Palavra gracinha

GRACIOSOS I

 

Muito bem, quem foi que colocou uma minhoca dentro da minha maçã, tachinhas na minha cadeira, um sapo seco em minha bolsa e pasta de dente na maçaneta da porta?

Sei que, modernamente, isso se chama “liberdade de expressão para os alunos” e que eu devo achar muito engraçado e mandar uma carta de parabéns aos pais de vocês pelas suas iniciativas, mas eu sou antiga, pré-histórica e acredito em coisa muito diferente.

Enquanto vocês desfazem tudo isso, vou contar a origem das palavras que representam isso que vocês acham engraçado até que os outros façam para vocês.

Para começar, engraçado vem de “graça”, que veio do Latim gratia, “mercê, favor, agradecimento, boa vontade, estima”. Nos idiomas ibéricos adquiriu, entre outros, o sentido de “cômico, jocoso”, que se manifesta em nossas palavras graciosinho, gracinha. Mas, por exemplo, em Inglês e Francês essa conotação não existe.

Já que citei, posso dizer que cômico vem do Grego komoidia, “espetáculo divertido, comédia”, de komodios, “cantor em festas”, de komos, “festa, farra”, mais oidos, “poeta, cantor”.  Quando vocês aprenderem a ler, talvez usem um pouco o seu tempo com comic books, que é como os americanos chamam as revistas em quadrinhos. Mesmo as que não têm histórias nada cômicas.

E… Sim, Valzinha? Uma de suas vizinhas sempre diz que vai ser cômico o dia em que ela pegar o marido olhando para a mulher do zelador do condomínio de novo?

Está bem, isso não é matéria de aula, aquiete-se um pouco e vamos continuar, agora contando a origem de jocoso.

Ela vem do Latim jocularis, “engraçado, cômico”, de jocus, “jogo, passatempo, esporte”.

Sim, Zorzinho, muito bem, jogar e jogo vêm daí. Ah, não, não queremos saber dos resultados dos jogos de futebol do último fim-de-semana, muito obrigada, isso você vai discutir com seus colegas depois, no recreio. Favor não começar com eles uma jogatina de figurinhas de jogador de futebol.

Antes que me esqueça, outro derivado de jocularis é chocarreiro, que significa “o que zomba, engraçado, debochado”.  Também de pouco uso, mas ainda viva.

Falar em jocoso me traz à mente umas palavras meio raras na atualidade.

Por exemplo, faceto. Nunca ouviram né? Pois ela deriva de facécia, do Latim facetia, “graça, brincadeira”.

Também penso em hilário, do Latim hilaris, “alegre, divertido”. Nas épocas antigas existiam as Hilaria, uma classe de feriados com regozijos e festas. Bem que vocês podiam dar uns dias desses para esta pobre profissional cansada e sofredora que nem a Tia Odete aqui, para eu poder descansar de suas gracinhas.

De preferência um ano ou dois, sem interrupção.

Outra classificação que se dá para quem faz palhaçada à custa dos outros é divertido. Esta vem Latim  divertere, “virar em diferentes direções”, de dis-, “para o lado”, mais vertere, “virar”.

A ideia é “voltar-se para um lado diferente das preocupações”. Usa-se também como termo militar, para designar uma ação feita para distrair o inimigo enquanto se prepara um ataque em outro ponto.

Não, Aninha, isso não implica em fazer um desfile de circo à frente das posições inimigas, para alegrá-las. Outra hora eu lhe explico. Daqui a uns 30 anos, quiçá.

Para se divertir à custa dos outros sem ter espírito de porco é necessário estar alegre, que vem do Latim alacer, “vivaz, contente”.  Desde já aviso que  palavra álacre, um sinônimo, está em uso em nosso idioma, embora bastante esquecida.

Muitas vezes se designa quem se dedica a isso como zombeteiro, que veio do Espanhol zumbar, de origem onomatopaica. Ou seja, quando se queria incomodar alguém se fazia uma vaia tipo abelha, bzzzz… Daí temos zombaria.

Não, Tiago, não é adequado borrifar um zombeteiro com spray contra insetos. Aliás, é proibido. O melhor é deixar o fulano em paz com seu zumbido e torcer para que ele vá incomodar os outros.

Um indivíduo que está zombando da gente pode ser chamado de galhofeiro também. Parece vir do Espanhol gallofa, que dizem ser o nome de restos de pão que eram dados aos peregrinos nos conventos da Galícia, quando eles estavam se dirigindo em romaria a Santiago de Compostela.

Se quiserem saber, de minha parte, acho que esta explicação está redondinha demais para ser verdade.

E podemos terminar esta aulinha com outra novidade, patusco, que parece vir do Italiano patullare, “levar a vida em divertimentos”, coisa que eu bem gostaria de fazer para esquecer onde foi que me meti.

Agora, vão fazer patuscadas em casa, que na próxima aula eu vou contar mais sobre esse tipo de pessoa.

Resposta:

Um Memorando Da Tia Odete

De: Tia Odete, Professora do Maternal desta renomada Instituição de Ensino.

Para: Sra. Diretora da mesma renomada Instituição de Ensino.

Assunto: delicado.

Prezada Sra. Diretora, como acima dito, o assunto a ser tratado nesta minha correspondência oficial, em cuja cópia espero seja aposto o seu “Ciente” e, de preferência, “Concordo”, é dos mais delicados.

Já que falei nessa palavra, informo que ela vem do Latim delicatus, “delicioso, atraente”, passando a ter também a conotação de “constituição frágil” a partir do século 15. É com este sentido que uso a palavra no presente contexto.

Trata-se de matéria fundamental para a minha sobrevivência, considerando que tenho o mau hábito de me alimentar mais de uma vez por dia. Alimentar vem do Latim alere, “fazer crescer, alimentar”.

Mais de uma vez vi a expressão latina Alma Mater, referente à instituição de ensino que a gente cursou, traduzida como Alma Mãe, absurdo dos maiores, pois quer dizer na verdade Mãe Nutriz, Mãe que Alimenta – alimenta nosso espírito, claro.

Embora sabedora que essa história de se alimentar é um vício do qual os que pertencem à nossa categoria deveriam se livrar se pretendem se sustentar com o que ganham na profissão, ainda não consegui convencer o meu metabolismo a parar de insistir com a manutenção das taxas de glicose e outros parâmetros tolos.

Metabolismo não tem nada que ver com um atacante no futebol que mete a bola na rede, não; vem do Grego metaballein, “mudar, fazer alterações”, de meta, “sobre”, mais ballein, “lançar”.

Destarte, considerando que me foi confiada a sorte da pior turma que jamais foi vista no sistema educacional deste país e que me tenho esmerado para garantir a educação desses jovens que são o futuro de nossa Nação – coitada dela – a ponto de espargir cá e lá ilustrações etimológicas da mais profunda relevância para o espírito das crianças, venho por meio desta solicitar um aumento.

Solicitar vem do Latim solicitare, “movimentar, agitar, pedir”.

De que? De trabalho? Não, de uma coisa que a Sra. pode escolher da lista abaixo:

SALÁRIO – palavra esta que vem do Latim salarius, “pagamento, quantia que era dada aos soldados para a compra de sal”. Como curiosidade, temos que no Japão a palavra sarariman quer dizer “trabalhador masculino assalariado”, feita a partir do Inglês salary-man, de mesmo significado.

ESTIPÊNDIO – vem do Latim stipendium, “imposto, pagamento, presente”, formado por stips, “esmola, pequeno pagamento”, mais pendere, “pesar”. No caso dos meus vencimentos, essa palavra stips é tão adequada que, se pudesse sustentar um cãozinho, eu o chamaria de “Stips”.

Uma das razões para não me meter a criar um animalzinho desses é o temor de o transformar em churrasco em algum fim de semana de maior aperto.

HONORÁRIO – vem do Latim honos, “honra”. Nos últimos séculos, tem o significado de pagamento feito por serviços de especial merecimento, mas originalmente honorarium era “propina dada em troca da indicação a um posto honorário”.

Também como curiosidade, acrescento que, na Inglaterra, existiu uma moeda de ouro chamada guinéu. Ela era feita com ouro da Guiné e foi cunhada entre 1663 e 1813. Inicialmente valia os mesmos vinte shillings que a libra, mas em 1717 o seu valor foi fixado em 21 shillings.

Em tal país, mesmo não existindo mais essa moeda, costuma-se fixar em guinéus o pagamento de serviços de profissionais liberais e itens de luxo. Considerando-me enquadrada seja em “profissional muito liberal”, seja em “artigo de luxo”, não recuso a possibilidade de receber o que me é devido em guinéus.

VENCIMENTOS – do Latim vincere, “levar vantagem numa contenda, ganhar, vencer”. Vencimento é a data em que são cumpridas as obrigações.

Obrigação vem do Latim obligatio, originalmente “ligação, elo”, de ob-, “para”, mais ligare, “atar, unir, ligar”. Uma pessoa em obrigação com outra está atada a ela pelos laços da consciência, da ética e da moralidade, não lhe parece?

PAGAMENTO – do Latim pacare, “aplacar, satisfazer, apaziguar” (principalmente um credor), palavrinha essa que veio de pax, “paz”. Convém não esquecer que essa palavra teve origem no Indo-Europeu pak-, que formou tanto pecus, “ovelha”, de onde veio pecúnia, “posses, dinheiro”, como “paz”, “sentimento de tranqüilidade, de calma, ausência de rixas ou ameaças.”

Os antigos sabiam que, para estar tranqüilos em casa, precisamos não ter dívida com ninguém, especialmente com uma professora que tanto se esforça para manter os seus alunos quietos e não enlouquecer com as gracinhas que eles fazem a torto e a direito.

Gracinha se desenvolveu, não sei como, do Latim gratia, que significava “favor, beleza, perdão”.

O que eles fazem não é nenhum favor, não é bonito nem merece perdão, mas isso é outro assunto.

Assim fica claro que, caso a Sra. ainda tenha um resquício de consciência, da melhoria do meu pagamento resultará uma maravilhosa sensação de paz interior.

Muito bem. Escolhido o item pela senhora, viria muito bem um aumento dele, palavra que vem do Latim augmentare, “tornar maior, aumentar, enriquecer”, derivado de augere, “fazer subir, aumentar”, de uma raiz Indo-Européia aug-, “aumentar”.

Veja que até os povos que originaram nosso idiomas ocidentais usavam uma palavra com esse sentido. Provavelmente a usavam para pedir que os salários se ajustassem às suas necessidades, para que eles pudessem comprar machados de pedra de último modelo ou um bom filé de mamute.

Poderia também ser um acréscimo, do Latim accrescere, “aumentar, crescer”. Um acréscimo em meu salário, ao permitir que eu não morra de inanição, seria muito conveniente para a salvação de sua alma, caso a Sra. venha algum dia a falecer.

Inanição vem do Latim inanis, “pobre, esvaziado, faminto”.

Não se trata apenas de comida, porém, o meu problema. Como conseqüência do nervosismo constante em que aquelas crianças me mantêm, sou uma grande consumidora do conhecido tranqüilizante Nervocalm. Tranqüilizante vem do Latim tranquilitas, “tranqüilidade”, de tranquilus, “calmo, pacífico”, formado por trans-, aqui com o sentido de “muito além, sem par” mais quies, “descanso, calma”.

Os latinos adoravam dizer Parva domus magna quies, como quem diz: Casa pequena, calma grande. Meu apartamento é pequeno e nem por isso é calmo, eis que muitas vezes o tremor me assola quando estou lá e sou obrigada a estrangular um ou dois travesseiros para deixar correrem minhas energias retaliatórias que não posso soltar em aula.

Retaliar vem do Latim retaliare, “revidar na mesma moeda, usar a lei do Talião”. E Talião não era um legislador grego, não; deriva da palavra talis, “igual, tal como”.

Destarte, em minha modesta opinião, creio ter tornado suficientemente claros os motivos destas minhas mal traçadas linhas. Coloco-me à sua disposição para ulteriores esclarecimentos e assino-me,

Esperançosamente,

Tia Odete.

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