e falar de coisas interessantes. Vamos fazer uma roda… assim… Joãozinho, tire a mão daí. Maria Tereza, sente ali com a Mariazinha que de inocente não tem nada e pode ensiná-la a evitar certos avanços.

Vamos começar a merendinha. Olhem ali os balanços. Depois, se eu ainda estiver viva, nós vamos nos organizar e andar neles.

Sabiam que esse nome vem do Latim? Pois, nesse idioma, lanx era o nome que se dava ao prato de comida. Como os equipamentos para avaliar peso de objetos eram dotados de dois pratos, um para o objeto a ser avaliado e outro para os pesos de valor conhecido, ele se chamou bilanx, “dois pratos”, o que deu a nossa balança.

Como o ato de pesar implicava num movimento de oscilação, de vaivém, a palavra “balançar” acabou se aplicando ao ato de fazer esse movimento. Logo, nós chamamos de balanço esse brinquedo tão conhecido.

Sim, Ledinha? O seu lanche é balanceado? Eu sei que essa palavra agora até figura em alguns dicionários, mas não gosto dela . Ela é mais uma das traduções que são feitas apenas com base na semelhança entre certas palavras do Português e do Inglês.

Neste idioma, to balance significa simplesmente “equilibrar”. Para eles, algo balanced é algo equilibrado, bem repartido, como se diz de uma ração que contém tudo o que é necessário para os nossos animaizinhos domésticos.

Já que citamos equilibrar, esta palavra vem do Latim aequi, “igual”, mais libra, “peso”. Uma situação equilibrada, em termos de balança, é a que tem pesos iguais em ambos os pratos.

Aliás, essa noção de comparar pesos está na origem de nomes de algumas moedas. Por exemplo, o peso, moeda de mais de um país de fala espanhola. Ocorre o mesmo com a libra inglesa, que ostenta ainda o nome latino .

Aliás, vocês sabem por que antigamente as moedas tinham a borda serrilhada? Acontecia muitas vezes de as pessoas que lidavam com grande quantidade delas, como banqueiros e agiotas, rasparem um bocadinho da borda das moedas de ouro e prata.

Com isso, os safados iam juntando pó de metais valiosos que mais tarde iriam fundir e vender. Imaginem isso sendo feito muitas vezes numa moeda; ela acabava perdendo uma parte significativa do seu peso e seu valor. Quando as moedas começaram a ser cunhadas com uma serrilha nas bordas, uma pessoa podia se recusar a aceitar a moeda se ela estivesse lisa ali.

Foi uma idéia genial. E o interessante é que a serrilha se manteve em muitas moedas, apenas por tradição, mesmo depois que elas deixaram de ser feitas de ouro ou prata.

Mas olhem ali: uma criança acaba de se estatelar caindo do escorregador. Parem de rir! Esta palavra vem do Latim excurricare, de excurrere, que queria dizer “fazer uma incursão, um avanço militar”. Em nosso idioma, acabou com o sentido de “deslizar”.

Em Latim, “escorregão” se dizia lapsus. Até hoje as pessoas cultas dizem, quando alguém dá um fora falando, que houve um lapsus linguae, um “escorregão da língua”. Também se diz lapsus calami, “escorregão da pena”, quando alguém está escrevendo e lhe sai uma expressão errada, viu, Zorzinho? Cuide muito com o que você escreve.

E um aviso para quem fala muito: quanto mais se fala, mais fácil dar um fora. Os romanos já diziam: “Ninguém se prejudicou por calar, se prejudicou por falar”. Ouviu, você aí, minha jovem? Ah, claro que não ouviu, está matraqueando sem parar desde que chegou.

– Como, Humbertinho? A origem de matraca? Você é mesmo um amor, pedindo para a Tia Odete dar a origem de mais uma palavra. Mirem-se no exemplo deles, vocês! Tão pequeno e já tão paradigmazinho.

Matraca é uma palavra que vem do tempo em que os Árabes dominaram a Espanha e Portugal. Na época, mitraka queria dizer “martelo de madeira”. O nome foi atribuído depois a peças de madeira articuladas de modo a fazerem ruído quando giradas. Da noção de “ruído” é que vem o nosso verbo matraquear, significando “falar sem parar”, sabia, Val?

Não, Humbertinho, não chore! Quando eu o chamei de paradigma, eu quis dizer que você é um exemplo para os outros. Esta palavra vem do Grego; é formada por para-, “do lado”, mais deykninai, “mostrar”. Quando uma coisa é mostrada lado a lado com outra, fica mais fácil distinguir qual é a melhor. Esta palavra grega também foi a fonte de algo que toda criança deve aprender a usar, que é o dicionário.

Alguém aí, solte já esse pobre pato! Quem foi que o colocou aí dentro? Bem que eu estava achando estranho ver aquela mochila se agitando sozinha ali junto da árvore, mas estava tendo muito trabalho para controlar a turma.

Foi só quando o bicho botou a cabeça de fora que eu vi o que estava acontecendo. Deixem-no ir para a sua casinha, que é o laguinho, e para os seus filhinhos, que estão ali adiante.

Vocês sabiam que o nome deste palmípede vem do Italiano patta, e que este deve vir do Germânico, e que é o-no-ma-to-pai-co, isto é, imita o som que o animal faz caminhando ? Olhem: pat, pat, pat, lá vai o pato, pata aqui pata acolá…

Eu estou vendo que há alguém querendo entrar de novo na água do chafariz para molhar os pés. Nada feito. Vamos fazer assim: você desiste e eu lhe conto que essa palavra vem do Árabe çahrij, que eles usavam para designar um poço ou tanque dágua.

Não está lindo aqui na praça, crianças, com este céu azul-profundo de outono e as folhas secas caídas das árvores?

Sabiam que a palavra praça vem do Latim platea, que queria dizer “rua larga, praça para reuniões públicas”?

E que árvore também vem do Latim, onde era arbor? Existe um verbo descendente daí, arvorar. Significa “erguer, levantar alto como uma árvore”.

Assim se pode dizer “O conquistador arvorou a sua bandeira na cidade vencida”. Também “O político se arvorava em salvador da pátria mas não deu certo”, em alguns casos.

Que é isso? Parem de atirar comida uns nos outros! Que desrespeito, que frege! Noutro passeio destes é que não me pegam. Não sei onde eu estava com a cabeça quando aceitei trazer a turma. Santa Eunice, que burrice! Santa Inês, que estupidez! Santa Teresa, estou indefesa! Ai, minha Santa, eu fui uma anta! E de ficar sentada no chão, minha Santa Cunegunda, já estou com dor na traseira!

Taí, passeio é mais uma palavra latina. Vem de passus, particípio passado de pendere, “estender”.

Os romanos se basearam no passus para medir comprimentos; um conjunto de mil passos dava uma milha, cerca de mil e seiscentos metros. Antes que alguém pense que os passos deles eram enormes, com um metro e sessenta centímetros, é melhor esclarecer que o passo para eles era o duplo, isto é, era contado até onde chegava o pé que estava imóvel ao romper a marcha. Dá dois dos nossos passos, conforme os contamos hoje.

E olhem aquela criancinha com o triciclo colorido – parados aí!! Nada de ir lá e tomar o brinquedo dela! Quietos. Eu ia dizer que essa palavra vem de tri, “três”, mais kyklos, “redondo” em Grego.

Esta última palavra originou muitas outras em nossa língua. Uma delas é o cíclope, um gigante enorme com um olho só, redondo, bem no meio da testa, muito feio e fedorento, que adora comer crianças. Coloca duas ou três inteiras na boca e fica mascando como se fosse chiclete, por um tempão, antes de engolir.

Eu tenho uns amigos que são cíclopes e que, aliás, gostam de vir passear nesta praça. Eles gostam muito de crianças. Dizem que, quanto mais malcriada, mais gostosa.

Bem. Agora que vocês estão tão quietinhos, nem sei por quê, vou aproveitar para dizer que bicicleta é uma palavra formada que nem triciclo, só que com duas – bi – rodas.

E motocicleta é um veículo de duas rodas a motor.

– Hein? E com quatro rodas? Pois existe o quadriciclo, que é um veículo muito perigoso quando as pesoas resolvem usá-lo para subir e descer morros. Não, um automóvel não é chamado de quadriciclo porque já tinha recebido o outro nome, mas a rigor é um quadriciclo. E se chama automóvel porque “leva a si mesmo”, porque é móvel por conta própria, sem ser puxado por animais.

Falando em veículos, olhem só, está chegando a hora de voltar. Nossa camionete já está manobrando ali adiante. Vamos juntar nossas coisinhas e…

Cadê aqueles quatro? Saiam já de trás das moitas! Meninas, eu já não disse que não é para ir atrás da conversa desses dois? Zorzinho, largue um pouco este caderno de anotações e ande! Acordem o Soneca ali! Artur, deixe as lesmas no lugar. Não quero saber se você ia cortar os olhinhos delas com tesoura em casa. E isso não é pensamento científico coisa nenhuma.

Botem o pato de volta! Não arranquem flores de lembrança! Não juntem pipocas do chão! Deixem os brinquedos das outras crianças! Não se espalhem! Vocês dois, desçam da árvore!

Santo Irineu, por que eu? Santa Clemência, dai-me paciência! Santa Sofia, dai-me sabedoria! São Justino, devolvei-me o tino! São Bernardo, livrai-me deste fardo!

Sabem quando é que eu vou acompanhar vocês noutro passeio? No dia de São Nunca!

Resposta:

Origem Da Palavra