A Bússola
Eu tinha entrado no gabinete do meu avô para o cumprimentar. Sentia-me bem entre aquelas prateleiras forradas de livros, entre os objetos que ele tinha espalhados por ali, mas acima de tudo eu gostava de estar com ele.
Meus primos, algo maiores do que eu, não apreciavam aquilo tudo e pareciam sentir certo medo do velho com os cabelos todos brancos, barba curta e sempre bem arrumadinho. Parecia-me que, por sua vez, ele preferia que aqueles destruidores não entrassem no seu refúgio.
Mas comigo era diferente: eu percebia que ele tinha prazer em conversar comigo, e sempre que podia eu o visitava ali. Agora, como sempre, ele me tocou no ombro com afeto e trocamos umas palavras.
Olhei para uma caixinha metálica redonda numa das prateleiras:
– Vô, isto aqui é a bússola que o Senhor usava quando vivia sozinho no mato em cima das árvores, comendo gafanhotos e lendo os seus livros?
– Estou vendo que os seus primos já andaram lhe contando histórias de novo – disse ele com um ar severo na superfície mas risonho por trás.
É verdade que, quando eu era pequeno, eles tinham contado umas histórias assustadoras sobre o velhote, mas fazia muito que eu não acreditava nelas; na realidade, eu às vezes até inventava umas para o provocar, e ele se divertia com isso. Para não falar nas que ele inventava sobre si mesmo…
– Nunca vivi desse jeito no mato, mas já usei a bússola para me orientar, sim. Traga-a aqui.
E ele me fez abrir a caixinha, mostrou-me o seu funcionamento, falou sobre os chineses que a inventaram, a sua importância para a época das descobertas, os campos magnéticos da Terra. Ouvi com atenção, mas ainda assim esperando que ele entrasse no nosso assunto predileto, que era a origem das palavras.
– A palavra bússola vem do Grego pyx, “buxo”, que era uma madeira muito apreciada para se fazerem trabalhos delicados e com que se faziam as caixas dos primeiros desses artefatos. Agora preste atenção: em Latim, oriri significava “nascer, sair, levantar-se, surgir, começar”. Sole oriente era “sol nascente”. Encurtada para oriente, passou a designar não apenas um momento do dia como o local onde aparentemente nasce o sol. “Nascente” é um sinônimo.
Se uma pessoa sabe onde fica o oriente, sabe facilmente onde ficam os outros pontos cardeais; portanto, ela consegue se orientar. Originalmente, isto significava “voltar o rosto para o leste”. Na verdade, o sentido atual de localizar se fixou apenas no século dezenove.
Uma orientação não significa apenas uma localização espacial. Pode ser um ensinamento sobre como agir na vida, que um amigo dá para outro, os pais dão para os filhos, ou que este avô pode passar quando um neto precisar. Não se esqueça disso.
Eu não me esqueceria, e mais adiante na vida isso ainda me ajudaria muito.
– Desse oriri naturalmente veio origem, que é o ponto do espaço ou tempo onde algo começou. Original é um derivado, e tem a conotação de “diferente, novo”, ao mesmo tempo que a de “referente ao primeiro, sem paralelos anteriores”. Isto me lembra um dos numerosos episódios da minha vida que me renderam pouco orgulho:
– Quando eu tinha os meus primeiros carros, que sempre se encontravam em mau estado, pois eu não podia comprar nada que prestasse, as surdinas deles viviam furando. Eu detestava aquele ronco; quando não podia aguentar mais, ia a uma loja de autopeças, os vendedores olhavam para o veículo desconjuntado e sempre me vendiam a peça original.
Eu saía muito contente, até, que não muito depois, a geringonça furava de novo e o ronco recomeçava. Isso aconteceu várias vezes, até que me dei conta que “Original” era apenas a marca da porcaria, não queria dizer que o fabricante fosse o mesmo do carro. Bem feito por não indagar melhor!
– Quer dizer que as palavras podem ser perigosas, não?
Meu avô suspirou:
– Você nem imagina quanto. Por isso é bom conhecê-las muito bem.
Agora, este verbo oriri tem um parente próximo, ordiri, “começar”. Daí temos ordem, ordenar , “formar um conjunto seguindo certos critérios”.
Coordenar vem de com, “junto”, e ordiri. Presume-se que um coordenador coloque em ordem um conjunto de coisas ou atividades. Se ele tiver capacidade e os outros deixarem, é claro. Os franceses, muito ciosos de seu idioma, têm um nome diferente para o computador; eles dizem ordinateur, e na verdade ele é um aparelho para ordenar dados, cálculos e arquivos.
Ordinário primeiro queria dizer “arrumado, em ordem”, passando depois para “habitual, comum”, e agora costuma significar “de pouco valor, vil”.
– E quando a nossa faxineira diz “que todos os homens são ordinários”, quer dizer que eles são arrumados ou comuns ou o quê?
– Ela quer dizer que eles não prestam, e deve ter lá os seus motivos para isso. Mas não se assuste, não são todos assim, não.
– O Pai contou que, quando ele estava no Exército, os oficiais ordenavam: “Ordinários, marchem!?
– Ou é piadinha do seu pai ou você entendeu mal. Essa ordem significa “Marchem em passo ordinário”, ou seja, em passo comum. Há outros passos de marcha além desse, como o passo de ganso, acelerado, sem cadência, de modo que o passo tem que ser definido antes de se começar. Já pensou, cada soldado usando o passo que lhe der na telha?
Falando em soldados:, ordenar no sentido de “fazer um arranjo disciplinado de alguma coisa” só se consegue mandando e demonstrando força; daí que, através do Francês ordener, temos ordem, ordenar no sentido de “comandar, exercer autoridade”.
– Vô, se nascente é o mesmo que oriente, por que não dizemos “morrente” para o lugar onde o sol se põe?
– E dizemos, dizemos mesmo. Só que com outra forma. Chamamos esse local de ocidente. Essa palavra vem do Latim ob, “à frente, por, devido a” mais cadere, “cair, morrer, diminuir”. Logo, esse é o lugar onde o sol morre.
A palavra ocaso é a mesma coisa. Vita occidens, diziam em Roma: o ocaso da vida. É a época em que esta se aproxima do fim, e há gente tola que morre de medo de morrer.
Ficou um pouco pensativo. Preocupei-me:
– Mas nós não vamos morrer, né, Vô? – Aquele “nós”, para mim, abrangia tanta gente…
Sorriu de leve:
– Enquanto não se sai da memória dos outros, ninguém morre. Fique tranquilo.
Agora guarde a bússola no lugar, direitinho… Se você a quebrar, eu o frito em azeite quente! E disto tudo guarde o seguinte: para nos orientarmos pela vida, precisamos de uma bússola que não se compra em nenhuma loja. Ela se chama Inteligência, e não basta nascer com ela.
Precisa ser treinada, portanto vá para a sua casa estudar; aposto que você tem algum tema para fazer. Toca a exercitar a sua bússola! – e me deu uma palmada.