Eu estava pelo fim do secundário e tinha ido visitar meu avô. Fomos ao pátio brincar com o gato Ernesto. Este era um animal enorme, pêlo longo, todo cinzento, muito bom companheiro – pelo menos enquanto ninguém lhe tocasse a barriga, que aí ele virava uma fera.
Ele estava muito contente por eu estar ali, e expressava isso correndo de um lado para outro para que eu fingisse persegui-lo, o que o deixava extasiado. Parava logo adiante, miava para me chamar, voltava a correr e subir na árvore e se esconder atrás das plantas, pupilas enormes, fingindo que enfrentava um grande perigo.
Meu avô, sentado numa espreguiçadeira, disse:
– Ele sempre fica bem-humorado quando você o visita.
– Ele é muito divertido; eu gosto de brincar com ele e também fico contente que nem ele. Falando nisso, no outro dia o Pai falou em humorismo e melancolia e humores e eu não entendi direito na hora, mas como eu tinha que sair logo não pude perguntar sobre aquilo.
– Ah, isso dá uma conversa até meio longa.
Sentei-me perto dele, arrastando uma cordinha no chão para entreter o gato. Este prestou atenção na corda, eu prestei atenção no meu avô, ele prestou atenção aos seus conhecimentos.
– Até chegar aos humoristas modernos tão sem graça, muitos séculos se passaram por baixo da ponte dessa palavra.
O início foi na Antigüidade grega, quando os pensadores chegaram à conclusão de que tudo o que existia na Terra era formado por uma combinação de apenas quatro elementos. Note-se que a noção de uma enorme variedade de materiais ser a combinação de poucos componentes básicos e simples está confirmada na Física moderna.
Estes elementos, que nada têm a ver com os elementos químicos de agora, eram água, fogo, terra e ar. Esta noção em geral é bem conhecida de quem estuda História.
Mas nem todos sabem que se acreditava que cada um desses elementos era formado, por sua vez, por uma combinação dos “Quatro Contrários”: seco, molhado, quente e frio.
Assim, o fogo era uma mistura de quente e seco; o ar, de quente e úmido; a água, de frio e úmido; a terra, de frio e seco.
Segundo essas noções, nos seres humanos estes “Contrários” se combinavam para formar os quatro humores.
E a proporção destes humores na pessoa era o que determinava o seu temperamento e, por conseqüência, a sua conduta. Os humores eram a bile, o sangue, a fleugma e a melancolia.
Enquanto o gato mordia valentemente a cordinha, de barriga para cima, não pude resistir à possibilidade de cutucar o velho:
– “Bile the Kid”, Vô?
– Quem me dera ter um dos Colts dele para enfiar um projétil .45 na testa de quem resolve atrapalhar! Não podendo fazer isso porque o gato iria fugir, vamos seguir a lição.
Até pelo menos o século dezenove, as pessoas ainda eram descritas pelos médicos como pertencendo aos tipos biliosos (ou coléricos), sanguíneos, fleugmáticos ou melancólicos.
– Outro dia a professora disse para a gente não a encolerizar. Ela estava biliosa? O que é isso?
– Coitada, vocês deviam estar aprontando muito com ela. Não, nem me diga o que vocês fizeram; prefiro não saber. Sou muito sensível a histórias de horror.
É assim: bile vem do Latim bilis, a substância secretada pelo fígado e armazenada na vesícula biliar, fundamental para os processos digestivos. Em Grego ela se chamava kholos, daí bilioso e colérico serem sinônimos no que toca a estas definições fisiológicas antigas. Mas também havia quem pensasse que a bile se originava do baço ou dos rins.
– Mas e porque dizer cólera para a raiva? E a doença com esse nome? A pessoa fica furiosa?
– Calma, que eu já estava indo para lá. Arre, que neto apressado tenho eu!
– É a vida moderna, Vô!
– Muito bem, seu respostinhas, preste atenção. Ensinava-se que os humores eram compostos assim: bile ou cólera, de quente e frio; sangue, de quente e úmido; fleugma, de frio e úmido e melancolia, de seco e frio.
Considerava-se que aquele em cujo temperamentono predominava a bile (bilioso ou colérico) era irritado, irascível, vingativo, de pavio curto. Foi a esse estado de espírito que a pobre professora se referiu, certamente: cólera, a ira, seria mais comum neste tipo de pessoa.
Quanto à cólera como doença, vem do sentido de kholé, bile como fluido corporal mesmo, já que um dos sintomas predominantes nela é a diarréia, que era atribuída a um desarranjo biliar.
A pessoa sanguínea era confiante, alegre, otimista, mais folgazã. A palavra sangue vem do Latim sanguis, de origem não definida.
É interessante saber que eles usavam essa palavra para o líquido corpóreo em geral; para se referirem especificamente ao sangue que saía de uma ferida, eles diziam cruor, relacionado com o Grego kreas, “carne”.
O indivíduo fleugmático seria quieto, parado, reagindo pouco aos estímulos externos, com certa inclinação para a pouca inteligência.
Atualmente essa palavra descreve um sujeito impassível; a figura típica é o londrino, com chapéu-coco e guarda-chuva bem enrolado, vendo ocorrerem à sua frente coisas as mais estranhas e, se tanto, apenas levantando uma sobrancelha. A esquerda, de preferência.
Fleugma vem do Grego phlegma, “inflamação”, de phlegein, “queimar”, relacionado a phlox, “chama, labareda”. Atualmente, em Farmacologia, antiflogístico é o mesmo que o antinflamatório.
Uma pessoa melancólica era quieta, triste, retraída, rancorosa, presa fácil de pesadelos. Esta palavra vem do Grego melaine kholé, “bile negra”.
Um sinônimo em Latim era atrabilis (que deu a palavra “atrabiliário”), de atra, “negra”, mais bilis. Julgava-se que havia uma predominância de bile escura nessas pessoas.
E eu já estava esquecendo: humor vem do Latim umor, sem “H”, “fluido, seiva de animal ou planta”.
– E como foi que surgiu esse “H” de agora?
– Por uma associação errada com humus, “terra”. E depois que a letra pegou, não houve jeito de a retirar. Mas, como eu dizia, umor se relaciona com umere, “estar molhado, úmido”. É por isso que úmido se escreve sem “H”.
– E como foi que essa palavra acabou relacionada ao que é engraçado?
– Originalmente, o humor predominante era o que ditava as reações da pessoa; ao longo da sua história, seu sentido mais comum se fixou nas reações divertidas, leves, positivas; no bom humor, para encurtar.
Também tenho que acrescentar que a palavra temperamento, que usamos no começo da conversa, vem do Latim temperare, “misturar”, o que está de acordo com o que os antigos diziam, que o temperamento de uma pessoa resultava da mistura dos seus humores.
– Uma vez a Mãe estava dizendo que um colega dela era “um melancólico hipocondríaco cheio de problemas no estômago que vêm da cabeça”. E isso tudo é o que, na prática?
– Viu só como é bom ser culto? Dá para falar mal dos outros de maneira muito sonora! Bem, melancólico você já sabe o que é e de onde vem.
Agora, hipocondríaco vem do Grego hypo-, “abaixo,” e kondrós, “cartilagem do tórax”. A palavra se referia à região logo abaixo das costelas, onde se localiza, à direita, a vesícula biliar;à esquerda, o baço; de ambos os lados, junto às costas, os rins. Estes órgão eram, como falei antes, relacionados à produção de bile.
Dizia-se que a melancolia era devida à bile negra. Portanto, ela era gerada na região descrita. Logo, uma pessoa triste, com ânimo depressivo, era assim porque sofria de um órgão dessa parte do corpo.
Como muitas delas eram sobremaneira preocupadas com sua própria saúde, o termo hipocondríaco acabou sendo usado para descrever uma pessoa que se acha demasiado sensível para doenças e que gasta boa parte do seu tempo pensando nelas. Enfim, um belo pasto para charlatães e curandeiros.
Quanto ao estômago, seu nome vem do Grego stoma, “boca”. Um derivado dessa palavra, stomakhos, na época em em que a Anatomia ainda engatinhava, foi usado para nomear primeiro a garganta, depois a entrada do estômago e finalmente se fixou neste propriamente dito. Os romanos diziam que era o estômago que fazia a regulação dos humores corporais.
– Era por isso que eles o enchiam tanto nos banquetes, Vô?
– Acho que isso acontecia mais porque eles não desprezavam uma comidinha grátis. Só sei que, por alguns séculos, estômago teve o significado de “valentia, coragem, raiva”. Ainda hoje existe o verbo estomagar, querendo dizer “ser tomado de raiva ou indignação”. E todos conhecemos a expressão “não tenho estômago para isso”. A referência aí não é digestiva, e sim de ânimo.
O gato estava aos pulos tentando pegar o cordão todo o tempo. A conversa era entrecortada por nossas risadas.
– Muito bem, rapagote. Esperando que a sua avó esteja de bom humor, vá pegar algo para a gente beber, que tanta conversa e risada me secou os humores.
– Boa, Vô! Vamos colocar no estômago algo frio e úmido. Viu como eu aprendi?…