O impertérrito Detetive das Palavras aguarda pela consulta das 21h. Sentado atrás da escrivaninha de seu decadente escritório, tem todo o aspecto de uma aranha à espera que sua presa caia na teia.
Pelo menos ele pensa assim. Mas ele é um romântico incurável e um perpetuador do roman noir, o que se evidencia na decoração de seu local de trabalho, onde ele atende ao desejo que toda palavra tem de saber sobre seu passado.
Entra a palavra-cliente: é Cassar. Como todas, está impressionada por estar frente a frente com o lendário detetive.
Este, para a deixar mais à vontade, pergunta por que ela está ali. E recebe a resposta de sempre: ela sempre quis saber de seu passado, de suas parentas longínquas, de que país veio, sente-se meio ultrapassada ao ver suas amigas que já se informaram sobre o assunto, juntou uma graninha e finalmente resolveu dirimir a questão que tanto a afligia.
Dá para ver que ela está menos tensa agora. X-8 entra finalmente no assunto:
– Pois veja você, Cassar, sua origem remonta aos tempos de Roma, quando andava por lá o verbo quatere, “sacudir, chacoalhar, bater”, por extensão “ameaçar, quebrar”.
Usava-se dizer também quassare quando a ação era repetida, o que se chama de um verbo “frequentativo”.
O mesmo acontece com “cantarolar”, que é o frequentativo de “cantar”, “mordiscar”, que é o frequentativo de “cantar” e assim por diante.
Enfim, dessas duas formas de seu antepassado vieram para o nosso idioma várias de suas parentes.
Você, para iniciar, com esse seu sentido de “anular, revogar, privar de”, é quem tem mais semelhança com a origem.
A palavra inchou de orgulho. São tão fáceis de alegrar, elas!
O grande profissional prosseguiu:
– Com esse significado original, não é estranho que outras descendentes expressem idéias meio agressivas.
Por exemplo, concussão. Ela se forma por com, “junto”, mais o particípio passado de quassare, que era cussus, passando a ideia de “abalo, batida”. Uma concussão cerebral é uma coisa a ser tratada com muita seriedade.
É interessante lembrar que essa palavra, além de passar a ideia de “sacudida”, tem o significado de “obtenção de vantagens indevidas por funcionário público”, de um significado inicial de “extorquir pelo terror”.
Também podemos falar em eletrocussão, com o mesmo final e começando com “eletro-“, formado a partir de “eletricidade”.
Quando as pessoas se desentendem verbalmente, dizemos que surgiu entre elas uma discussão, de discutere, formado por dis-, “fora, mal, inadequado”, mais cussus.
Originalmente, o sentido do verbo discutere era o de “destacar, soltar algo por meio de sacudidas”. A Etimologia não é uma beleza? Olhe só se uma discussão não lembra algo como uma caixa contendo pequenos objetos, os argumentos, que vão sendo chacoalhados e se soltando durante a rixa! E depois se tem que limpar tudo.
Em termos mais amenos, podemos falar em percussão, com o início per-, “através” e o verbo quatere: é “através da batida” que se faz o acompanhamento de uma música.
Com usos menos pacíficos, temos o percutor de uma arma de fogo, a peça que bate contra a cápsula da bala para provocar a explosão do propelente e a conseqüente saída do projétil.
Quando queremos dizer que algo se espalhou, se refletiu por aí e causou uma impressão generalizada, falamos em repercutir, com o acréscimo do prefixo re-, aqui como intensivo.
Falando em bater, surge a lembrança de um instrumento feito para isso, o cassetete. Deriva do Francês casse-tête, “quebra” mais “cabeça”. Só que no sentido literal, não se trata de nenhum enigma ou adivinhação, não. Em certa época a palavra se referia também a vinho barato, que sobe logo à cabeça e a deixa em mau estado.
Falando em Francês, como eu aprecio muito a música clássica, lembro-me da Suite Casse-Noisette, a “Suíte Quebra-Nozes”, de Tschaikowski, outra ilustre parenta sua.
Existe também aquilo de que ninguém gosta, o fracasso. Ele deriva de uma mistura feita no Italiano das palavras latinas frangere, “quebrar” e quassare. Em Francês e Italiano elas têm um significado bem diferente do Português: querem dizer “ruído, estrondo como de algo a se quebrar”.
E quassare gerou uma palavra de uso militar: casco, “capacete antigo”, relacionado a “pedaços quebrados de potes”, ligado à imagem de um crânio quebrado. Para que este não se partisse como um vaso, deveria ser protegido com alguma coisa.
Temos também, veja só, a queixa. Ela vem de quassare, que de tanto chacoalhar acabou assumindo esta forma de expressar descontentamento e desgosto.
E agora vem sacudir, de succutere, “sacudir, agitar, abalar”, formado por sub-, “abaixo”, mais quatere.
Então, como a senhora vê, cara cliente, seu parentesco é bastante agitado, expressando quase sempre suas origens muito sacudidas. Vou aceitar agora o pagamento… Obrigado, eis o recibo… Não tente abatê-lo do Imposto de Renda porque é proibido, viu?
Até uma próxima, vá pela sombra e cuide-se dos ratos no corredor que eles estão agitados hoje.