Palavra peculiar

Pecus

O pior bairro da cidade, tão ruim que a Prefeitura desistiu dele e se recusa a reconhecer que ele faz parte da cidade.

Numa de suas esquinas se situa o Edifício Éden, com três andares, cada um mais mal-cuidado e sujo que o outro. Ali vivem e trabalham pessoas em atividades não muito recomendáveis.

A exceção e orgulho geral dos vizinhos é o Detetive das Palavras, X-8; ele não é de receber vizinhos no seu escritório-morada, mas corre à boca pequena que ele tem mais de um livro em casa. E que já leu tudo, inclusive!

É uma noite de límpida lua cheia. O que não está coberto com a camada de prata de sua luz é escuro como breu, pois a iluminação pública foi para o beleléu há muito.

Uma palavra sobe com passos idosos as escadas cheias de lixo do Ed. Éden e se dirige ao escritório cuja porta ostenta uma placa de latão bem polido que diz apenas “X-8”.

Bate à porta, ouve uma voz que diz “entre” e penetra num escritório mobiliado ao estilo dos Anos 1950 (o Detetive adora as histórias policiais da época).

A visitante senta-se diante de uma escrivaninha, atrás da qual está o corajoso profissional, em sua gabardine bege enorme e chapéu desabado, que o ocultam completamente das vistas alheias.

Dizem uns que é porque ele, numa aventura etimológica, foi cruelmente retalhado por um grupo de inimigos e ficou desfigurado; outros, que é porque ele não pode ser reconhecido em suas pesquisas; outros, que é um tímido patológico. E, finalmente, há quem fale que é apenas chegado a fazer gênero.

Seja como for, ele recebe a palavra cliente com mostras de respeito e deferência:

– Seja muitíssimo bem-vinda, Pecus. Em meu trabalho quase sempre lido com palavras que querem saber de suas antepassadas, e agora me toca lidar diretamente com uma das próprias antepassadas.

Pelo telefonema que Vossa Senhoria fez ao marcar consulta, vejo que saiu de um dicionário de Latim e resolveu dar uma volta pelo mundo atual para ver se deixou alguma descendência. Deixou, e muita!

A senhora sabe que significa “gado” em Latim e que descende do Indo-Europeu peku-, “gado” em geral.

Ora, essas palavras começaram a ser usadas antes da invenção da moeda e do cartão de crédito – como? O que é cartão de crédito? Humm, deixe para lá, é um costume da época atual em que a senhora nem acreditaria, é meio complicado.

Enfim, naquelas eras, o gado era um modo de se guardar e até fazer aumentar os valores que uma pessoa tinha obtido honestamente com o suor de seus rostos, mesmo que este fosse derramado enfiando a espada na barriga dos seus próximos e queimando as suas casas.

Assim, não admira que palavras derivadas de Pecus em breve tenham adquirido também significados relacionados a “valor, dinheiro, bens”.

Temos, por exemplo, pecúnia. Não, minha senhora, “petúnia” é o nome de uma flor, nada tem a ver com o assunto.

Pecunia em Latim era igualzinha ao que é agora no Português – fora o fato de não ter acento, como todas as outras em Latim – e já significava “dinheiro, propriedade, riqueza”.

Temos agora em pleno uso a pecuária, o nome da atividade que trata da criação de gado.

Todos no mundo moderno, como no seu já se fazia, tratam de guardar um pecúlio – uma soma em bens, imóveis ou não, ou dinheiro – para enfrentar tempos de crise. Essa sua neta vem do hábito romano de o senhor dar a um escravo uma pequena quantidade de gado, o peculium ovis. Também os soldados da época faziam suas economias, constituindo o peculium castrensis, o “dinheiro do soldado”, literalmente “do acampamento”, pois castrum significava isso.

Mesmo a palavra peculiar, cujo sentido é de “próprio, especial de uma pessoa, particular”, é sua descendente. Em Latim, peculiaris queria dizer “da própria pessoa, de sua propriedade privada”, inicialmente se referindo ao gado dela. Mais tarde seu sentido acabou se apoiando principalmente na parte de “único, próprio”, e ela derivou para um caminho não necessariamente relacionado a gado ou grana.

Mas nem todos obtinham seus bens por meios honestos; já em Roma era feio cometer peculatus, que era “roubar dinheiro pertencente ao Estado”. Muitas vezes eles pagavam com suas cabeças por terem caído nessa tentação. Ah, bons tempos os seus, minha senhora…

Existe ainda uma palavra sua derivada de muito pouco uso em nosso idioma, pegureiro, “o que cuida do gado”, que só vamos encontrar em livros bastante antigos.

Assim se vê que Vossa Senhoria deixou farta e mui útil descendência em nosso idioma, pelo que lhe dou os parabéns e lhe cobro o que já havíamos combinado pelo telefone.

Não, não é caro para os dias que correm, a senhora nem imagina o que foi a inflação dos tempos iniciais do Lácio até agora.

Obrigado e passe muito bem. Envie suas colegas que estão no dicionário de Latim, tenho certeza de que elas gostarão de uma consulta.

Resposta:

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