Ferramentas II [Edição 39]
Eu me tinha interessado tanto com o que meu avô tinha falado sobre a origem do nome das ferramentas comuns que fiz uma lista mental e, assim que pude, fui visitá-lo para aprender mais.
– Hum, um jovem que não está apenas querendo saber de futebol e pagode. Só pode ter puxado a mim! – disse ele, tentando disfarçar seu contentamento.
– Nada disso, Vô, eu fui adotado – respondi, com a maior cara-de-pau.
– Então é um milagre. Ajoelhemo-nos para rezar.
– Quem sabe a gente pula essa parte e o senhor responde às minhas perguntas?
– Está bem, seu incréu, está bem. Mande.
– Vamos ver então… tesoura de onde vem, Vô?
– Do Latim tonsorius, “o que serve para cortar”, do verbo tondere, “cortar, tirar o pelo”.
Existe um outro derivado desse verbo que é tonsura, aquele corte circular do cabelo que os padres ostentam na cabeça, como um sinal de que são servos do Senhor.
– Ué, por que?
– É que entre os romanos os escravos tinham o cabelo raspado para serem facilmente distinguidos dos cidadãos livres. Esta pequena zona raspada ficou como um símbolo dessa relação.
Já que falamos em tesoura, cabe lembrar o podão, que veio do verbo latino putare…
– Ei, essa não! Não me esqueci de que o senhor uma vez disse que esse verbo queria dizer “calcular, estimar, considerar”. Mudou agora, é?
– Calma, seu afoito. Esse verbo também era usado para “desbastar, cortar o que não é necessário, podar”. Aliás, deve ter sido esse o seu sentido inicial, seguindo o fato tão comum de que palavras relacionadas à agricultura acabaram tendo outros significados na civilização romana. Veja bem a analogia entre podar uma planta e podar os fatos para se poder fazer uma estimativa.
– É disso que eu gosto nestas histórias, Vô.
– Para mim, essa é a maior graça da Etimologia.
– E a espátula que se usa para alisar coisas?
– Veio do Latim spatula, diminutivo de spata, “instrumento largo e achatado, espada larga”, do Grego spathe, “lâmina, instrumento achatado”.
Aqui me ocorre a palavra sapador, aplicada ao militar que se encarregava de abalar muralhas cavando túneis por baixo. Ele se chamava assim devido à sua ferramenta básica, a sapa, uma pá cujo nome vem de spata.
Mas saiba que o nome da pá que usamos modernamente, quando os explosivos se encarregam de destruir obstáculos, deriva do Latim pala, também “pá”.
– Muito bem; e a picareta?
– Do verbo picar, que se origina de um som imitativo, uma onomatopéia de batida: “pic, pic”. Usar uma picareta num terreno acaba deixando tudo fragmentado, picado.
Isso me lembra um instrumento que se usa para fazer furos, a pua. O nome dela não tem origem muito certa, mas pode estar relacionado com o verbo latino pungere, “fazer furos, fincar”.
Há outra ferramenta que se usa para fazer furos retirando a parte do meio do material, de modo a que a borda não fique irregular; é o vazador, do Latim vacivus, “desocupado, vago, vazio”, pois ele deixa um espaço vazio no meio. Sem ele, fazer furo num cinto acaba saindo uma porcaria.
– Para construir casas, sei que era muito usado o esquadro.
– Palavra que vem de exquadrare, “partir em quatro”, de quattuor, “quatro”. O ângulo de noventa graus resulta de cortar um círculo em quatro partes iguais. Você sabia que o ângulo reto é o ângulo que ferve a noventa graus?
– Como é isso, Vô?
– Deixe para lá, que em troca eu lhe digo de onde veio a palavra régua. Foi de regula, que veio do verbo regere, “determinar, dirigir, guiar”, ligado a rex, “rei”, pois a idéia era que ele fizesse exatamente isso.
– Espertinhos, esses romanos. Deixe ver, tenho mais um nome para saber… ah, prumo.
– Este vem do Latim plumbum, “chumbo”. É que se usavam pesos desse metal presos a fios, para que estes representassem bem a perpendicular dum dado ponto, já que as paredes deviam subir bem retinhas para cima, para poderem se sustentar melhor.
– E o que pesa mais, Vô, um quilo de chumbo ou um quilo de penas?
– Um quilo de chumbo – disse o velho cara-de-pau muito rapidamente.
– Peguei o senhor, Vô! Que vergoonha! Pois, se se trata de um quilo, os dois pesam a mesma coisa! Mas que vexame, meu avô, tão preparado…
– Ah, é, espertinho? Pois então me diga o que você prefere que lhe caia na cabeça, um quilo de chumbo ou um quilo de penas?
Aquilo me deixou balbuciando, tentando falar em densidade e coisas assim, mas o velho não parava de rir de mim, de modo que desisti. O velho estava impossível naquele dia.