– Ai meu coração, Santo Antão! Que porcaria, Santa Maria! Isto me arrepia, Santa Sofia! Parem já com isso, crianças! Isto era para ser uma aula de pintura, não um cataclismo!
E, para quem não sabe, cataclismo é uma palavra que vem do Latim cataclysmos, “inundação, dilúvio”, pelo Grego kataklysmos, do verbo kataklízein, “recobrir com água”, de katá-, “embaixo, sobre, completamente” mais klízein, “verter água”.
Joãozinho, tire a mão daí! Artur, pare de pular! Não acordem o Soneca, que é menos um para incomodar. Mariazinha, pare de ensinar coisas para a Maria Tereza. Zorzinho, pare de escrever que nós viemos é aprender a pintar.
Quem será que teve esta idéia de colocar água e tinta nas mãos destas crianças? Certamente foi alguém que não fica em aula com elas. Estas pobres paredes viraram um quadro do Pollock sofrendo de cólicas. Há tinta em tudo, até no teto, menos nos papéis.
Não, Helozinha, meu anjinho, você não é uma índia Seneca, não era para pintar o seu rosto. E quem foi que derramou tinta na roupa do Oscarzinho ali?
Custava muito colocarem a tinta no papel que foi feito para isso, custava?
O céu é testemunha de que eu não sou rígida, Santa Brígida! Mas esta turma eu não agüento, meu São Bento! Que horror, meu Senhor!
Parem com a baderna!! Vocês parecem os badernas, um grupo de admiradores da dançarina Marieta Baderna, que se apresentou no Rio de janeiro em 1851, de onde veio essa palavra tão detestada pelas professoras.
Vamos fazer assim: agora nós vamos sentar em círculo e, enquanto eu tento limpar um pouco disto tudo, vou contando para vocês a origem de algumas palavras relacionadas com esta infeliz experiência que certas diretoras resolvem arranjar para complicar a vida alheia.
Hum, esta cola que alguém derramou dentro de uma mochila vai acabar inutilizando-a. Vocês talvez não saibam que cola vem do Grego kolla, “grude, goma, cola”. Essa palavra originou o nosso protocolo.
Um protocolo era a página inicial de um daqueles rolos que eles usavam em vez de livros, porque era a primeira (protos, “o que vem antes”) página a ser colada. Ali iam o nome do autor, o nome do livro, a errata, os capítulos, etc.
De “primeira página de uma publicação”, esse sentido mudou para “informação oficial” no Latim Medieval e depois para “registro de uma transação”, para “documento diplomático” e “fórmula de etiqueta diplomática”. Atualmente também se chama assim o local de uma repartição pública onde são recebidos documentos.
Como, Ledinha? Se errata é a mulher do errato? Não, meu anjo, não se trata de nenhuma espécie de roedor. Errata é o plural de erratum, “incorreto, errado”, e designa a parte do livro que traz correções, mostrando onde foi que houve erros na impressão que só foram detectados depois de pronta a edição.
Imagino que os editores deviam se descabelar se encontrassem muitos erros. Errare, para os romanos, queria dizer “vaguear, andar sem rumo”. É isso o que acontece quando nossos pensamentos perdem a orientação. Conheço gente que está constantemente nesse estado.
De onde vem a palavra tinta eu já falei uma vez: é do Latim tingere, “encharcar, molhar, embeber, pintar”. Esse fato etimológico não lhes confere licença de encharcar os cabelos alheios com tinta, não, senhores!
E antes que me perguntem a origem da palavra encharcar, aviso que ela não é bem definida; pensa-se que venha de um idioma da Península Ibérica de antes da dominação romana.
Não, Arturzinho! Não coma esse crayon! Eu sei que ele parece uma bala, mas não é. Também sei que você já comeu cola e papel, mas não aconselho a ingerir isso aí, que é feito de um veículo sebáceo e um pigmento. O nome vem do Francês crayon, originalmente “lápis de giz”, de craie, “giz”, que veio do Latim creta, também “giz”.
E pigmento, “aquilo que dá cor”, vem do Latim pingere, “pintar”. Há uma palavra parente desta que se usa à mesa: pimenta. Esta vem do Espanhol pimiento, que veio de pigmentum porque dava cor aos pratos. Provavelmente se fez aí também uma metáfora sobre o sabor que essa frutinha acrescentava à comida.
Joãozinho, largue essa tesoura e deixe o cabelo da Leonorzinha em paz! Não, você não é um índio e esse não é o cabelo do Coronel Custer! O dele também era louro mas era mais comprido; ele o deixou crescer para que o índio que o tirasse se sentisse bem recompensado. Não me parece ser essa a idéia da menina.
E tem mais: os índios norteamericanos tiravam os escalpos dos inimigos, sim, mas isso não era costume deles. Foi aprendido dos brancos, quando estes matavam índios e retiravam o escalpo dos coitados para receberem recompensa.
Já que falamos nela, tesoura vem do Latim tonsorius, “aquele que corta”, de tondere, “cortar, tosquiar”. Os clérigos usam uma tonsura, viu, Lucinha, você que quer estudar Teologia quando for grande? É uma região do crânio da qual se raspa o cabelo em sinal de obediência ao Senhor.
Parece que este cuida de muita gente mas se esquece de certas professoras que sofrem nas mãos de certas criancinhas com cara de inocente, e pare com isso, Joãozinho!
Por que um canhoto não consegue usar direito uma tesoura comum? Ah, é porque o corte dela não é feito só pela aproximação do fio das lâminas um contra o outro, mas também porque as lâminas são apertadas entre si quando manejadas pela mão direita. Se a gente usa a mão esquerda, as lâminas tendem a se afastar, podem experimentar. Em casa, em casa!
Mas não se preocupem, existem tesouras especiais para canhotos. Essas os destros não conseguem usar. O grande problema é na sala de cirurgia. Se não houver uma tesoura especial, um cirurgião canhoto sofre para operar.
Ai! Quem foi que espalhou mostarda na parede? Tá certo, existe uma cor com esse nome, mas esta daqui é para o cachorro-quente apenas. Ai, crianças, se eu conseguisse um pouco de gás mostarda… Como? Para que serve? Ahh… afastem-se, sonhos! Ele foi proibido, mas ninguém consultou a categoria dos professores para isso.
Na verdade, ele não era um gás, era um líquido em spray. Não, também não continha nada de mostarda, portanto não serviria para usar no lanche. Ele se chamava assim por causa da cor, do cheiro e também porque ardia muito nos olhos num primeiro momento. Se bem que essa era a última das preocupações para uma pessoa atingida pelo gás.
E a mostarda se chama assim porque, para se fazer o condimento com ela, os romanos moíam as suas sementes e as misturavam com vinho recém-feito para preparar uma pasta que era servida às refeições.
O vinho novo era chamado vinum mustum. Vinum, evidentemente, é “vinho”. E mustum queria dizer “novo, fresco”. A primeira palavra da expressão caiu e foi usada a segunda para fazer um nome para o tempero e a planta.
Pronto. Acabei de dar uma ajeitada neste pandemônio que vocês fizeram. Agora todos vão se levantar e sair direitinho. Em casa, vocês vão dizer para as mamães e para os papais que vocês já aprenderam a pintar e que aprenderam tão bem, mas tão bem mesmo que nem precisam mais estudar essa parte. Não é mais necessário trazer as tintas para cá, viram?
Até amanhã, se eu ainda estiver viva, crianças.